CAPÍTULO 8
Nada menos que tudo
Quando percebeu que a investigação da Procuradoria-Geral da República poderia trazer consequências concretas contra ele, Cunha mandou um recado para Dilma Rousseff. A presidente deveria “segurar” o procurador-geral, caso contrário ele tocaria adiante o pedido de impeachment dela. A mensagem foi transmitida à presidente pelo ministro Cardozo. Na conversa com Dilma, Cardozo adiantou que me segurar seria impossível, que o procurador-geral tinha autonomia, não podia ser controlado. A presidente ouviu as explicações e disse que conversaria com Cunha.
“Ele que faça o que ele quiser”, afirmou.
Eu soube da ameaça do impeachment numa conversa, tempos depois, com Cardozo, mas quem acompanhava os jornais podia ver no noticiário que as pressões exercidas por Cunha e outros políticos contra o governo eram frequentes, sobretudo quando acontecia uma busca, uma prisão, ou quando uma medida da investigação se tornava pública. Ainda mais claras que as declarações de hostilidade eram as pautas-bomba no Congresso, que atingiam as finanças públicas e pretendiam inviabilizar o governo. Eu lia tudo aquilo sem deixar de me espantar com aquela visão tão tosca. Será que achavam mesmo que a presidente da República poderia manipular o procurador-geral?
É compreensível que, em alguns estados, os governadores tenham influência direta sobre os chefes dos Ministérios Públicos, mas essa é uma regra que não se aplica ao âmbito federal. O presidente escolhe o procurador-geral, mas a escolha não se vincula a qualquer decisão futura. Isso só acontece se o escolhido for fraco ou submisso. Definitivamente não era o meu caso. Ao atacar o governo com o intuito de me atingir, alguns investigados estavam apenas minando as bases das estruturas políticas tradicionais, ou seja, abrindo novos caminhos para o avanço da Lava Jato.
Em 2 de dezembro de 2015, o presidente da Câmara deu seguimento a um pedido de impeachment da presidente da República que havia sido apresentado pelos juristas Hélio Bicudo e Miguel Reale Júnior. Duas semanas depois dessa decisão, em 16 de dezembro, com mais informações coletadas sobre a atuação de Cunha, pedimos o afastamento do deputado da presidência da Câmara. Àquela altura, era uma medida mais drástica que a própria denúncia criminal. Tenho a impressão de que essa medida, considerada excessiva por alguns na ocasião, quebrou um tabu e abriu uma avenida para a Lava Jato.
Até alguns dos meus auxiliares diretos avaliavam que o pedido de afastamento de Cunha da presidência da Câmara era uma aposta de alto risco. Numa reunião interna, alguns colegas sugeriram que eu não apresentasse o pedido, pelo menos não naquele momento. Eles argumentaram que a solicitação de afastamento poderia ser encarada como uma tentativa de intervenção direta do Judiciário no Legislativo, a qual certamente não teria acolhida no Supremo. Para esses assessores, a simples denúncia contra um presidente da Câmara em pleno exercício do cargo já era uma ação drástica o suficiente. Seria melhor optar por uma única medida dura, mas com chances de ser aprovada, em vez de entrar com o pedido de afastamento e correr o risco de perder, e depois também sofrer uma derrota na aceitação da denúncia. Cunha era poderoso e tinha forças para reagir com vigor.
Eu não aceitei esses argumentos e respondi:
“Nada menos que tudo! Vamos pedir o afastamento!”
Seria uma medida cautelar para cessar o cometimento de crimes. E foi o que fizemos. Para sustentar o pedido, a procuradora Anna Carolina Resende fez uma longa pesquisa sobre as ações que caracterizavam a tentativa do deputado de obstruir as investigações e intimidar os investigadores. Era uma lista impressionante de atos ilícitos que vinham sendo cometidos com o objetivo de impedir o esclarecimento do esquema de corrupção na Petrobras. Elencamos uma série de motivos para tirar o deputado da presidência da Câmara.
O pedido chegou ao Supremo, e por lá ficou durante cinco meses. O clima era de efervescência política. No Congresso, a turma de Cunha, o restante da oposição e até uma parcela da base governista seguiam em frente com o processo de impedimento da presidente da República. Os aliados de Cunha diziam que estávamos fazendo o jogo do governo ao levar adiante as investigações contra o capitão do impeachment. Alguns governistas, por sua vez, reclamavam que o Ministério Público e o Supremo deixavam o processo de impeachment correr frouxo e não agiam para tentar deter as ações criminosas do emedebista. Eram interpretações possíveis, mas, devo dizer, não verdadeiras.
