CAPÍTULO 9
Ele sim
De todos os investigados por nosso grupo de trabalho da Lava Jato em Brasília, Eduardo Cunha foi, de longe, o que mais opôs resistência ao trabalho do Ministério Público. Tivemos dificuldades com Fernando Collor, com Renan Calheiros e com muitos outros. Mas nenhum deles nos pareceu tão atrevido e tão influente quanto Cunha – nem mesmo Temer, investigado e denunciado quando ainda era presidente da República. Ao longo das investigações, Cunha conseguiu colocar contra a Procuradoria-Geral o vice-presidente da República, um ex-presidente da Câmara, um ex-procurador-geral, duas Comissões Parlamentares de Inquérito (CPI da Petrobras e CPI da JBS) e uma bancada de fiéis e agressivos deputados, boa parte deles do Centrão, que ainda hoje dá as cartas no Congresso Nacional. Curiosamente, as investigações sobre o ex-deputado foram as mais rápidas e eficientes que fizemos. Em um ano e sete meses de investigação, ele foi afastado da presidência da Câmara, teve o mandato cassado e terminou preso em Curitiba. Foi uma virada de página no caso Petrobras e uma mudança nos rumos do país.
Começamos numa tremenda desvantagem. No início, quando o ministro Teori Zavascki autorizou a abertura do primeiro inquérito contra Cunha, tínhamos apenas o depoimento em que o doleiro Alberto Youssef relatava o pagamento de US$ 5 milhões a Cunha a pedido do lobista Júlio Camargo. Parte do pagamento teria sido intermediada pelo lobista Fernando Baiano, inclusive com remessas ao exterior. A confissão do doleiro era explosiva, mais do que o necessário para abrir um inquérito, mas não suficiente para sustentar uma acusação formal. Youssef tinha falado sobre um requerimento de informação usado na Comissão de Fiscalização da Câmara para pressionar Camargo a pagar parte da propina a Fernando Baiano. O suborno total seria de US$ 40 milhões. Era a “comissão” cobrada para induzir a diretoria internacional, comandada por Nestor Cerveró, a adquirir, sem licitação, dois navios-sondas da Samsung Heavy Industries, um negócio de US$ 1,2 bilhão. Detalhe: Cerveró fechou o negócio sem o devido estudo de comprovação da necessidade dos dois navios. Ou seja, ao que tudo indica, a compra bilionária seria um meio de justificar a propina (partilhada entre Cunha, Baiano, Cerveró e Júlio Camargo), e não o contrário. Enfim, uma estranha inversão de prioridade, inclusive nesse mundo pantanoso da corrupção.
A traquinagem estava clara. O caso ganhou destaque no noticiário, e muita gente esperava uma resposta da investigação à altura do personagem e das cifras envolvidas. Mas o que ninguém fora do Ministério Público sabe é que, em determinado momento, nossa equipe quase jogou a toalha. Tínhamos a narrativa do primeiro delator, a acusação clara da cobrança da propina, mas faltava a prova material da ligação de Cunha com dois requerimentos usados para constranger Júlio Camargo. O jornal
O Globo
fornecera uma pista ao noticiar que os requerimentos tinham sido apresentados pela deputada Solange Almeida à Comissão de Fiscalização e Controle da Câmara em 2011, mas isso ainda não era a prova definitiva contra Cunha. Os requerimentos, endereçados ao Tribunal de Contas da União e ao Ministério de Minas e Energia, cobravam informações sobre transações da Mitsui, empresa de Júlio Camargo, com a Petrobras. Eram pedidos vagos, que, se lidos com atenção, poderiam ser entendidos como uma ameaça velada de uma futura denúncia pública contra o empresário e a empresa. Não havia dúvidas sobre a chantagem. Mas, na letra fria da lei, faltavam as digitais do verdadeiro responsável pela extorsão.
“Chefe, acho que vamos ter que arquivar”, me disse o procurador-regional Douglas Fischer, que coordenou a primeira fase do grupo de trabalho da Lava Jato.
Meu assessor estava desolado. Especialista em lavagem de dinheiro, com vários livros publicados sobre Direito Penal, Fischer sabia que, com o que tínhamos em mãos, em pouco tempo teríamos que encerrar o caso. Seria uma derrota acachapante. Poderia enfraquecer as demais investigações e expor a Procuradoria-Geral à sanha de nossos oportunistas adversários. Mais uma vez me lembrei da frase do Antonio Fernando de Souza (“Essa investigação pode ter consequências nefastas para o Ministério Público”). Tínhamos rechaçado as investidas de Temer e Henrique Alves, conforme relatei no primeiro capítulo. Tínhamos ignorado a advertência do ex-procurador-geral. Agora estávamos prestes a ver o triunfo dos injustos. A menos de três quilômetros do meu gabinete, no Congresso Nacional, o exército de Cunha crescia na nossa direção. A CPI da Petrobras ameaçava quebrar meu sigilo telefônico e telemático. Deputados mais afinados com Cunha queriam me convocar para depor, uma forma de me expor ao ridículo. Era uma inversão absoluta de papéis. Os investigadores seriam investigados. Os réus estavam com o chicote nas mãos e com sede de vingança por causa de um inquérito que, eles não sabiam, andava mal das pernas.
