Jinga, um destino

Luiz Felipe de Alencastro

O livro de Linda Heywood traz uma importante contribuição à história do centro-oeste africano e, mais largamente, à história do Atlântico Sul. O nome étnico da rainha de Dongo e Matamba comporta várias grafias. Como tenho feito noutros textos, optei neste posfácio pela designação usada em muitos documentos portugueses dos séculos XVII e XVIII que se referem à rainha “Jinga”, ao reino do “Dongo” e aos guerreiros “jagas”, em vez de Njinga , Ndongo ou guerreiros imbangala . Acresce que o nome “Jinga” vem assim grafado em relatos das congadas e cantos populares do Brasil de ontem e de hoje, como se lê nos versos recolhidos por Câmara Cascudo e citados mais adiante.

Linda Heywood é autora de estudos de referência sobre a primeira colonização do Congo e Angola (1483-1850), por vezes em coautoria com John Thornton, seu colega no departamento de estudos afro-americanos da Universidade de Boston. Caso pouco comum entre os estudiosos da história do centro-oeste africano seiscentista, ela também pesquisou e escreveu sobre a segunda colonização portuguesa, concluída em 1974, sobre temas econômicos (“The Growth and Decline of African Agriculture in Central Angola, 1890-1950”. Journal of Southern African Studies , v. 13, n. 3, 1987) e a guerra civil angolana (“Unita and Ethnic Nationalism in Angola”. The Journal of Modern African Studies , v. 27, n. 1, 1989), e, entre outras obras, coeditou o volume de história diplomática African Americans in U.S. Foreign Policy: From the Era of Frederick Douglass to the Age of Obama (2015).

Trata-se, portanto, de uma autora cuja produção acadêmica vai além dos escaninhos temporais e temáticos que costumam circunscrever as especializações universitárias. Sua biografia de Jinga é o reflexo de três décadas de investigações e de uma longa familiaridade com os arquivos e a bibliografia sobre a região Angola-Congo. Seus trabalhos sobre o tema do livro ainda não terminaram, porquanto Jinga viverá noutros tempos e continentes no livro que a autora redige atualmente.

Dada a singularidade do destino de Jinga e a presença mais ou menos simultânea em Angola e no Congo de militares, funcionários metropolitanos, traficantes portugueses e holandeses, assim como o clero regular, missionários jesuítas e capuchinhos portugueses, espanhóis e italianos, a vida da rainha de Matamba possui mais referências escritas do que a de qualquer outro soberano da África subsaariana seiscentista.

A diversidade das fontes corresponde às diferentes narrativas dos agentes históricos presentes na África centro-ocidental e à rivalidade que opunha os capuchinhos espanhóis e italianos aos jesuítas, ao clero regular e às autoridades portuguesas.

Linda Heywood descreve em profundidade a intervenção do cristianismo pregado pelos missionários, associado às armas portuguesas, na invasão e na desestabilização das sociedades nativas. Referindo-se a Ngola Kasenda, avô de Jinga e rei do Dongo na época de Paulo Dias Novais, primeiro governador de Angola, ela escreve: “A penetração religiosa e os avanços espirituais dos portugueses foram tão influentes em minar a autoridade de Kasenda quanto as conquistas militares”. Ela mostra como Ngola Kasenda e sua neta manobraram de permeio ao cristianismo do clero português, aos missionários e às facções religiosas nativas que se confrontavam nos reinos e nas comunidades angolanas. A respeito do peso das tradições nos momentos críticos da organização social, Linda Heywood chama a atenção para os sacrifícios humanos praticados nos enterros dos reis do Dongo. Mencionando os que ocorreram na morte de Ndambi a Ngola, o segundo rei do Dongo (1556-61), ela escreve: “Governantes posteriores, inclusive Jinga, consideravam esse costume de sacrifício humano uma parte essencial dos rituais funerários em honra aos reis de Ndongo e outros membros da elite”.

