CAPÍTULO 5
O dia em que a Lava Jato quase acabou
Antes mesmo de começarmos a trabalhar com as delações feitas pelo ex-diretor da Petrobras, Paulo Roberto Costa, e pelo doleiro Alberto Youssef, houve um entrevero sério com o pessoal da Lava Jato em Curitiba, que quase resultou na implosão da força-tarefa no Paraná. Por desconfiança de que eu estivesse patrocinando um “acordão” com os empreiteiros para abafar a Lava Jato e o prosseguimento das investigações, os procuradores de Curitiba ameaçaram fazer uma rebelião contra mim. Chegaram a avisar um repórter da TV Globo de que pediriam demissão coletiva do caso. Se tivessem levado a cabo esse pedido, teria significado, provavelmente, o fim da Lava Jato – e da minha gestão à frente da Procuradoria-Geral da República. Felizmente, a crise foi contornada e acabou sendo um ponto de virada para que as relações entre os procuradores envolvidos nas investigações da Operação em Brasília e em Curitiba, até então marcadas pela desconfiança, se tornassem menos tensas.
Aproximadamente seis meses depois do desencadeamento da Lava Jato, quando Costa e Youssef já haviam começado a contar o que sabiam aos procuradores de Curitiba, recebi uma ligação de um velho conhecido, o advogado José Gerardo Grossi, um dos mais experientes e importantes da capital federal. Mineiro como eu, Grossi havia sido professor da Universidade de Brasília e ministro do TSE. Ele me pedia para recebê-lo em audiência para tratar de um assunto importante referente à Lava Jato e, como teria a companhia de um visitante ilustre de São Paulo, gostaria que o encontro fosse tratado com discrição.
O visitante ilustre, me esclareceu Grossi, seria o ex-ministro da Justiça Márcio Thomaz Bastos, que, depois de quatro anos e meio como integrante do governo Lula, voltara a atuar como advogado criminalista. Na ocasião, estava trabalhando na defesa de grandes empreiteiras, como a Camargo Corrêa e a Odebrecht. Como Grossi adiantara que a conversa deveria tratar de temas sensíveis, eu pedi excepcionalmente a Eduardo Pelella para ele próprio tratar de agendar o encontro. Grossi e Pelella depois conversaram por telefone e acertaram a data.
No dia agendado, Grossi e Thomaz Bastos compareceram logo pela manhã no meu gabinete na Procuradoria-Geral da República, onde os recebi na companhia de Pelella. Ambos, Grossi e Thomaz Bastos, eram donos de uma prosa agradabilíssima e de um humor refinado. Eu me lembro que nos entretemos por um bom tempo rindo de Thomaz Bastos nos contando sua desventura de descobrir, na hora do embarque em São Paulo, que esquecera todos os documentos pessoais em casa. Para viajar para Brasília, ele tivera de recorrer a um documento emitido pela Polícia Federal.
Depois daquela conversa introdutória, Thomaz Bastos entrou finalmente no assunto que o levara até ao meu gabinete. Disse-me que estava ali como representante das empreiteiras investigadas na Lava Jato e enveredou por uma dissertação sobre como os fatos que vinham sendo apurados pelos procuradores do Paraná se referiam a um “Brasil antigo”. As empreiteiras, acrescentou o ex-ministro, estavam dispostas a deixar esse passado para trás e a fazer um acordo em que assumiriam “erros” e o pagamento de uma multa vultosa – ele mencionou, por alto, uma cifra em torno de R$ 1 bilhão.
Com a respiração ofegante, que me fez lembrar o enfisema pulmonar que matara meu pai décadas antes, e com a mão trêmula, outro sinal de uma saúde debilitada, Thomaz Bastos traçou sobre a mesa uma régua divisória para sintetizar o espírito do acordo que estava sugerindo.
“Nós vamos resolver essa questão daqui para a frente. Daqui para trás a gente esquece”, propôs o ex-ministro.
Eu e Pelella, que ouvia tudo sem abrir a boca, nos entreolhamos. Percebi na fisionomia do meu assessor uma expressão de incredulidade com os termos da proposta. Apesar de certo espanto com a sondagem, eu reagi, daquela vez, de forma mineira – o que não era um hábito, apesar das minhas raízes. Deixei claro que aquela ideia de “o que passou, passou” era inaceitável e disse que, se dependesse de mim, o Brasil do futuro, sem dúvida alguma, seria completamente diferente daquele “Brasil antigo”. Mas não refutei, de imediato, a possibilidade de um acordo.
