Anotações
POR RAZÕES QUE DESCONHEÇO, quando escrevo um romance acontece-me interromper subitamente essa escrita e, como num estado segundo, escrever texto curtos, que à primeira vista nada têm a ver com o livro que me ocupa.
Por vezes assemelham-se a desabafos, noutras haverá uma vaga conotação com esta e aquela personagem, poderá ter sido também uma maneira de reagir a uma notícia, um acontecimento, uma leitura.
De qualquer modo, os trechos que se seguem, mesmo que pareçam não ter ou não se lhes descubra outro laço, foram escritos durante a feitura do romance, e de uma ou doutra invisível maneira com ele se entrelaçam.
São, no fundo, como que a transcrição de conversas que mantenho com um interlocutor que, por imaginário, não me interrompe nem contradiz.
Este primeiro que foge à regra assinala a minha gratidão pelo que aprendi com: Padre António Vieira (1608-1697), Camilo Castelo Branco (1825-1890), J.M. Eça de Queiroz (1845-1900); Luis Buñuel (1900-1983), John Steinbeck (1902-1962), Erskine Caldwell (1903-1987), Federico Fellini (1920-1993), John D. MacDonald (1916-1986); Elmore Leonard (1925-2013), Ettore Scola (1931-2016), Raymond Carver (1938-1988).
Nascido há pouco já padece e teme. De nada lhe serve ouvir as falas, que por enquanto só tem olhos, um começo de entendimento, quase todas as palavras lhe são novidade, guarda sem saber que o faz, ou para que fim, para que proveito. Imagina. Repete. Volta a imaginar e desfia, alarga, compõe, mistura sem consciência nem saber, colhendo vidas e vozes, cheiros, cores, modos, desesperos.
É estar de fora, ser estranho, e ao mesmo tempo viver em todos eles, misterioso fado que uma vez ou outra o levará mais tarde a perguntar-se o sentido da vida, nunca apenas nossa, sempre enredada nas que já findaram, as que estão, as que se escondem num futuro que talvez nunca chegue.
Espera-te o desnorte quando julgares distinguir gente tua, ribeiras, areais, a mancha de povoados, o clarão de cidades no horizonte da noite.
Esquece mandamentos e regras, o que te aconselharam, o que julgas saber ou sentir, atenta apenas na bênção que por vezes inesperadamente chega: a de aperceberes os gritos que, por irem longe e para além dele, desafiam o som.
A vida não se arruma em prateleiras, dispensa rótulos, lojistas ou amanuenses, mas por falta de olhos, de coração, arrogância de sobra e escassa humildade, tomam alguns a superfície por fundura, imaginam cores onde só há cinza, abraçados na dança ritual da auto-satisfação fazem-se rapapés de sécias, adivinham cópulas na horizontalidade do oceano.
E talvez assim seja, que os há em todos os tempos, os que o Espírito visita. Mas tu, eu, uns quantos, só vemos ondas e tormenta, rebentação, o fim d’água que se perde no horizonte, o vento a soprar o areal.
Vamo-nos, esses e nós, enganando, desenganando, aos saltos e trambolhões, cai aqui pára além, ora crentes, depois aflitos, desesperados, medrosos, evitando olhar para o que fica, querendo amanhãs que nunca chegam, polindo a memória até que dela só reste o que brilha. Desfiando histórias que seriam de fadas se tivessem princípio, meio e terminassem felizes, mas são mais de sombra e desespero, sempre esquerda a roda da sorte.
Queres a vida em auto-estrada: longas rectas, pistas largas, sinais nas curvas, avisos por todo o lado, a partida e a chegada certas como se as garantisse a apólice.
Queres um trajecto de cores, festivais e sol de Primavera, música, gente linda, feliz, atletas morenos e musculados, loiras de rostos de anjo, belos seios, longas pernas, etéreas que nem mariposas.
Será, assim desejas, uma auto-estrada de gozos e acepipes, manjares refinados, néctares, infusões preparadas por anacoretas de longas barbas e muitos anos, viagens ao Shangri-La onde a felicidade tem palácio.
Irás em top gear, deixando longe, envoltos em pó e sujidade, os da mediania sem ambição, os que nasceram para obedecer, com pouco se contentam e sorriem quando se lhes manda.
Tolice, pimbalhice, parvoíce, lamechice. Os países e os indivíduos sofrem do mesmo, mas, como são maiores, nos países nota-se mais e aflige mais.