As escaramuças entre os exércitos de Cunha e Dilma estavam fora do nosso controle. As ações seguiam seu trâmite judicial. Em março de 2016, oito meses após a denúncia, o STF, por unanimidade, abriu processo contra o presidente da Câmara – a primeira ação penal aberta pelo Supremo em decorrência da Lava Jato. Teori Zavascki demorou mais de cinco meses para levar o pedido de afastamento de Cunha à votação no plenário. Só tomou tal medida depois que o plenário da Câmara, em abril, sob a presidência de Cunha, autorizou a abertura do processo de impeachment de Dilma pelo Senado, com 367 votos favoráveis e 137 contrários. Zavascki demorou, mas o fez porque era um bom estrategista. Ele sabia que o risco de derrota seria alto se levasse o pedido de afastamento de Cunha ao plenário logo que ele foi apresentado. Não havia, naquele momento, uma maioria clara a favor do afastamento. Em maio, quando percebeu certa simpatia pela proposta em conversas com colegas, ele entendeu que era o momento da prova de fogo. Concedeu uma decisão liminar pelo afastamento de Cunha, que depois foi referendada em plenário pelos demais dez ministros do STF. Foi uma das mais eloquentes demonstrações de repúdio da Corte à corrupção na política.
Dali em diante, o antes todo-poderoso presidente da Câmara passou a colecionar derrotas. Sem a força do posto, Cunha teve o mandato cassado por 450 votos a favor e dez contra, além de nove abstenções, em 12 de setembro de 2016. Alguns deputados da tropa de choque de Cunha nem compareceram à sessão, só para não associar sua imagem à do ex-chefe, que passara a ser repudiado também por amplos setores da opinião pública. No mês seguinte, ele já estava preso em Curitiba por decisão do juiz Sergio Moro.
Depois de preso, Cunha ainda passou um tempo se comportando como se fosse o líder político de outrora. Os relatos da cadeia em Curitiba que chegavam à Procuradoria-Geral diziam que, entre os encarcerados, ele era um dos poucos que mantinha a espinha ereta. Despachava com advogados, dava ordens e agia como se fosse sair da prisão rapidamente e voltar ao comando. Passado algum tempo, porém, ele começou a emitir sinais de que queria fazer um acordo de colaboração premiada.
Uma eventual delação do ex-presidente da Câmara poderia realmente ser muito importante. Afinal, ele tinha fama de operar em escala industrial com membros de vários partidos e de ser o rei do submundo da política. Aliados mais próximos gostavam de espalhar que Cunha controlava uma bancada de 100 deputados e tinha nas mãos o presidente Michel Temer e importantes ministros do novo governo que tomara posse após o impeachment de Dilma. Certa vez, soubemos que Cunha vinha narrando aos agentes penitenciários no xadrez uma historinha infantil às avessas. “Era uma vez cinco irmãos. Um virou presidente, três viraram ministros e o quinto está na prisão.” A anedota era uma óbvia alusão ao quinteto que comandava no passado o MDB da Câmara e era formado por Michel Temer, Geddel Vieira Lima, Elizeu Padilha, Henrique Eduardo Alves e ele, Eduardo Cunha. Ao narrar essa historinha, o ex-deputado deixava claro que se considerava um injustiçado e mostrava disposição de contar o que sabia sobre os antigos companheiros. O conhecimento dos podres dos poderosos, aliás, era considerado uma das principais fontes de poder de Cunha. Já que ele estava disposto a colaborar, nossa reação lógica foi responder: vamos fazer um acordo. Foi o que disse o coordenador do grupo de trabalho da Procuradoria-Geral, o promotor Sérgio Bruno Fernandes, ao advogado Délio Lins e Silva Jr., um dos defensores de Cunha, quando ele nos procurou para saber se havia ou não possibilidade de um entendimento entre as partes.
Mas, na hora de botar as coisas no papel, não aparecia nada. As promessas de delação de Cunha se resumiam a meras resenhas políticas. Ele queria confessar a prática de caixa dois e imputar crimes a terceiros, mas de casos já conhecidos. Era um jogo esquisito. Uma delação só faz sentido quando o delator aponta crimes cometidos por quem está em posição superior. Em outro momento, quando as negociações pareciam esfriar, ele usou um dos processos conduzidos por Moro em Curitiba, no qual Michel Temer era testemunha, para dirigir perguntas embaraçosas ao presidente. As perguntas eram, aparentemente, roteiro de tramas ilegais, e, se respondidas objetivamente, poderiam deixar Temer em maus lençóis. Mais uma vez, entendemos que ele ensaiava uma delação vigorosa. Mais uma vez, as insinuações permaneceram no terreno da provocação. O jogador se recusava a mostrar as cartas.
