CAPÍTULO 4
Como tudo começou: todo poder a Curitiba!
Pode um procurador-geral dispor sobre a vida ou morte política de um deputado, senador ou até mesmo de um presidente da República como se fosse um imperador romano deliberando sobre a vida de um cidadão comum? Claro que não. Vivemos numa democracia, e um pensamento dessa natureza certamente seria um delírio. Mas, no início de 2015, depois da mais tensa eleição presidencial desde a redemocratização, o procurador-geral parecia investido de poderes imperiais.
Caberia a mim decidir quem estaria na lista de inquéritos a serem abertos a partir das delações de Paulo Roberto Costa e Alberto Youssef. A inclusão no rol dos investigados, que a imprensa batizou de “lista de Janot”, poderia significar o fim da carreira política do nome citado. Ora, era um exagero. Os pedidos de inquéritos obedeceriam a critérios técnicos, legais, e não à vontade de um procurador. E uma investigação é um ponto de partida. Nem toda investigação resulta em condenação. Mas nuances desse tipo não teriam lugar naquele cenário político carregado por uma extemporânea guerra ideológica. E o combate à corrupção, que deveria ser uma bandeira perene de todos, não importa se de esquerda ou de direita, estava se tornando uma arma letal na reconfiguração política no início do segundo mandato da ex-presidente Dilma. Como esse clima de caça às bruxas começou?
No primeiro semestre de 2014, recebi no meu gabinete Renita Cunha Kravetz, chefe da Procuradoria da República no Paraná. Ela veio me pedir a criação de um grupo especial para tocar a investigação de um caso sobre doleiros oficiado perante a 13
a
Vara Federal de Curitiba. Não me deu maiores detalhes. Disse apenas que era “coisa grande” e que demandaria mão de obra qualificada e uma boa estrutura.
Youssef e outros três doleiros menores já estavam presos, mas ainda não havia qualquer sinal das delações dele e de Costa. Outro detalhe: o procurador do caso, Pedro Soares, seria substituído por outro, Deltan Dallagnol. Até hoje não entendi por que Soares saiu do caso, mas, se era vontade dele, tudo bem. Dallagnol seria o substituto natural. Decidi criar a força-tarefa de Curitiba. Dallagnol teria carta branca para montar o grupo e para tocar livremente a investigação. Era a primeira vez que se criava esse tipo de força-tarefa no Ministério Público Federal. A ideia da força-tarefa se encaixava numa promessa de minha campanha de criar unidades volantes de combate à corrupção. A Itália tem a Procuradoria Nacional Antimáfia. Nós teríamos uma Procuradoria Nacional Anticorrupção.
Em 2013, quando fui escolhido procurador-geral, o debate sobre corrupção já permeava a vida pública brasileira. Em qualquer evento público, sempre aparecia um jornalista com perguntas sobre corrupção. Suponho que fosse reverberação do julgamento do mensalão. Transmitido pela TV, o julgamento ajudou a popularizar as discussões sobre desvios de conduta. No país do futebol, nossos milhões de técnicos estavam cedendo a vez a milhões de implacáveis juízes do dinheiro público. Então, a força-tarefa, embora uma novidade, casava com a proposta de melhorar nossa fiscalização contra os desvios de dinheiro público. O grupo foi criado e teve todas as condições de trabalhar, passando até a ocupar um conjunto de salas num prédio fora da sede do Ministério Público. Ali os procuradores teriam tranquilidade e segurança para fazer o trabalho necessário.