A autora sublinha ainda as tensões entre as ordens religiosas que conduziam as missões em Angola e a maneira pela qual Jinga se associou a capuchinhos italianos e espanhóis para tentar neutralizar a pressão militar, política e religiosa portuguesa e jesuíta tanto em Angola como na Europa. De fato, por iniciativa própria ou aconselhada por missionários, Jinga enviou várias cartas a Roma para obter proteção diplomática da Cúria e dos superiores dos capuchinhos. A dimensão das quizílias entre capuchinhos e jesuítas merece ser explicitada.

Fiéis a Portugal durante o período da União Ibérica (1580-1640) e, sobretudo, à dinastia bragantina depois da Restauração, os jesuítas lusitanos receberam mal o proselitismo dos capuchinhos em Angola e no Congo. Dependendo diretamente do papa através da Secretaria da Propaganda Fide, órgão romano que a partir de 1622 buscou contornar a autoridade filipina, e depois bragantina, sobre as missões ultramarinas, os capuchinhos nem sempre se identificavam com a política colonial portuguesa. Acresce que entre os capuchinhos havia, além de espanhóis, missionários oriundos dos territórios hispânicos na península Itálica, Sardenha e Sicília, os quais, na prática, eram súditos do trono de Madri. Por isso, na Restauração e durante a guerra luso-espanhola (1640-68), missionários espanhóis ou súditos da Espanha eram vistos com desconfiança e hostilidade em Angola e no Congo. O antagonismo se perpetuou na historiografia portuguesa sobre o centro-oeste africano até o final do salazarismo, com autores que consideravam os capuchinhos agentes do imperialismo (no sentido próprio e figurado) madrilense no século XVII .

Mas havia mais. Inseridos desde o começo da invasão portuguesa na economia atlântica e na sociedade colonial angolana, os jesuítas possuíam, para escândalo dos capuchinhos recém-chegados, fazendas e escravos em Angola. Por vezes também faziam tráfico de africanos de seu Colégio de Luanda para seu Colégio da Bahia, onde os escravos eram usados ou vendidos. A respeito do reino do Congo, onde a concorrência entre as duas ordens missionárias era mais viva ainda do que em Angola, frei Cortona, diretor da missão capuchinha em Matamba, escreveu a Roma em 1655 para denunciar os negócios dos jesuítas no tráfico de escravos congolês. Este era o motivo, dizia ele, da oposição dos jesuítas às missões dos capuchinhos na região. Na realidade, sem se oporem frontalmente ao escravismo, os capuchinhos não se envolviam no tráfico negreiro nem possuíam ou aceitavam escravos dos sobas (chefes locais angolanos), traficantes e colonos. Na circunstância, a disputa entre as duas ordens missionárias no Congo e Angola se insere na geopolítica global europeia e ultramarina.

O itinerário da vida pecaminosa de Jinga, até sua morte com reputação de santidade, foi inicialmente registrado em dois livros redigidos por missionários capuchinhos que a conheceram bem. Na versão dos dois autores, mal evangelizada e batizada com o nome de Ana de Sousa pelo clero português de Luanda em 1622, Jinga retornou ao paganismo e a tradições e costumes jagas até ser salva para Cristo em 1656, graças à persistência piedosa dos capuchinhos. Dessa data em diante, até sua morte, Jinga e seus súditos de Matamba passaram a viver com “temor de Deus e piedade cristã”, como escreve no seu livro frei Antonio da Gaeta, que persuadiu Jinga a voltar ao cristianismo. O segundo livro é de frei Cavazzi de Montecuccolo, que deu a extrema-unção e organizou o cortejo fúnebre da rainha de Matamba. A obra de frei Gaeta — nascido no reino de Nápoles e, portanto, súdito espanhol — sublinha todo o seu mérito e o dos capuchinhos na conversão final da rainha de Matamba. O título do livro, publicado em 1668, não deixa por menos: La Meravigliosa Conversione alla Santa Fede di Cristo della Regina Singa e del suo regno di Matamba...

Participante ativo das negociações entre o governador de Angola e a rai-nha de Matamba sobre o tratado de paz firmado em 1656, Gaeta reproduz em seu livro as explicações dela sobre sua apostasia. Segundo Jinga, seu abandono do cristianismo deveu-se à ausência de missionários em Matamba e à violência dos portugueses que lhe roubaram o reino do Dongo em 1624.