Foi aí que o acaso conspirou a nosso favor, com ajuda do próprio presidente da Câmara. O deputado exonerou o diretor de Informática da Câmara, Luiz Antonio Souza da Eira, acusado de passar para o jornal
Folha de S.Paulo
a informação de que Cunha estava, sim, por trás do requerimento da chantagem. O requerimento apresentado por Solange Almeida tinha saído do computador de Cunha. Os dados estavam registrados no sistema de informática. Era a prova material de que precisávamos. Numa reação rápida, fizemos um “requerimento de informação para cumprimento imediato”. Era um pedido de certa forma inovador, não explicitado em nenhuma lei. O ministro Teori Zavascki me olhou desconfiado.
“Procurador, isto aqui é pedido de busca”, ele disse.
“Não é não, ministro. É pedido de certidão imediata de cópia de metadados”, respondi.
Não se tratava de uma questão meramente semântica. Se fosse um pedido formal de busca, o presidente da Câmara, isto é, o alvo da investigação, teria que ser avisado. Ou seja, ele teria algum tempo para impedir nossa chegada ao banco de dados e, não é difícil supor, poderia apagar os registros, sumir com os computadores, enfim, criar qualquer entrave contra a prova material que buscávamos. Não sei se Zavascki se convenceu com minhas explicações técnicas, mas com certeza compreendeu a relevância da ação e prontamente aprovou a inusitada certidão. Numa operação sigilosa, fomos à Câmara com um oficial de Justiça e exigimos que a diretoria-geral, sem avisar ao presidente da Casa, nos entregasse os metadados onde estava o registro de que o requerimento da chantagem fora elaborado no computador de Cunha, com a senha dele, num momento em que ele estava conectado à máquina. Para não despertar nenhuma suspeita, a equipe de procuradores chegou ao Congresso Nacional com um carro sem a marca “a serviço do Ministério Público” e o oficial de Justiça só se identificou como tal no momento de tirar o mandado de uma pasta e exigir que a ordem do ministro do Supremo fosse cumprida sem demora.
Ao contrário do que costuma acontecer em ações de buscas, dessa vez resolvemos não chamar a polícia. Era uma ação exclusiva do Ministério Público, com vistas, claro, a assegurar rapidez e manter cada detalhe da ação restrito a um pequeno círculo de investigadores. Surpreso com a visita, o diretor da Câmara até tentou resistir. Disse que teria que avisar ao superior hierárquico, no caso, Cunha. Aquela dificuldade não estava nos nossos planos, mas o chefe da equipe reagiu com presteza. Orientou o oficial de Justiça a registrar detalhadamente tudo o que ocorria, porque aquilo poderia dar ensejo a um pedido de prisão. Foram momentos de forte tensão. Sem margem para negociação e com medo das consequências penais contra quem se coloca no caminho da Justiça, o diretor cedeu. Em um lance que parecia mágico, obtivemos a prova que faltava. Naquele momento, saíamos da lona e começávamos a virar o jogo.
Diante do requerimento da chantagem, Júlio Camargo, que praticamente ignorou Cunha na delação, decidiu refrescar a memória e, num detalhado depoimento, confirmou a tentativa de extorsão, o pagamento da propina e a agressividade do deputado na cobrança do suborno. Pelo que entendi, o lobista tinha medo físico do parlamentar. A delação de Camargo foi ampliada com a colaboração de Fernando Baiano, que, espremido pelas evidências, também concordou em contar como se utilizara dos serviços de Cunha para cobrar o restante da propina de Camargo.
A convergência das delações e a prova material da autoria do requerimento da extorsão seriam suficientes para uma condenação. Mas, como se tratava de um investigado mais do que influente, resolvemos caprichar e nesse período acho que fizemos um dos melhores trabalhos de investigação de toda a Lava Jato. Num de seus depoimentos, Júlio Camargo disse que, em determinado momento, se reuniu com Eduardo Cunha e Fernando Baiano para acertar o pagamento da parcela final da propina, US$ 10 milhões. Era mais um indicativo eloquente da presença do presidente da Câmara na cena do crime. Mas como e onde obter as provas materiais do encontro? Na linguagem dos jornalistas, era a bala de prata que estava faltando. Decidimos, então, concentrar todos os nossos esforços em “reconstituir” o encontro. Com a ajuda de Júlio Camargo recuperamos a data e o local. Ele, Cunha e Baiano tinham se encontrado no dia 18 de setembro de 2011, um domingo, numa sala do prédio Leblon Empresarial, na avenida Afrânio de Melo Franco, no Rio.