Mencionei, porém, três condições básicas, sem as quais nenhuma negociação avançaria: 1) como se tratava de fatos criminosos, os responsáveis deveriam assumir a culpa pelos seus atos ilícitos; 2) como os empreiteiros não tinham prerrogativa de foro no Supremo Tribunal Federal, qualquer tratativa para um acordo deveria ser discutida com a força-tarefa da Lava Jato em Curitiba; e 3) por fim, eu não me comprometeria com qualquer acordo referente a pessoas com foro no Supremo Tribunal Federal. Com relação ao valor da indenização, eu brinquei, mas ao mesmo tempo falei sério: “Tem que ser um valor suficiente para pagar a construção de várias penitenciárias no país”.
Thomaz Bastos ouviu em silêncio aquelas condições e saiu do encontro dizendo que as levaria ao conhecimento de colegas que trabalhavam no caso com ele. O ex-ministro e alguns de seus colegas voltariam a me procurar para falar sobre a proposta de acordo. Nunca deixei de recebê-los, porque sempre foi praxe receber advogados, com audiência marcada, para ouvir o que eles tinham a dizer, mas também nunca deixei de frisar que qualquer acordo precisaria ter como base o reconhecimento de culpa individual e deveria ser negociado, por se tratar de pessoas sem prerrogativa de foro, com a força-tarefa da Lava Jato em Curitiba.
Num desses encontros, o advogado Celso Vilardi, de São Paulo, disse que gostaria de ter a minha opinião a respeito de uma cláusula em uma proposta de acordo de colaboração de executivos de empreiteiras. Perguntei a ele: “Essa cláusula tem a ver com pessoas com prerrogativa de foro?”. “Não”, ele disse. “Então você tem que conversar com o pessoal de Curitiba. Não é comigo”, respondi.
Soube posteriormente que Vilardi e outros advogados das empreiteiras tiveram uma reunião com a força-tarefa em Curitiba para discutir as bases de um acordo. Acho que os advogados tinham a expectativa de obter com o encontro uma espécie de bandeira branca por parte da força-tarefa, mas saíram frustrados. No dia seguinte à reunião, a Lava Jato deflagrou, no Paraná, a Operação Juízo Final, a 7 a fase da investigação, em que foram presos dirigentes e executivos de nove empreiteiras com contratos no valor de US$ 60 bilhões com a Petrobras – entre elas, Camargo Corrêa, OAS, Mendes Júnior, Engevix e UTC. Algumas semanas depois da Juízo Final, no dia 20 de novembro de 2014, Thomaz Bastos viria a falecer de complicações pulmonares depois de uma viagem aos Estados Unidos.
Dias depois, eu estava almoçando com Pelella e outros assessores numa churrascaria de Brasília quando recebemos, por WhatsApp, uma mensagem de alerta de Vladimir Aras, secretário de Cooperação Jurídica Internacional da PGR. Aras, que era amigo de Carlos Fernando dos Santos Lima, um dos integrantes da força-tarefa no Paraná, nos avisava que o pessoal de Curitiba estava em pé de guerra. Eles ameaçavam anunciar renúncia coletiva em protesto contra um acordo com as empreiteiras que teria sido referendado por mim, como procurador-geral. Como prova do “acordão”, os procuradores tinham uma cópia de uma minuta preparada pelos advogados de algumas empreiteiras.
Recebi a cópia da minuta por WhatsApp e fiquei estupefato. Reconheci a cláusula mencionada por Vilardi no encontro que tivera com ele. Entre outras impropriedades, a minuta permitia às empreiteiras, a qualquer momento, “desistir das obrigações previstas”, tornando “sem efeito” eventuais declarações prestadas por seus dirigentes, e era dirigida à Polícia Federal e ao Ministério Público Federal, nessa ordem. Logo depois do aviso, Deltan Dallagnol pediu uma audiência comigo. Eu disse: “Tudo bem, venham dois, você e mais um”. Ele insistiu que todos os procuradores da equipe queriam participar do encontro. Eu disse o.k. Detalhe: ele pediu a reunião com todos os demais integrantes da força-tarefa, mas não me disse qual seria o motivo da viagem de todo o grupo a Brasília.
No dia seguinte, todos os procuradores da força-tarefa desembarcaram na capital federal. Entraram em meu gabinete em fila indiana, arrastando pequenas malas de viagem, e seguiram para a sala de reunião com semblante fechado. Era como se algo muito grave estivesse prestes a acontecer. “Que maluquice é essa?”, perguntei, vendo aquela inusitada cena na sala que, por ironia da história, seria mais tarde batizada de “Teori Zavascki” e passaria a funcionar como quartel-general do grupo de trabalho da Lava Jato.