O livro de frei Cavazzi incorpora partes do livro de Gaeta e tem por título: Istorica descrizione de’ tre’ regni Congo, Matamba et Angola (1687). A obra foi em seguida traduzida em várias línguas, divulgando a história da conversão da rainha de Matamba para os leitores, missionários e fiéis da Europa e do Atlântico Sul. Cavazzi ficou fascinado por Jinga e foi seu primeiro biógrafo. Aliás, junto com John Thornton, Linda Heywood prefaciou uma tradução recente, ornada de uma excelente cartografia, dos capítulos da Istorica descrizione referentes à rainha de Matamba, publicada em Paris com o título Njinga, reine d’Angola: La relation d’Antonio Cavazzi de Montecuccolo (2010). Em português, há a tradução do livro de Cavazzi acrescida dos comentários do capuchinho frei Graziano Maria Saccardo da Leguzzano, editada em dois volumes em Lisboa (1965). Como escreveu o historiador angolano Adriano Parreira, as notas do comentador são tão substanciosas e magistrais que os dois volumes deveriam ser considerados como uma nova obra, designada como edição Cavazzi-Leguzzano. Linda Heywood faz uma leitura fina das observações de Gaeta e Cavazzi sobre Jinga, assim como dos autores que se inspiraram nos escritos dos dois missionários.

Note-se que, quando os dois livros foram publicados na Itália, a Europa sofria as consequências dramáticas do mais sangrento conflito de sua história, a Guerra dos Trinta Anos (1618-48). Movida por conflitos religiosos e jogos de poder entre as monarquias, essa guerra deu lugar a fanatismos, massacres e pilhagens cuja lembrança pode ter levado leitores de Cavazzi a relativizar as violências retratadas no reino de Matamba.

Outra fonte importante da época é o livro de Antônio de Oliveira de Cadornega, História geral das guerras angolanas (1680-81). Cadornega viveu 51 anos em Massangano e Luanda e seu livro se baseia na documentação das câmaras das duas cidades e na tradição oral dos angolistas (colonos portugueses de Angola) e dos nativos angolanos (“negros noticiosos”). Seu livro defende o ponto de vista dos colonos, suas lutas e seus méritos para explicitamente compará-los aos colonos do Brasil, os brasílicos, que haviam vencido e expulsado os holandeses de Pernambuco. Nada de similar foi escrito em nenhum outro enclave europeu na África até a emergência, nas últimas décadas do século XIX , da identidade “pied-noir” na Argélia francesa. Embora a História geral só tenha tido uma edição completa em 1940, seu texto não era desconhecido. Havia uma cópia completa do manuscrito na Academia de Ciências de Lisboa, outra, também completa, com partes traduzidas em francês, na Biblioteca Real (depois Nacional) de Paris desde os anos 1730 e uma cópia de um dos três volumes no Museu Britânico desde meados do século XIX .

Um ponto a ser ressaltado na obra dos três autores concerne à longevidade de Jinga, parte integrante de sua reputação e da lenda criada em torno de seu reinado em Matamba.

Na sua fala reproduzida no livro de frei Gaeta, Jinga diz que foi batizada fanciulla , isto é, “jovem ou donzela”. A expressão cola mal com os quarenta anos que ela teria a essa altura (1622), conforme o ano de seu nascimento indicado por Cavazzi (1582), retomada neste livro por Linda Heywood e pela maioria dos autores. Outro acontecimento, o combate de Jinga na ribeira do rio Dande, na batalha de Sengas de Kavanga, travada em 1646 contra os portugueses, que a autora considera “épica” e descreve com vivacidade, também lança dúvidas sobre sua suposta data de nascimento. No confronto, Cadornega combatia junto com as tropas que atacaram o quilombo (acampamento de guerra) de Jinga e foi testemunha ocular da bravura da rainha de Matamba. As forças de Luanda dispunham de mosqueteiros portugueses e angolistas, combatentes angolanos ou são-tomenses vestidos à portuguesa (“cangoandas”), esquadrões de arqueiros e zagaieiros nativos, e tinham até pequenos canhões que atiravam metralha. Mas Jinga não arredou o pé e lutou com seus soldados, “como se fora um valente generalíssimo, tomando ela a vanguarda e acometimento de nosso exército”, nas palavras de Cadornega. Ora, segundo a data proposta por Cavazzi, Jinga teria nessa época 64 anos. Idade meio avançada, considerando as agruras de sua vida guerreira, para combater e comandar seus soldados durante um dia inteiro e, na caída da noite, conseguir furar o cerco inimigo e escapar ilesa.