A partir desse momento, a Lava Jato foi crescendo gradativamente. Eu só sabia dos episódios mais relevantes, como abertura de novos inquéritos, delações e prisões, por intermédio da imprensa. Certa vez, numa entrevista coletiva, um repórter me perguntou qual seria a dimensão da investigação. Eu, num tom grave, disse: “Grande, muito grande, muito dinheiro”. O repórter guardou a informação e mais tarde se aproximou em busca de mais detalhes. E eu, ainda com ar de mistério, só sabia dizer: “É uma investigação grande, nunca vi tanto dinheiro”. Involuntariamente, eu estava numa posição cômica. Num determinado momento, depois que manifestei o desconforto de chegar a um local público e ser abordado por jornalistas para falar de uma ação que eu nem sequer sabia se existia, um dos procuradores de Curitiba passou a ligar para um dos meus assessores às vésperas das operações. Em geral, se limitava a dizer: “Amanhã vai ter festa”. Era assim que ficávamos sabendo que haveria uma nova operação. Mas não sabíamos quais eram os alvos e quais os motivos das prisões e buscas. Isso nos deixava com uma visão parcial da questão; também nos livrava, porém, dos riscos de vazamento, outra constante fonte de intrigas desde o início das investigações.
Ao longo do ano, quando começaram a surgir nomes de políticos com foro no Supremo, Dallagnol e Carlos Fernando dos Santos Lima, outro procurador da força-tarefa, pediram que eu autorizasse a continuidade deles nos interrogatórios. A atribuição era do procurador-geral, mas, por razões práticas, achei melhor que eles mesmos, que já estavam à frente do caso, o fizessem. Depois me mandariam o pacote das delações, e, aqui em Brasília, conduziríamos os inquéritos e eventuais processos.
Cadê as provas?
No fim de 2014, quando PSDB e PT se debatiam ainda em torno do resultado das eleições presidenciais, como se o pleito não tivesse encerrado a disputa, Teori Zavascki homologou os acordos de delação de Alberto Youssef e Paulo Roberto Costa. As delações deles eram vistas como duas bombas que implodiriam as estruturas políticas em Brasília. Metade do Congresso Nacional cairia. O Palácio do Planalto seria duramente atingido. O estopim estava aceso, e bastaria a nós, destinatários das delações em Brasília, buscar uma boa posição para assistir de camarote à implosão de um sistema podre. Verdade?
Não foi bem assim. Quando vimos o conteúdo das delações conduzidas por Curitiba e começamos a destrinchar os anexos das “bombas atômicas que iam arrebentar Brasília”, tivemos uma grande decepção.
“Isso tá uma merda, não tem nada, tá raso esse negócio!”, eu disse numa conversa com Pelella e Vladimir Aras, assessores próximos.
Aras se lembrou, então, de um diálogo que teve com Souza, menos incensado que Dallagnol, mas, certamente, o principal estrategista da força-tarefa no Paraná. Segundo ele, Souza disse que a intenção da força-tarefa era “horizontalizar para chegar logo lá na frente”, e não “verticalizar” as investigações, e que, por isso, teríamos dificuldade em fundamentar os pedidos de inquérito. O que seria “horizontalizar para chegar logo lá na frente”? Não entendi direito o conceito. Creio que meus colegas também não. Só depois de muito tempo, quando vi Sergio Moro viajando ao Rio de Janeiro para aceitar o convite para ser o ministro da Justiça do governo Jair Bolsonaro, é que me veio de novo à cabeça aquela expressão. Horizontalizar implicaria uma investigação com foco num determinado resultado? Eu não quis imaginar isso lá atrás e também não quero me esticar nesse assunto agora, mas isso ainda me incomoda um bocado, sobretudo quando penso em dois episódios separados no tempo, mas muito parecidos.
Estou falando dos vazamentos de trechos de depoimentos de Youssef e do ex-ministro Antonio Palocci na reta final das eleições presidenciais de 2014 e 2018, respectivamente. As declarações de Youssef, segundo o qual Lula e Dilma sabiam das falcatruas na Petrobras, eram destituídas de qualquer valor jurídico. Youssef não compartilhava da intimidade do Palácio do Planalto e não tinha provas do que dizia. Mas, mesmo assim, eram de forte conteúdo político, e não há dúvidas de que tiveram enorme impacto eleitoral. A divulgação de parte da delação de Palocci teve reflexo menor. O tema abordado já não era novo. Mas não é demais supor que também ajudou a municiar um dos lados do jogo político. Esses dois casos, a meu ver, expõem contra a Lava Jato, que a todo momento tem que se defender de atuação com viés político.