Dallagnol falou em nome do grupo e fez um discurso sobre a “importância” da Lava Jato no combate à corrupção do país. Ao fim da fala do coordenador, Santos Lima puxou um papel e, num gesto dramático, acusatório, empurrou-o na minha direção, dizendo:
“Explica isso aí!”
Era a cópia de uma transcrição de interceptação telefônica entre um executivo de uma empreiteira e um advogado, feita pela Polícia Federal com autorização judicial. Um deles fazia menção ao suposto acordo que estaria sendo costurado por Thomaz Bastos comigo e com o então ministro da Justiça, José Eduardo Cardozo. O acordo seria o mesmo que, dias antes, o advogado Celso Vilardi me apresentara numa tentativa de colher meu aval a uma das cláusulas. Ou seja, o mesmo acordo que eu, naquele momento, dissera que deveria ser negociado com Curitiba, e não comigo, em Brasília. Quando vi o documento sendo empurrado na minha direção, com aquele pedido impositivo de explicação, o clima da reunião ficou ainda mais tenso.
“Que porra é essa? Eu é que quero que você me explique. Como eu não fui informado sobre meu nome ter sido citado numa interceptação?”, eu disse.
“Muito me admira que vocês, antes de conversar comigo, tenham vindo todos armados achando que eu tivesse feito um acordão pra melar essa porra dessa investigação. Que porra é essa? Que porra é essa? Não tenho nada a ver com isso, com qualquer merda de acordo. Que acordo, rapaz? Eu não fiz acordo nenhum. Vocês acham que, se eu fosse fazer um acordo, eu começaria dizendo, como está escrito aqui: ‘A Polícia Federal e o Ministério Público Federal’, dando protagonismo à polícia, e não ao MPF? Vocês acham que eu começaria assim? Claro que não!”, acrescentei.
No final, lembrei que as minhas prioridades ao assumir a PGR eram outras.
“Não pedi essa porra. Essa investigação caiu no meu colo e vai dominar toda a minha gestão, vai tomar conta.”
Depois da minha fala, alguns procuradores se manifestaram a meu favor. Acho que não esperavam uma reação tão veemente de minha parte. Mas eu estava seguro da minha posição e não poderia permitir qualquer tipo de dúvida sobre minha conduta. Algumas pessoas de fora da instituição poderiam, baseadas em notícias truncadas, até alimentar desconfianças, mas nunca procuradores que estavam nas investigações e havia anos conheciam a seriedade do meu trabalho. Alguns deles haviam sido integrados à força-tarefa recentemente, designados por mim. Como eu os enviaria para compor a força-tarefa, com todo o custo financeiro e pessoal desse tipo de missão, se tivesse algum interesse escuso? Isso não faria o menor sentido. Eu os encarei. Um deles se dirigiu a Santos Lima.
“Cara, você acha que o Rodrigo ia fazer isso? Botar a Polícia Federal como protagonista principal num eventual acordo? Isso não existe”, comentou.
Foi aí que o ambiente distensionou um pouco. O único que continuou de cara amarrada, sem falar, foi Santos Lima.
Eu saí da sala e os procuradores de Curitiba saíram depois para almoçar com alguns integrantes da minha equipe, entre eles Vladimir Aras e Danilo Dias, procurador que integrava a área criminal na PGR. Depois do almoço, Aras e Dias me informaram:
“Chefe, a bomba foi desarmada. O clima continua tenso, mas eles desistiram da história de demissão coletiva.”
O repórter Vladimir Netto, da TV Globo, fora previamente avisado pelo pessoal de Curitiba a respeito da reunião comigo. Ele, que estava na capital paranaense, viajou a Brasília e montou plantão na PGR para dar a notícia da renúncia coletiva. Pelo que entendi, seria uma forma de ampliar o impacto da informação e, claro, me deixar numa situação para lá de constrangedora. Se tivesse havido a renúncia, teria sido um tsunami. Como “a bomba fora desarmada”, ele acabou não dando esse furo. Acho que perdeu a viagem.
Naquele mesmo dia, eu marcara uma nova audiência no meu gabinete a pedido de Grossi. Acho que, como a Juízo Final frustrara a tentativa de uma negociação com a força-tarefa, eles queriam voltar a insistir na tentativa de um acordo por meio da PGR. Grossi veio acompanhado de um grupo grande de advogados. Todos eram representantes de empreiteiras. Abri a palavra para o grupo e eles começaram a falar de vários aspectos, entre os quais a contratação de uma auditoria internacional para calcular o valor da indenização a ser paga pelas empreiteiras. Percebi que estavam querendo me pressionar a aceitar o tal acordo e a sair do encontro com ele assinado. Foi então que os interrompi.