Por isso, junto com Arlindo Correia, faço parte da minoria dos historiadores que questiona sua data de nascimento e penso que, quando morreu, em 1663, Jinga tinha idade bem inferior aos provectos 81 anos indicados por Cavazzi. De todo modo, na época da conclusão de seu manuscrito (1681), dezoito anos depois da morte de Jinga, Cadornega diz que havia gente em Angola acreditando que ela ainda vivia, escondida em seu quilombo, “velha e despossuída de seu reino e senhorios”. Volto em seguida à lenda sobre sua longevidade e seus feitos.

Linda Heywood destaca o marco histórico causado pela invasão holandesa em Angola no ano de 1641, depois de terem conquistado parte do Nordeste brasileiro em 1630: “Em 1641, um novo ator entrou em cena na África Central”. Na realidade, no mesmo movimento, entra em cena na África Central um segundo novo ator: o brasílico, o português estabelecido no Brasil. Ponto que deve ser ressaltado para os leitores desta tradução brasileira do livro.

Nos socorros vindos da Bahia e do Rio de Janeiro para atacar os holandeses e Jinga, desde 1644, chegam oficiais, soldados e traficantes que vão introduzir, mais duradouramente que os holandeses, seus interesses no centro-oeste africano. Comandando a força expedicionária saída da Guanabara que expulsa os holandeses de Angola e São Tomé em 1648, Salvador Correia de Sá, governador do Rio do Janeiro, filho e neto de governadores da mesma capitania, senhor de engenhos na região de Campos, assume o governo angolano. Com suas tropas da expedição, majoritariamente financiada por negreiros fluminenses, ele ataca Jinga e outros reinos da região. Em 1650, um ano e meio apenas depois de sua posse em Luanda, o capuchinho frei Bonaventura de Sorrento, missionando em Angola desde 1645, denunciava numa carta à Propaganda Fide, em Roma, a carnificina e as escravizações perpetradas pelo governador Salvador de Sá e suas tropas formadas em boa parte por brasílicos: “Desbarataram muitas aldeias, mataram muita gente e fizeram mais de sete mil escravos”.

Jinga também registrou o novo patamar da ofensiva negreira desencadeada pelos escravocratas brasílicos, considerando Salvador de Sá um dos mais vorazes governadores de sua época. Ele havia se comprometido a libertar Kambu, irmã de Jinga aprisionada em Luanda, e recebeu muitos escravos que ela mandou como pagamento do resgate, mas não cumpriu a promessa e continuou guerreando Matamba. Linda Heywood descreve as chantagens e extorsões a que Jinga foi submetida para obter a libertação de Kambu em 1656. Em 1655, quatro anos depois de Salvador Correia de Sá ter deixado o governo de Angola, a rainha Jinga ainda reclamava para o novo governador em Luanda: “Estou tão queixosa dos governadores passados, que me prometeram entregar minha irmã, pela qual tenho dado infinitas peças [escravos]... e nunca me entregaram ela; mais ainda, [...] moviam logo guerras, com que me inquietaram e fizeram sempre andar feito jaga, usando tiranias [...]. E de quem estou mais queixosa é do governador Salvador Correia, a quem dei as peças”.