***
Agora, voltando aos fatos e deixando de lado essas considerações de natureza subjetiva, não teríamos como pedir alguns importantes inquéritos só com base nas parcas informações fornecidas por Youssef e Paulo Roberto Costa. O Supremo certamente não atenderia a esses pedidos. Seria um vexame. Por outro lado, se não pedíssemos inquéritos sobre os políticos referidos, depois de tudo que vinha sendo dito sobre os segredos do doleiro e do ex-diretor da Petrobras, seríamos acusados de não levar adiante uma das mais importantes etapas da Lava Jato, que era a caçada a deputados, senadores e ministros, os donos do poder, que ainda estavam no topo. Estávamos numa enrascada. Naquele dia fui para casa deprimido. Dizia para mim mesmo: Eu tô ferrado, todo mundo especulando com o
negócio da lista do Janot, todo mundo fazendo um escarcéu danado, e a lista do Janot vai virar um traque
.
Botando ordem na casa
Na sequência, tive que tomar duas decisões. A primeira, muito particular, foi que, a partir dali, eu não mais delegaria parte das minhas atribuições à força-tarefa de Curitiba. Os próximos acordos de delação relacionados a políticos com foro especial seriam conduzidos pela minha equipe de Brasília. Eu tinha criado um grupo de trabalho, vinculado ao meu gabinete, para conduzir as investigações perante o Supremo. Caberia a integrantes desse grupo tocar também todas as colaborações onde aparecessem suspeitos com prerrogativa de foro, mesmo que as negociações tivessem tido início em Curitiba. Se mais tarde eu seria responsabilizado pelo sucesso ou fracasso dessas delações, nada mais justo que atuar nesses acordos desde o nascedouro.
A outra decisão foi arregaçar as mangas e promover, em tempo recorde, novos depoimentos de Youssef e Costa. Na corrida contra o relógio, ouvimos os dois, em Curitiba e no Rio de Janeiro, inclusive no Carnaval. Enquanto o país caía na folia, os delatores eram instados a fornecer mais detalhes e a ampliar as narrativas sobre o envolvimento de políticos com a corrupção na Petrobras. Não bastava citar nomes. Eles teriam que apresentar uma narrativa mais detalhada, mais consistente e indicar os caminhos para as provas. Tivemos também que fazer às pressas pesquisas em fontes abertas, como as contas de campanhas no Tribunal Superior Eleitoral (TSE), para checar nomes, valores e outros dados circunstanciais necessários para definir quem estaria na lista de investigados.
Foi um sufoco. A imprensa pressionava muito por nomes, por respostas rápidas. Era como se a solução de nossos problemas políticos e sociais estivesse entrelaçada à lista. Alguns grupos da sociedade civil também começavam a cobrar diretamente da Procuradoria-Geral a degola dos corruptos. Numa forma cínica de fazer pressão, alguns colocavam em dúvida nossa capacidade, independência e mesmo vontade de desmantelar a estrutura política que se apossara da Petrobras. Acusavam-nos de conluio velado com o poder. No outro extremo, potenciais investigados começavam a se movimentar. Alguns pediam audiência para jurar inocência. Outros, mais arredios, mas muito mais agressivos, tentavam usar a força política para conter o avanço das investigações.