O emigrante perde sempre. Pode ter sido intensa a esperança com que partiu, grande a sua vontade de vencer, digna de respeito a perseverança com que fez frente às dificuldades, admirável o que alcançou. Podem, aqueles entre quem vive, reconhecer-lhe valia, chamá-lo um dos seus, passar por alto o que lhe encontram de exótico ou diferente. Pode ele sentir-se salvo, realizado, sabe o que aprendeu, julga os outros por si, mas no regresso não vai encontrar entusiasmo nem boas-vindas.
Às vezes pequenas, subtis, nalgumas ocasiões inesperadamente grosseiras, desdenhosas, da menina do balcão ao guarda-republicano, do burocrata ao empregado do café, do taxista à enfermeira, mesmo de amigos e conhecidos não vai faltar quem lhe aponte erros e diferenças. Olhe que não se diz assim! Então não sabe o que é uma francesinha? Disso já cá não há! Tivemos o multibanco antes do estrangeiro!
De nada lhe servirá esforçar-se, insistir, dar prova de que pertence: o ninho rejeita-o. Mas a ninguém dará conta da sua tristeza e desespero: afivela a máscara do sorriso, finge boa vontade, cegueira, entra no coro, diz que sim, realmente: cá é que é, cá é que temos o solzinho, as praias, a boa comida.
Aqui a experiência de nada vale, a idade não ajuda, vemo-nos numa perplexidade infantil a perguntarmo-nos porque terá sido, como aconteceu e com que motivo, descrentes do sentimento que em parte é vertigem, parte desatino e a raiva que a impotência dá.
Era uma amizade serena, marcada por pequenos gestos, lembranças daquelas que avivam a certeza do sentir e dão confiança, de palavras ditas na hora justa, de atenções tanto mais graciosas quanto o eram inesperadas.
E de súbito, como um raio que descarrega sabe-se lá que esperanças contrariadas, sonhos perdidos, favores negados, o que tinha a aparência de um pleno de camaradagem abre-nos defronte o vazio do fingimento, deixa-nos mais que sós.
Que isto da escrita tem os seus quês há quem o suspeite, quem julgue sabê-lo, como há quem alegremente passe por cima ou afirme que isso era antigamente, quando as regras eram outras e a fama, se vinha, demorava.
Uns carregam em permanência na mesma tecla, há-os que não se cansam de experiências, os atrevidos prometem realizar em fraseado a descoberta da pólvora, este e aquele reconhecem o germe de Estocolmo no fundo do seu sombrio talento.
Assim seja, parabéns a todos: os que sabem e os que desconhecem, os ingénuos, os esperançados, os que avançam às cotoveladas, os que precisam da roda-viva, os que escrevem desde os oito.
Uma vez por outra conseguimos isso: afastar o medo com a leveza de quem vira a página que acabou de ler. No geral, porém, o medo entra em nós viscoso e tenaz, sabe na perfeição onde somos frágeis, de nada adianta fintá-lo que ele descobre sempre a pouca valia do que julgamos ser o bom resguardo, a fraqueza da nossa armadura, a transparência da máscara.
Contra o verdadeiro medo, o grande, não há receita, remédio ou oração. Toma-nos por inteiro, torna real a força das pragas, sussurra no escuro que realmente somos apenas isso: pó, cinza, nada. Depois, com falsa caridade, diz-nos que acordemos do pesadelo, aconselha que sejamos fortes, ilude-nos com amanhãs e promessas de alívio.
Mas sabe quem o sofre: o grande medo é um eterno parceiro.
Ao nascer do dia passam curvados, sacho ao ombro, num andar lento e comedido que lembra o dos lapões e dos tibetanos, que por pequeno que seja nunca levantam os pés sobre um obstáculo, mas o rodeiam, a poupar energia para a jornada e a tarefa.
Estão a chegar ao fim da velhice, há muito esqueceram as alfaias que lhes pareceram modernas e mais que precisas, mas agora enferrujam no cabanal, o atrelado a servir de capoeira, os pneus vazios, as pitas a chocar no assento do tractor.
Meia dúzia de anos, se tanto, iludiram-se com as novidades, aprenderam a usar isto, aquilo, mas o atavismo e o tempo breve se encarregaram de lhes fazer ver que não era esse o caminho. Infelizmente não havia retorno, e quando deram conta já os anos lhes tinham gastado as forças.
Mas só a morte os há-de parar. É assim que todas as manhãs, tornados autómatos pelo instinto milenário, vão a caminho da tarefa inútil de plantar batatas que não precisam, couves que ninguém quer, gastando o que lhes resta de força na poda e na cava das oliveiras.