Na época, muita gente disse que eu não quis fazer acordo porque não gostava de Cunha. Uma bobagem. Sentimentos pessoais não são relevantes na negociação de um acordo de colaboração. Esta é uma lição básica que aprendemos com o livro
Como chegar ao sim: como negociar acordos sem fazer concessões
, cujos autores, Roger Fisher, William Ury e Bruce Patton, criaram o método de negociação da Universidade Harvard. É um texto dirigido a homens de negócios, mas que se aplica também às negociações sobre delação. A primeira lição é separar o fato da pessoa. Se você se envolver emocionalmente, arrisca perder a colaboração. Você pode até achar o delator um escroque sem qualquer escrúpulo, mas deve levar em consideração apenas o relato. Tire a pessoa e analise o fato, recomendam os pesquisadores de Harvard. Quando aplicávamos essa regra ao caso de Cunha, não sobrava nada.
O jogo de dissimulações de Cunha acabou quando entrou em cena um novo personagem, que abriu uma perspectiva inédita para a Lava Jato. Ex-cúmplice de Cunha em negociatas com dinheiro do Fundo de Investimento do Fundo de Garantia do Tempo de Serviço (FGTS), o doleiro Lúcio Bolonha Funaro decidiu delatar. Funaro estava preso por ameaçar de morte Nelson Mello, ex-diretor de Relações Institucionais do grupo Hypermarcas (hoje conhecido como Hypera Pharma), e Milton Schahin, o idoso ex-presidente do grupo Schahin. Por uma ironia do destino, Funaro resolveu relatar os crimes cometidos por ambos, ele e Cunha. De quebra, envolveu o ex-ministro Geddel Vieira Lima e o presidente Michel Temer. Foi uma delação curta, rápida, mas de resultados efetivos.
Era uma ironia porque fora Funaro quem, por intermédio da influência que exercia sobre a advogada Beatriz Catta Preta, impedira que um dos clientes dela, o lobista Júlio Camargo, entregasse Cunha na primeira fase de sua delação, feita em Curitiba. Quando cobramos de Camargo uma delação sem restrições, Funaro ameaçou tocar fogo no apartamento de Catta Preta com ela e os filhos dentro. A condição para que a ameaça não se concretizasse era que Camargo ficasse de bico fechado em relação a Cunha. Diante da ameaça e das evidências de omissão do cliente, Catta Preta mudou de estratégia. Num depoimento secreto em São Paulo, ela abriu o jogo. Suas confissões ajudaram a entender os traços de violência da personalidade de Funaro, cúmplice de Cunha. Deixaram também Camargo sem alternativa a não ser confessar que pagou propina a Cunha por intermédio de Fernando Antônio Falcão Soares, mais conhecido como Fernando Baiano.
A turma de Cunha tentou pressionar Catta Preta, convocando-a para depor na CPI da Petrobras. A manobra foi barrada por uma decisão do ministro Ricardo Lewandowski, do STF. Lewandowski entendeu claramente que alguns deputados queriam mesmo era constranger Catta Preta e, com isso, proteger o chefe. Depois do episódio, a advogada, que esteve à frente das negociações para delação de Paulo Roberto Costa e de outros importantes investigados pela Lava Jato, deixou o país. Mesmo sabendo que poderia contar com a proteção do Estado brasileiro, ela preferiu mudar-se com a família para os Estados Unidos para manter distância de Cunha e seus aliados.
Dois anos depois do caso de Cunha, um jornalista me perguntou se eu não tive receio quando pedi o afastamento dele da presidência da Câmara, pois, além de poderoso, ele era frio e vingativo. Eu respondi:
“É preciso ter uma atuação reta. Se começa a colocar outros ingredientes na sua decisão, que não seja a decisão técnica, aquela que deve ser tomada, você se ferra. Se abrir exceção para um, vai ter que abrir exceção para todo mundo.”
Nós sabíamos que Cunha era ousado e tinha ligações estranhas. Ouvíamos até que ele tinha ligação com um grupo de extermínio do Rio. Por isso, tínhamos porte de arma e andávamos com proteção. Mas receio do ex-deputado? Não. Ninguém da equipe tinha receio dele. É necessário enfrentar esse tipo de problema. Quem tem medo não pode ser investigador.