O sarrafo é igual para todos
Por fim, o trabalho ficou pronto. Não era exatamente o que queríamos, mas era o possível, dentro daquelas circunstâncias. De certa forma, o resultado estava adequado aos objetivos imediatos. Pedimos e o ministro Teori Zavascki autorizou a abertura de 21 inquéritos, de uma única vez, contra 50 políticos. Outros dois inquéritos já haviam sido instaurados anteriormente. Era a primeira vez que o Supremo abria tantos inquéritos contra deputados, senadores e ministros, entre outros, num mesmo caso. Não era a bomba atômica que se imaginava. Não derrubou a metade do Congresso como havia se especulado. Mas abriu uma avenida para a Lava Jato avançar em direção ao centro do poder. Não foi uma tarefa fácil. Uma coisa é uma investigação na primeira instância, que depende da caneta de um juiz. Muito mais complicado é lidar com políticos influentes, protegidos por mandatos, e, ao mesmo tempo, enfrentar a diversidade de opiniões de onze ministros do STF.
***
Dentro do pacote de investigações, a imprensa deu destaque para os inquéritos abertos contra Eduardo Cunha e Renan Calheiros e para os arquivamentos das investigações contra o senador Aécio Neves (PSDB-MG), ex-candidato a presidente da República, e a presidente Dilma Rousseff.
Cunha e Calheiros eram os dois principais nomes na linha sucessória da Presidência. Cunha tinha acabado de se eleger presidente da Câmara, com o apoio do grupo de Aécio Neves, e arrotava poder frente a um governo novo, já enfraquecido pelos seguidos esfregões da Lava Jato. Ele tinha tanto poder que chegou até a criar sessões gerais da Câmara só para convocar e expor ministros do governo à intempestividade de um parlamento indócil. O ministro da Educação, Cid Gomes, foi um dos que não resistiu à provocação e, por isso, acabou sendo demitido – ao que tudo indica, a contragosto da chefe, a presidente Dilma. Renan Calheiros atraía os holofotes porque liderava um dos mais poderosos grupos no Congresso Nacional e, até ali, mantinha a fama de passar ileso por alguns escândalos.
Tempos depois, um amigo me perguntou se fora difícil pedir inquérito contra duas das principais autoridades do país naquele momento. Eu respondi que a apuração preliminar tinha sido tensa, mas que não houvera drama, pelo menos da nossa parte, na hora de fazer os pedidos ao Supremo. Entre nós, o conforto que um dava para o outro era simples.
“Nós temos que fazer, senão estamos fodidos. Se temos que fazer, vamos fazer! Ah, mas é presidente do Senado, é presidente da Câmara, foda-se. Se fosse o cara da esquina, não estaríamos descendo o cacete nele? Qual a diferença desse cara para o outro? Não, não, vamos fazer!
Então assim foi. Não teve um traço dramático nessa escolha, porque era uma decisão técnica. Não é que você fique feliz. É lógico, dá um desconforto grande, você vê que vai brigar com a República inteira. Você pensa:
Essa geringonça vai cair toda nas minhas costas, mas tem que ser feito
. Fizemos.
Há quem diga que os primeiros inquéritos, sobretudo os relativos a Cunha e Calheiros, foram determinantes na política do país. Embora adversários, os dois passaram a fustigar o governo para que, a partir daí, Dilma tentasse segurar o Ministério Público. Não imaginavam que a presidente também poderia entrar na mira dos investigadores, como mais tarde acabou acontecendo? Bom, o certo é que, a partir do primeiro inquérito, Cunha implicou com a presidente, até chegar ao ponto de, alguns meses depois, acolher o pedido de impeachment dela. Renan chegou a devolver para o governo a medida provisória de redução da desoneração fiscal, num gesto claro de hostilidade, cujo alvo parecia ser a Procuradoria-Geral e a nova etapa da Lava Jato.