A sua presença impõe respeito. Há neles algo de primitivo e natural que nós outros perdemos. Nós, os que vamos existindo, sem raízes nem mistério que nos empurre.
A arte de existir, se arte se lhe pode chamar, está na paciência de sofrer o desânimo, no ver semicerrando os olhos, no respirar fundo e depois, lentamente, deixar que com o sopro escape também a náusea e a desilusão.
Porque tudo é teatro, adereços, bastidores, maquilhagem. São tantos os actores como os pontos que lhes sussurram as palavras a dizer, as atitudes a tomar, lhes mostram o caminho do proveito e os escolhos em que se tropeça.
Actores, pontos, os que tocam a música, vão todos em fila, que é o mais seguro, debitando a monótona ladainha da aceitação, confortados por igualdades e direitos que imaginam, por certezas que lhes garantem tão seguras como o nascer do Sol.
O remédio é entrar no cortejo e ir também, cantar com eles, bater palmas, mostrar entusiasmo quando o arauto anunciar a passagem do rei e o esplendor do seu manto.
Invólucro ou suporte, como agora se diz, no meu corpo acomodam-se uns quantos eus, entre os quais um que deve ter nascido velho, sofreu engano no fabrico, ou passou por tantas reencarnações que a visão que tem do ambiente em que vive e da gente com quem trata é tudo menos cómoda.
Suporta mal a falta de franqueza, é impaciente para com rodeios, sobe nele um azedume ao dar conta de que o tratam com habilidades, com jeitos, lhe mentem, tentam dar volta à sua maneira de ser. Quando isso sente pronto se abespinha, não há poder que então o demova, ganha uma teimosia de mulo e, como cabe ao género muar, nem cevada nem palha o atraem, menos ainda será alguém capaz de com açoites o fazer mudar.
É curioso que à primeira vista ninguém o dirá, pois aparenta brando, tem boas maneiras, como também é verdade que faz quanto pode para algumas vezes deitar água na fervura, porque além de cansativa a hostilidade põe a nu no oponente traços de carácter que ele prefere não ver.
Culpa tenho eu, bem sei, deste desalento que me empurra para a solidão e entristece, o desejo de evitar o semelhante, o repisar de momentos que afinal não foram como pareciam, de amabilidades e sorrisos que, ao recordá-los, surgem com expressão diferente, o afastamento revelando a máscara, pondo a descoberto a grima, o azedume, a falsidade, a cobardia.
No dia-a-dia correspondemos mal à imagem que mostramos ou à que do semelhante desejamos ver. Contudo, não haveria aí empeno, tanto nos habituamos ao teatro que a vida é, e em cujo palco somos razoavelmente capazes de representar o papel que ela exige, que de nós esperam, ou a que nos obrigam.
Do que não nos curamos, pelo menos eu não me curo, é da incapacidade de nos protegermos de nós próprios, de escaparmos àquele que no íntimo, guardião permanente, nos impede de esquecer e de enfeitar.
Cada cabeça tem direito à sua sentença, alturas há em que uma noite mal dormida leva a mudar de ideias, para não falarmos das consequências da azia ou da má digestão duma chanfana. Por conseguinte, pense cada um como bem deseja, e alegremo-nos de que não nos obriguem a olhar todos para o mesmo lado.
Há, porém, ocasiões em que esta minha indulgência se arrebita, leva a franzir o sobrolho e a perguntar-me se o outro tem de facto a razão que pensa.
Vem isto a propósito da afirmação recente de uma das cabeças pensantes deste país sobre como, além de danoso para a economia, o ensino é supérfluo.
Claro que o recebeu ele, e bom, mas o zé-povinho é melhor que não deixe subir a tontura à cabeça, não se meta em filosofias nem ciências, dispense Bach, desista de querer subir a cimos onde não pertence.
Aprenda ele um ofício e ensine essa humildade aos filhos, lembre-lhes que a cada macaco se destina um galho, e para benefício dos que aprenderam é melhor que os outros fiquem pelo chão.
Bem-aventurado aquele que na solidão da noite faz o balanço e conclui que, a traços largos e nos episódios maiores, a vida que leva é a que desejou. Bem-aventurado também o outro, que à mesma hora revê o seu passado, o seu presente, lembra os sonhos que teve, os que não realizou, e ao somar ganhos e perdas sorri contente, se diz que valeu a pena. Bem-aventurado ainda o que deixa correr os dias ao sabor da ocasião, indiferente aos atropelos e às benesses, perdendo a memória do que aconteceu, do que sentiu, interessado apenas no que vem a caminho.