“A coisa não é bem assim. Vocês vêm aqui pra fazer acordo, mas não querem orientar seus clientes a reconhecer crimes, e ainda por cima dizem que aceitam pagar uma multa que virá de uma análise de uma auditoria internacional. Isso vai demorar quanto tempo? Uns cem anos, mais ou menos?”, questionei.
Para encurtar a conversa, apontei para uma sala ao lado do meu gabinete, onde estavam reunidos os procuradores de Curitiba.
“Estão vendo aquela sala ali ao lado? Está todo o grupo de Curitiba lá. Eu estou tentando apagar um incêndio enorme ali, causado por esse doutor aqui, ó, Celso Vilardi. Ele levou um documento lá para a Polícia Federal de Curitiba, dizendo que tinha sido costurado comigo e com o José Eduardo, e incendiou os meninos lá embaixo”, eu disse.
Depois dessa minha intervenção, os advogados ficaram constrangidíssimos. Em meio a um enorme mal-estar, o primeiro a reagir foi Alberto Toron, que era advogado da UTC.
“Oh, gente, não vai sair acordo aqui não. Não adianta.”
Para atenuar o clima, ele acrescentou:
“O doutor Janot está dizendo que não tem acordo. Vocês estão querendo botá-lo contra a parede? Ele vai pular. Não adianta encostá-lo contra a parede, ele é ágil. Vamos encerrar.”
Eu me lembro de que, quando o grupo já se dirigia à saída, um advogado, talvez da Odebrecht, um senhor com marcas de espinhas no rosto, se virou para mim e disse:
“O que fizeram com o senhor não se faz. O senhor está coberto de razão.”
Quando terminei a reunião com os advogados, voltei à sala onde permaneciam os procuradores da Lava Jato para fazer um breve aviso.
“Aquele assunto do suposto acordo está sepultado!”
Saí e fui inaugurar um espaço novo na sede da Procuradoria. Era uma passarela que ligava as duas torres do edifício, usada para algumas exposições. O espaço foi batizado com o nome do advogado Evandro Lins e Silva, em homenagem ao procurador-geral da República do governo João Goulart, depois ministro do Supremo Tribunal Federal cassado pelo AI-5 da ditadura militar.
Esse episódio claramente foi resultado de uma tentativa de manobra dos advogados das empreiteiras, que perceberam que a Lava Jato poderia chegar muito longe, levada adiante por profissionais determinados e que haviam adquirido, ao longo do tempo, experiência no combate à corrupção e à lavagem de dinheiro. Avaliaram que um acordo administrativo, com uma admissão de culpa, o pagamento de uma multa bilionária e a interrupção das investigações, seria o melhor cenário para as empreiteiras. Quase implodiram a Lava Jato. Se os procuradores da força-tarefa tivessem apresentado um pedido de demissão coletiva, eu também teria que renunciar. Não teria condições de permanecer no cargo em meio a suspeitas de estar patrocinando uma operação-abafa.
Esse momento crítico foi superado – e hoje avalio que o saldo acabou sendo positivo para a Lava Jato. Até então, havia má vontade de Curitiba com Brasília. Acredito que os procuradores do Paraná temiam que eu, por ter sido designado pela presidente Dilma Rousseff, fosse agir para atenuar a situação do governo ou do PT. Antes desse episódio, chegou ao meu conhecimento que eles insinuaram, em conversas com integrantes da minha equipe, que gostariam de continuar conduzindo as investigações e os processos, mesmo nos casos em que os investigados ou réus tivessem prerrogativa de foro no STF. Ou seja, queriam que eu apenas referendasse, com a minha assinatura, as decisões deles. Uma coisa absurda e totalmente despropositada, que foi prontamente rechaçada.
Acho que os procuradores da força-tarefa perceberam, depois da minha reação nesse caso do suposto “acordão” com as empreiteiras, que eu não agiria para aliviar ninguém e que não seria influenciado por quem quer que fosse. Minha atuação seria, como sempre foi, profissional, técnica, objetiva e transparente. Caiu a ficha também de que o pesado clima de desconfiança prejudicaria o trabalho de todos. As relações entre a força-tarefa e a Procuradoria-Geral, a partir de então, ficariam um pouco mais fluidas.