No fogo cruzado dos atingidos pelos inquéritos, tivemos que gastar muita energia também para explicar por que não estavam na lista os nomes de Dilma e Aécio Neves. Os dois simplesmente não se enquadravam nos critérios que definimos previamente sobre quem deveria ser alvo de inquérito. No nosso entendimento, não teríamos base legal para pedir inquérito contra políticos citados de forma superficial numa determinada delação. Se o delator diz apenas que “ouviu dizer”, que não foi testemunha do suposto crime e não tem como indicar provas, o caso deve ser arquivado. Caso contrário, teríamos que abrir investigação contra todos os políticos acusados pelos adversários, ou seja, contra quase todos os políticos.
No caso de Dilma, Paulo Roberto Costa fazia referência à participação dela no Conselho de Administração da Petrobras na época da compra da refinaria de Pasadena, ou seja, ela participou da reunião que aprovou a compra. Costa não indicou, no entanto, que a presidente tivesse obtido alguma vantagem no negócio ou mesmo que tivesse agido deliberadamente contra os interesses da companhia. Outro detalhe: um presidente não pode ser investigado por atos estranhos ao mandato enquanto estiver no cargo. Esse entendimento, aliás, foi confirmado por decisão posterior do ministro Teori Zavascki.
O caso de Aécio Neves era um pouco diferente. Youssef disse que, segundo o ex-deputado José Janene, já falecido à época da delação, o dono da empresa Bauruense, Airton Dairé, pagava uma mesada para o senador em troca de vantagens em Furnas, uma área de influência do ex-presidente do PSDB mesmo durante o governo do PT. A acusação parecia crível, mas tínhamos um problema: as duas testemunhas que poderiam confirmar a mesada, Janene e Dairé, estavam mortas. Eu até disse para minha equipe que, se arquivássemos o caso, poderíamos estar criando um Silvio Berlusconi no Brasil. Berlusconi se projetou no cenário político italiano quando viu seus adversários naufragarem na tormenta da Operação Mãos Limpas. Depois, quando já estava no poder, acabou sendo, ele próprio, cravejado de denúncias de desvios. A petição do inquérito já estava pronta quando Lauro Cardoso, outro assessor muito próximo, se juntou ao coro de outros colegas contrários à investigação.
“Janot, se você pedir esse inquérito, vai se enfraquecer, porque estará decidindo contra seus próprios critérios”, disse.
E foi assim, debaixo de muita discussão, que o senador Aécio Neves se viu livre do primeiro inquérito. Ele não teria a mesma sorte, no entanto, na delação da J&F, mas esse é um assunto para outro capítulo.
A imprensa passava ao largo das tensões e dos debates técnicos que eu e minha equipe fazíamos diariamente. O que sobressaía eram as insinuações de que, por motivos geográficos, eu estava protegendo meu conterrâneo Aécio Neves e, para escamotear o privilégio, estendia o mesmo tratamento à presidente Dilma. Enfim, éramos atacados quando pedíamos os inquéritos e também quando não pedíamos. Não há como atuar num caso envolvendo políticos e não ser taxado de partidarismo. Eu estava plenamente consciente dessas inflexões e, por isso, reforçava com meus assessores que faríamos o trabalho necessário, sem levar em conta reações do mundo político e sem qualquer preocupação com vaias ou aplausos. Excluir um nome da “lista do Janot” era, aparentemente, tão desgastante quanto incluir. Então, não custa repetir, o que deve imperar mesmo é a letra fria da lei. Se tivéssemos que fazer, faríamos. Fizemos.
O envelope envenenado
O clima estava tão envenenado que até um gesto de cortesia era encarado com hostilidade. Quando a lista ficou pronta, eu decidi avisar às autoridades que, a partir daquele momento, elas estariam formalmente no rol dos investigados. Era um procedimento antigo. Ao final de cada apuração, um assessor levava ao investigado um envelope com um comunicado sobre a investigação. Era justo que o interessado soubesse pelos canais formais, e não pela imprensa, que estava na mira do Ministério Público. No caso de Cunha, como ele estava em guerra comigo, achei por bem repassar o aviso pelo vice-presidente Michel Temer, com quem o deputado mantinha estreitas relações. Transmiti a mesma informação ao ministro Cardozo. A fase preliminar da investigação tinha chegado ao fim, e o cenário político sofreria novos abalos. Soube depois que Cunha ficou furioso com meu gesto. Para ele, aquele era mais um indicativo de que eu estava mancomunado com o governo para persegui-lo. Uma lógica incompreensível, porque, naquele momento, até onde se sabe, ele era da base governista.