A ofensiva negreira brasílica prossegue após o governo de Salvador Correia (1648-51), com capitães e tropas vindas de Pernambuco, sobretudo com os dois heróis da guerra contra os holandeses premiados por João IV com o governo de Angola, João Fernandes de Vieira (1658-61) e André Vidal de Negreiros (1661-66). Trazendo mais tropas brasílicas, esses governadores expandem o domínio territorial português e a pilhagem negreira. Aclimatadas aos combates e às doenças tropicais (ao contrário das tropas europeias, lusas e holandesas presentes em Angola), integrando veteranos de guerras contra os holandeses, índios e quilombolas, as tropas brasílicas têm um papel decisivo em algumas batalhas-chave. A partir dessa época acentua-se um elemento central da afirmação dos interesses brasílicos — e, depois de 1822, brasileiros — no Atlântico Sul: a navegação bilateral entre o Brasil e Angola, em detrimento das viagens triangulares que começavam e terminavam em Lisboa.

Linda Heywood aponta os reides de preação de nativos das tropas de André Vidal de Negreiros em Matamba em 1663, pouco antes da morte de Jinga, quando foram escravizados e enviados para Pernambuco e Paraíba, terra de Negreiros, mais de quatro mil súditos de Jinga e de seus aliados. A ofensiva de Vidal de Negreiros encetava os reides que culminaram com a batalha de Ambuíla (1665), na qual tropas luso-pernambucanas e seus aliados locais destroem o exército do reino independente do Congo e matam o rei local, os membros de sua corte e seus aliados vindos de Matamba. A batalha, maior embate colonial na África desde Alcácer-Quibir (1578), precipita o declínio dos reinos do Congo e de Matamba, governado nessa época pela rainha Kambu (dona Bárbara), sucessora de Jinga.

A presença de oficiais e milicianos brasílicos nas guerras angolanas pode ser observada desde 1646. Na grande batalha de Sengas de Kavanga, citada acima, o capitão do regimento luso-africano que atacava Jinga e seus homens era Paulo Pereira. Afrobrasílico, capitão do terço de Henrique Dias em Pernambuco, ele integrou, no começo de 1645, um contingente de duzentos soldados enviados da Bahia em socorro de Angola. Desembarcadas no porto de Quicombo, as tropas foram emboscadas por jagas da região de Benguela e quase inteiramente massacradas. Paulo Pereira foi um dos raros sobreviventes do ataque; juntou-se, em seguida, às tropas que cercaram Jinga no seu quilombo da várzea de Kavanga e depois combateram os holandeses. Salvador de Sá o nomeou sargento-mor da tropa africana em Benguela. Cadornega, que o conheceu e o admirava, conta sua morte extravagante, sucedida pouco depois de reides de preação em Calumbo, sudeste de Luanda, próximo ao território de Matamba. Na sequência, Paulo Pereira foi atacado e morto por um leão: “E assim acabou este homem tão benemérito na boca desta besta feroz”, conclui pesaroso Cadornega. Ao longo de sua vida militar, Paulo Pereira comandou afrobrasílicos e africanos em Pernambuco lutando contra os holandeses, a quem combateu de novo em Angola, assim como a Jinga, comandando afrobrasílicos, luso-angolanos e angolanos. Menciono o fato para assinalar que uma parte dos milicianos e oficiais que saíram do Brasil para combater em Angola, mais afortunados que Paulo Pereira, voltaram às suas capitanias de origem, trazendo para terras brasileiras relatos sobre a vida e as batalhas de Jinga. De fato, de 1644 até as primeiras décadas do século XVIII , várias expedições militares partiram do Brasil em socorro dos colonos portugueses de Angola. Sem contar os oficiais, padres e traficantes que circulavam nas duas margens do Atlântico Sul.

Câmara Cascudo registra dois versos do folclore nordestino que evocam o feitio belicoso da rainha de Matamba: “Mandou matar Rei Meu senhor! E quem mandou foi Rainha Jinga!”. Ou ainda: “Rainha Jinga é mulher de batalha! Tem duas cadeiras arredor de navalha!”.