Infeliz o que, desejando ser o que nunca será, querendo possuir o que não lhe cabe, se mata aos poucos julgando que vive.
Falamos de nós próprios e vivemos nos outros, para os outros, eles a condicionar-nos os actos, o pensamento, o modo, as intenções, impondo usos, aguardando gestos.
Digo-me livre, e minto, fingindo que não vejo as grilhetas que me ferem, os laços de seda que apertam como fios de aço. Vou por onde outros querem que vá, deles a escolha, meu o cansaço da jornada, o desatino de ignorar a meta, se é que de facto, como eles juram, se encontra uma ao fim de tantas léguas.
A minha suspeita é de que não há meta nem propósito, só caminho, e o que julgamos vida talvez seja apenas a transumância de um colossal rebanho, a busca fútil de um destino imaginado.
O próximo. Aquele que o geral das religiões manda que se lhe queira como a nós próprios, se lhe perdoe o mal que faz, o prejuízo que causa, o muito que incomoda. Que se use a esponja da misericórdia para lhe limpar o mau feitio, branquear-lhe a alma, esquecer o descaro com que, vez após vez, ele nos faz tropeçar, prejudica, dá palmadinhas nas costas ao mesmo tempo que prepara a rasteira, o golpe baixo, a intrujice.
É bico de obra querer seguir o mandamento e vermo-nos cara a cara com o pulha, pior ainda se é alguém que um dia mereceu amizade e respeito, mas caiu tão baixo na nossa consideração que ouvir-lhe o nome ou recordar-lhe as feições atrai a náusea.
Isto são pensamentos nada elevados, menos ainda pacíficos, para um começo do dia, mas a vida nem sempre tem lugar para atitudes nobres, altruísmos, perdões.
Oferece a gente a outra face? Certo e seguro a bofetada não demora.
O que verdadeiramente me interessa naquilo que escrevo é menos o conteúdo ou o tom, o estilo, o enredo, do que a possibilidade de comunicar. Em minha opinião nem sempre falho no propósito, mas também nunca são tantas como desejaria as vezes que o alcanço, de modo que não preciso de céu nublado para que desalente, basta-me ler um texto que por desleixo tornei público, quando nele haveria muito a podar e a colorir.
Dos textos, infelizmente, não se pode dizer o mesmo que dos filhos – ninguém sabe para o que nascem –, certo é que estes crescem e vão à sua vida, mas aqueles, quando me nascem aleijados e assim os deito ao mundo, atormentam-me como as pragas do Egipto.
É pena que o tom vitriólico da crítica de Fialho de Almeida (1857-1911), n’Os Gatos, à política, às instituições e à sociedade do seu século não tenha encontrado seguidores.
Em parte compreende-se. No tempo e tipo de sociedade em que vivemos são em demasia as cumplicidades, excessivas as cautelas, mais depressa se leva pena de prisão por um adjectivo do que por uma fraude, arrisca-se uma gracinha e adeus emprego.
Assim, da esquerda à direita são tudo punhos de renda, mãos de veludo, sabres de papelão, piruetas e malabarismos. Sobre os senhores que hoje mandam, nenhum colunista, cronista, analista e os mais istas de serviço mostra tê-los suficientemente no sítio para pintar retratos comparáveis aos que fez o homem de Vila de Frades:
«[…] assombra o predomínio que o tipo estúpido começa a ganhar na compostura (exterior pelo menos) dos nossos grandes funcionários! Há uma mistura de porco e cão de fila, de malandro e de títere, em muitas daquelas faces de primeiros oficiais de secretarias, de governadores civis, de tenentes-coronéis, de generais, de bispos, de deputados, de conselheiros d’estado e de ministros. Por sobre as golas das fardas, dos colarinhos altos de cerimónia, das voltas roxas e dos grilhões simbólicos das sociedades sábias e das ordens militares, as papadas oleosas dizem nutrições prevaricadas, apoplexias de bílis odienta, intrigas rábidas e satiríases secretas d’amor e vinho a horas perigosas… É ver-lhes o riso, uma careta, estudada ao espelho, para cada efeito cénico da vida; ouvir-lhes as vozes, de galãs professos ou pais nobres, destilando palavras maravilhosas, mas sem repercutir jamais sinceridades; e surpreendê-los por fim quando a máscara lhes tomba, e por detrás do cortesão surge o carnívoro, tigre ou hiena, que do seu antro segue o fio dum plano tenebroso, sindicato ou emboscada política, venda de pena ou venda de palavra».