O deputado Arthur Lira (PP-AL) teve uma reação diferente. Ao receber o envelope com a informação de que seria alvo de um inquérito da Lava Jato, Lira começou a tremer. Ele teria se descontrolado sobretudo porque o pai, o senador Benedito de Lira (PP-AL), também figuraria na lista. Por mais óbvia que pareça a investigação, nenhum político aceita com naturalidade a ideia de estar num inquérito criminal. A taxa de políticos investigados sempre foi muito alta. Mesmo assim, eles demonstram surpresa e, não raro, têm reações emocionais quando recebem o aviso. Nesses casos todos da Lava Jato, o único que não perdeu a fleuma foi o senador Ciro Nogueira (PP-PI). Ao receber o envelope com a confirmação de que estava mesmo na “lista do Janot”, como vinha especulando a imprensa, Nogueira agradeceu a deferência do procurador em avisá-lo e até disse para o portador da mensagem que sabia que aquilo era parte do trabalho do Ministério Público.
Na primeira lista estavam 31 políticos do PP (a maioria deputados e senadores), oito do PT, sete do PMDB, um do PSDB, um do PTB e um do SD. O PP era o partido com o maior número de investigados, mas, em termos políticos, PT e PMDB eram, obviamente, os mais atingidos, dada a expressividade dos representantes dos dois partidos incluídos na relação de políticos a serem investigados por ordem do Supremo. Os nomes do PP a serem investigados eram Ciro Nogueira, Gladson Cameli, Benedito de Lira, Nelson Meurer, Luiz Fernando Faria, Mário Negromonte, Aguinaldo Ribeiro, Arthur Lira, Simão Sessim, José Otávio Germano, João Sandes Júnior, Eduardo da Fonte, Dilceu Sperafico, Jerônimo Goergen, João Leão, Afonso Hamm, Missionário José Olímpio, Lázaro Botelho Martins, Luis Carlos Heinze, Renato Molling, Roberto Balestra, Roberto Britto, Vilson Covatti, Waldir Maranhão, João Alberto Pizzolatti, Aline Corrêa, Roberto Teixeira, Carlos Magno Ramos, Pedro Corrêa, Pedro Henry e José Linhares da Ponte. Não sou cientista político, mas acho que era a nata do partido.
Do PT seriam alvos de inquéritos Gleisi Hoffmann, Antonio Palocci, Lindbergh Farias, Humberto Costa, José Mentor, Vander Loubet, Cândido Vaccarezza e João Vaccari Neto. Palocci foi ministro dos ex-presidentes Dilma Rousseff e Lula; Gleisi Hoffmann se tornaria presidente do partido; e Lindbergh Farias foi um símbolo da luta de jovens estudantes contra a corrupção no governo do ex-presidente Fernando Collor. Nas fileiras do PMDB, os investigados seriam Eduardo Cunha, Renan Calheiros, o ex-ministro de Minas e Energia Edison Lobão, a governadora do Maranhão Roseana Sarney, Romero Jucá, que fora líder dos governos Fernando Henrique, Lula, Dilma – e seria no de Temer – no Senado, o deputado Aníbal Gomes e, por último, Valdir Raupp. Entre os investigados estavam ainda o ex-presidente da República Fernando Collor (PTB), o ex-governador de Minas Gerais Antonio Anastasia (PSDB), o deputado Luiz Argolo (SD) e o lobista Fernando Falcão.