Embora o assunto seja tema de seu livro seguinte, intitulado Njinga, History and Memory in the Angola, Europe and the African Diaspora , Linda Heywood aborda no final desta biografia a presença de Jinga na cultura afro-brasileira, em particular nas congadas, onde a rainha Jinga às vezes se contrapunha ao rei do Congo. Mas a associação entre Jinga e o Brasil também permeava, pejorativamente, círculos mais elitistas da vida cultural luso-brasileira. Abespinhado com as broncas internas da Academia das Belas Letras de Lisboa — presidida pelo poeta carioca Caldas Barbosa —, o poeta Bocage, nascido em Setúbal, redige em 1792 um soneto, que citei alhures, ofendendo a Academia e seu presidente. Fazendo referência ao fato de que Caldas Barbosa era mulato, filho de uma ex-escrava angolana, Bocage o insulta, chamando-o de “neto da rainha Jinga” e atribuindo-lhe ascendência simiesca com o “animal sem rabo”:

Preside o neto da rainha Jinga

À corja vil, aduladora, insana

[...]

Lembrou-se no Brasil bruxa insolente

De armar ao pobre mundo estranha peta

Procura um mono, que infernal careta

Lhe faz de longe, e lhe arreganha o dente

[...]

Conserva-lhe as feições na face preta;

Corta-lhe a cauda, veste-o de roupeta

E os guinchos lhe converte em voz de gente.

Deixa-lhe os calos, deixa-lhe a catinga;

Eis entre os Lusos o animal sem rabo

Prole se aclama da rainha Jinga.

A polissemia e a homonímia da palavra “Jinga” também ajudaram a propagar relatos e lendas sobre a valentia e a quase imortalidade da rainha de Matamba. Depois da morte de Kambu, seu marido Jinga a Mona toma o poder. Na sequência, houve um rei Jinga (Francisco Ngola Kanini) no reino conjunto do Dongo e Matamba, e uma rainha, sua irmã e sucessora, Veronica Guterres, que ganhou o título de rainha Jinga no seu longo reinado (1681-1721). Na época de sua subida ao trono, Matamba, na região de Malanje, já era chamado de território jinga. Há também ali um dialeto do quimbundo denominado língua jinga. Assim, quando o capitão do navio negreiro Santo Antônio e Almas , saído da Bahia em 1682, registrou o transporte de 74 soldados e quinze cavalos até Luanda para socorrer as tropas portuguesas engajadas na “guerra da Jinga”, havia gente no recôncavo e alhures convencida de que se tratava da mesma Jinga combatida pelos companheiros de armas de Paulo Pereira embarcados na mesma Bahia em 1645. Por vezes governado por rainhas, Matamba conheceu outras soberanas denominadas Jinga, tais como a rainha Ana II Guterres da Silva, no trono entre 1742 e 1756, e a rainha Ana III Guterres (morta em 1767).

“De fins do primeiro quartel do século XVII até cerca da primeira década do século XIX foi a nação dos ambundos quase exclusivamente governada por um escasso número de mulheres a quem os portugueses usualmente chamavam rainha Jinga”, resume o historiador angolano Fernando Campos. Desse modo, houve em Angola várias “guerras da Jinga que causaram espanto e curiosidade no Brasil e em Portugal”.

Romances históricos recentes de dois conhecidos autores angolanos, A gloriosa família (1997), de Pepetela, e, sobretudo, A rainha Ginga, de José Eduardo Agualusa (2015), ajudaram a recentrar a narrativa sobre a rainha Jinga no cenário seiscentista, na vida da neta de Ngola Kasenda, morta em 1663, biografada por Cavazzi, cujo nome oficial, inscrito nas suas estátuas monumentais na praça Kinaxixe, em Luanda, ou no centro de Malanje, sua terra, é Mwene Njinga Mbandi, ou seja, Chefe Njinga Mbandi.

Mas nas congadas e na memória afro-brasileira Njinga Mbandi mistura-se a outras rainhas Jinga sempre jovens, sempre vivas. Como escreve Câmara Cascudo, a rainha de Matamba “sem jamais saber da existência do Brasil, continua na memória brasileira, íntegra, feroz, na autenticidade do tipo voluntarioso, decisivo, legítimo... Jinga vive”.