Com Cunha na Câmara, Bolsonaro não seria presidente
Em resumo, a ex-presidente Dilma Rousseff deve alguns meses extras de seu segundo mandato às investigações sobre Cunha. E aqui cabe uma referência especial ao Ministério Público da Suíça, que fez uma irretocável investigação sobre a movimentação financeira do presidente da Câmara em bancos suíços. Se não fosse essa mãozinha vinda dos Alpes, e se Júlio Camargo não tivesse se dobrado a uma cooperação mais ampla, nossa investigação poderia ter sido arquivada por falta de provas, e Cunha não teria perdido o mandato. E arrisco uma hipótese: se tivesse sobrevivido à investigação, Eduardo Cunha, e não Jair Bolsonaro, teria sido eleito presidente do Brasil nas eleições de 2018.
Agora, quando escrevo este livro, ninguém mais parece se lembrar, mas em 2015, antes de receber o carimbo de corrupto e mentiroso, Cunha vinha recebendo crescente apoio do empresariado, dos evangélicos e dos grupos de direita que lideravam grandes manifestações contra a corrupção. Bolsonaro só passou a catalisar o sentimento anti-PT, que se traduzia nos protestos contra a corrupção na Petrobras, depois que Cunha perdeu o mandato, foi preso e saiu de cena. Nesse sentido, não seria errado dizer que Bolsonaro também deve parte da vitória na eleição presidencial ao sucesso da investigação contra Cunha, o que não deixa de ser um contrassenso no contexto geral. Isso porque o PP, onde militou Bolsonaro por longos anos, foi o partido, em termos numéricos, mais atingido pela Lava Jato. Foi o PP quem indicou Paulo Roberto Costa para a diretoria de Abastecimento e, com isso, instituiu na Petrobras a cobrança sistemática da propina vinculada a contratos da estatal com empreiteiras. Parlamentares do partido recebiam regularmente uma mesada, que em alguns casos chegava a R$ 150 mil, em troca do apoio a Costa. Bolsonaro foi um dos poucos do partido não mencionados nas delações do ex-diretor e do doleiro Alberto Youssef.
A lista de motivos para o afastamento de Cunha era imensa. Aqui estão alguns exemplos:
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Apresentou, por meio da colega Solange Almeida (PMDB-RJ), requerimentos na Comissão de Fiscalização da Câmara para pressionar Júlio Camargo a honrar o pagamento da propina.
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Patrocinou a apresentação na Câmara de requerimentos contra empresas do grupo Schahin com o objetivo de favorecer o cúmplice Lúcio Funaro numa disputa judicial. No período, Funaro exigia indenização milionária dos Schahin pelo rompimento da barragem da Pequena Central Hidrelétrica de Apertadinho, em Rondônia. O negócio teria sido tocado numa sociedade entre Funaro e os Schahin.
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Recebeu de Lúcio Bolonha Funaro veículos no valor de pelo menos R$ 180 mil.
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Usou, em companhia de Funaro, avião de Júlio Camargo entre 29 de agosto e 11 de setembro de 2014. O uso do avião era parte do pagamento de propina pelos contratos da Samsung com a Petrobras.
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Manobrou pela convocação da advogada Beatriz Catta Preta para prestar depoimento na CPI da Petrobras em 2015, justamente depois que Júlio Camargo, cliente dela, decidiu descrever o pagamento de propina a Cunha.
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Contratou a Kroll por R$ 1 milhão para investigar os principais delatores da Lava Jato e também alguns procuradores, entre eles o próprio procurador.
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Manobrou para que aliados apresentassem à CPI da Petrobras requerimentos de convocação e quebras dos sigilos bancário, fiscal, telefônico e telemático da ex-mulher, da irmã e das filhas do doleiro Alberto Youssef, sem qualquer justificativa plausível.
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Recorreu ao deputado Heráclito Fortes, um de seus aliados, para apresentar um projeto que impedia um delator de corrigir ou acrescentar informações em depoimentos já prestados, um caso sob medida para barrar a reviravolta na delação de Júlio Camargo.
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Usou o cargo de presidente da Câmara para colocar em votação um projeto de lei que poderia eximi-lo da responsabilidade pela manutenção de valores não declarados no exterior (projeto de lei 2.960/2015).
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Exonerou Luiz Antonio Souza da Eira da diretoria do Centro de Informática da Câmara apenas por este tê-lo reconhecido como autor dos requerimentos de extorsão apresentados por Solange Almeida contra Júlio Camargo.
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Tentou prejudicar deputados do PSOL que ajudaram o partido Rede a pedir sua cassação no Conselho de Ética da Câmara dos Deputados.
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Fez ameaças e oferecimentos de vantagens ao deputado Fausto Pinato, um dos relatores do pedido de cassação de seu mandato no Conselho de Ética.