Por falta de indícios mais substanciais, foram arquivadas as investigações sobre o senador Aécio Neves, o ex-ministro Henrique Eduardo Alves, o deputado Alexandre José dos Santos e o ex-senador Delcídio do Amaral.
Corte a cabeça de todos. De todos?
Na noite de 4 de março, dois dias antes da divulgação da lista, um grupo de pessoas foi fazer uma manifestação na sede da Procuradoria-Geral. Era a primeira vez que manifestantes que não eram servidores do órgão se reuniam em frente ao prédio para um protesto político. Manifestações populares vinham crescendo no país desde junho de 2013 e, agora, batiam às portas da sede do Ministério Público Federal. No caso, era uma manifestação a favor das investigações. Estavam lá segurando velas, fazendo orações, gravando vídeos nos celulares. Deixei minha equipe ultimando alguns detalhes e desci para falar com os manifestantes.
Quando cheguei lá, a sogra de Guilherme Magaldi, um grande amigo, hoje procurador aposentado, me cumprimentou e me deu uma cartolina dobrada. “Abra aí pra gente ver o que é”, alguém pediu. Eu abri. Uma terceira pessoa fez uma foto. Foi assim que me fotografaram segurando um cartaz com a frase “Janot vc é a esperança do Brasil!”. Na saída, eu disse uma frase acaciana:
“Quem tiver que pagar, vai pagar.”
Momentos depois, a foto em que apareço segurando o cartaz e o vídeo com minha frase se espalharam pela internet. Eu só vi o que estava escrito na cartolina quando voltei para meu gabinete e um assessor me mostrou a foto.
“Puta que pariu, caí numa esparrela!”, eu disse.
Não demorou muito e começaram a chover críticas. Diziam que eu estava participando de uma manifestação política, logo, as investigações teriam uma direção predeterminada. Nasceu aí a fofoca de que eu seria candidato a presidente da República. Na verdade, só fui falar com os manifestantes, que não passavam de 30 pessoas, porque achava, de fato, importante receber apoio popular. Eu sabia que a reação do mundo político seria forte e, portanto, nenhuma ajuda poderia ser desprezada.
Naquele mesmo período, recebi em meu gabinete alguns manifestantes, entre eles Rogério Chequer, um dos líderes do Vem Pra Rua, um desses movimentos que surgiram na esteira dos protestos de 2013. No meio da conversa, ele me disse:
“Vamos dar apoio, mas o senhor tem que investigar!” E sugeriu alvos predeterminados.
Se não me falha a memória, ele chegou a dizer que tinha mais de 1 milhão de seguidores e que cobraria resultados.
Eu respondi:
“Calma, rapaz, a coisa aqui é técnica.”
Eles me deram um kit com camiseta,
botton
, bandeirinha e não sei mais o que dentro de um saco plástico. Quando foram embora, olhei aquilo e me perguntei:
Isso aqui é movimento espontâneo? Quem paga por isso? Isso tem um custo
.
Na noite de sexta-feira, 6 de março, quando o
Jornal Nacional
começou, foram divulgados os primeiros nomes da lista, liberada pelo Supremo, sabíamos que começaria uma guerra aberta contra nós da Lava Jato em Brasília e entre os diversos grupos políticos que já vinham se engalfinhando por causa das investigações. Curiosamente, a sensação no nosso
bunker
foi de alívio. O centro da batalha seria o STF, e não mais a Procuradoria-Geral. A lista não era, de fato, uma hecatombe política. Talvez contivesse um terço do lote de investigados que se esperava inicialmente. Mas não havia dúvidas de que as investigações subsequentes mudariam substancialmente o quadro político. Ou melhor, precipitariam os conflitos que vinham se acumulando ao longo da história recente. Um novo capítulo da nossa jornada coletiva estava se abrindo. Não sei se tinha alguém feliz ali. Estávamos estripando um caso de corrupção gigante, o maior já descoberto no país. A existência de desvios em escala industrial não era motivo de felicidade para ninguém, mas estávamos com a sensação de dever cumprido. Recebêramos uma tarefa monumental e, apesar de todos os tropeços, o trabalho fora realizado a contento. Tiramos um dia de folga e esvaziamos algumas garrafas de vinho.
Luta de classes numa hora dessas…
A criação do grupo de trabalho, uma necessidade diante do tamanho e da complexidade que teria a Lava Jato dos investigados com foro, parecia uma medida natural, mas ao longo do tempo se tornou uma fonte constante de tensão. Alguns subprocuradores-gerais, apegados a símbolos de poder e status, torceram o nariz para a equipe de investigadores, formada por procuradores e procuradores regionais. Numa comparação com uma estrutura militar, subprocuradores seriam generais ou coronéis. Os procuradores regionais e os procuradores seriam, no máximo, capitães. Portanto, os subprocuradores achavam que eram eles mesmos que deveriam estar à frente da maior investigação em curso no país.
Ora, o Ministério Público não é o Exército. Nossa escala de poder é outra. Escolhi procuradores da base porque, em geral, são mais jovens e, naturalmente, têm mais energia para longas jornadas de trabalho com interrogatórios, análises de documentos e debates mais acalorados sobre teses jurídicas e melhores hipóteses para se aprofundar uma apuração criminal. A resistência aos procuradores, que circulavam livremente pelo “território” dos subprocuradores, se prolongou e teve até reflexos nas eleições internas que me levaram ao segundo mandato. Alguns adversários diziam que eu estava desprestigiando a classe dos subprocuradores, mais experiente e, portanto, mais preparada para uma investigação tão rumorosa. Enfim, tentavam criar uma cizânia entre os subprocuradores e o procurador-geral. De fato, eu tinha problemas com alguns subprocuradores. Achava que falavam muito e trabalhavam pouco, que viviam discutindo o sexo dos anjos entre canapés e afagos mútuos, enquanto lá fora o mundo sangrava.
Na primeira fase das investigações, o grupo de trabalho era coordenado pelo procurador regional Douglas Fischer, que já era, desde o início da minha gestão, chefe da assessoria criminal. Autor de vários livros, reconhecido nos meios acadêmicos e, claro, entre os colegas, Fischer foi fundamental na primeira jornada. Mas, com o passar do tempo, como tinha que viajar com frequência para o Rio Grande do Sul, onde tinha deixado a família, tive que buscar uma alternativa. Chamei o promotor Sérgio Bruno Fernandes, que comandava o grupo de investigações sobre o crime organizado no Ministério Público do Distrito Federal e Territórios, para chefiar a equipe de procuradores e procuradores regionais da República.
Foi uma grita geral. Um dos colegas veio me dizer que aquilo não daria certo, que não faria sentido um promotor coordenar um grupo de procuradores da República. A Lava Jato era uma investigação nossa, ou seja, de procuradores, não de promotores. Eu respondi que aquela era uma investigação do Ministério Público. Disse também que, ao contrário de todos ali, SB, como o chamávamos, tinha uma longa experiência em investigação sobre crime organizado. Como promotor, ele já vinha, havia muitos anos, desbaratando truculentas quadrilhas incrustadas nos poderes locais. Era uma experiência da qual não poderíamos abrir mão. Na hora o colega não pareceu muito convencido, mas, depois, depois, todos perceberam que foi melhor para o grupo. Sérgio Bruno trabalhava como um camelo, era leal, discreto e se dava bem com todos. Com SB, eu incorporei ao grupo também outro promotor, Wilton Queiroz. Silencioso, Queiroz era um ás na sistematização e no armazenamento de informações. Também foi fundamental.
Olhando em retrospecto, vejo como a presença dos dois promotores trabalhando lado a lado com procuradores era a sinergia perfeita entre os ministérios públicos. Quem ganhou com isso foi a sociedade.