Cunha e Baiano chegaram juntos numa Range Rover, placa EIZ 8877, às 19h14, e deixaram o carro no estacionamento do Rio Design Leblon. Depois se encontraram com Júlio Camargo, e os três subiram juntos para uma das salas da empresa Sidus, no terceiro andar do prédio, sede do escritório Weyne Costa Advogados, de um amigo de Fernando Baiano. Júlio Camargo, que tinha saído do aeroporto de Congonhas às 17h30 daquele domingo, chegou ao local num Camry preto, placa ELL 2211. Uma antena de transmissão, instalada na avenida Ataulfo Alves de Paiva, registrou que pouco antes da reunião Fernando Baiano fez oito ligações para um amigo. Durante a reunião, fez mais três chamadas. Mapear o trajeto de Júlio Camargo de São Paulo até o local do encontro e depois a volta para São Paulo, bem como indicar com dados materiais a presença de Cunha e Fernando Baiano, não era apenas um preciosismo de investigadores aferrados a detalhes. Era uma forma de não deixar a mínima margem para uma futura contestação. As longas horas na busca de registros de entrada no estacionamento, de uso da sala da reunião, das chamadas telefônicas e das passagens aéreas foram um trabalho de paciência magistral. Com aqueles dados, captados em diferentes fontes, era inegável que o encontro tinha de fato acontecido. Para completar, a reunião entre os três foi filmada por um circuito interno de TV do prédio. Era a cereja do bolo. Por melhores que fossem os advogados contratados por Cunha, nenhum deles poderia tirá-lo da cena do crime e nem dizer que ele estava com as mãos limpas.
Nesse caso também recebemos uma inesperada ajuda vinda do outro lado do Atlântico. Enquanto sofríamos aqui para chegar à prova de uma ligação material entre Cunha e a farra da compra dos navios-sondas, o Ministério Público da Suíça descobriu e mandou para o Brasil documentos com provas irrefutáveis de quatro contas de Cunha em bancos locais. As contas estavam em nome de
offshores
, mas tinham até fotos de seu usufrutuário, como mais tarde Cunha se autointitulou. Os procuradores suíços tiveram o cuidado ainda de mandar no pacote a movimentação das contas. Tínhamos ali a origem e o destino dos recursos, parte deles usada para bancar despesas do cartão de crédito internacional da mulher do ex-deputado. As informações dos suíços casavam com parte da delação do empresário João Augusto Rezende Henriques sobre pagamento de US$ 1,5 milhão de propina a Cunha no exterior. A propina seria a comissão do deputado, que, com influência sobre a diretoria internacional, levara a Petrobras a comprar por mais de US$ 34 milhões um campo de petróleo no Benin, na África. Um prejuízo absurdo para a estatal. O poço estava seco. O rastreamento internacional mostrou que a propina abastecera as contas de Cunha na Suíça.
Apresentamos a primeira denúncia contra Cunha por corrupção e lavagem de dinheiro em 20 de agosto de 2015. Quatro meses depois, com mais informações coletadas, pedimos o afastamento do deputado da presidência da Câmara. Em março, o STF abriu processo contra o presidente da Câmara. Três meses depois, ele foi afastado da presidência.
Presentes não caem do céu
Devemos reconhecer mais uma vez o papel do Ministério Público da Suíça, especialmente do ex-procurador-geral Michel Lauber. Os procuradores não só mandaram as provas das contas de Cunha, como, num gesto de boa vontade, autorizaram que fizéssemos as investigações necessárias aqui no Brasil com vistas a um processo contra o deputado pelos mesmos crimes descobertos na Suíça, sem qualquer restrição. Não impediram nem mesmo a investigação sobre crimes tributários, uma praxe em casos similares. Isso não era uma simples medida burocrática. Até chegar a esse grau de confiança e ampla cooperação, tivemos que reconstruir pontes. Por erros de um colega de São Paulo, a Suíça andava ressabiada com os investigadores brasileiros. Só depois de uma longa negociação, conduzida do lado brasileiro por Vladimir Aras, é que as portas da colaboração voltaram a se abrir.
O retorno da troca de informações em alto nível tinha uma razão de ser que ia muito além da simpatia mútua. Os investigadores suíços estavam dispostos a limpar ou pelo menos minimizar a imagem da Suíça como esconderijo seguro do dinheiro da corrupção, do tráfico e do terrorismo internacional. Isso ajudou muito. Toda vez que tínhamos uma suspeita sobre determinado investigado e fazíamos uma consulta, eles prontamente nos respondiam. Os documentos oficiais, que dariam lastro às nossas investigações, passavam pelos canais formais, como o Departamento de Recuperação de Ativos, do Ministério da Justiça. Mas alguns dados, que serviriam para confirmar hipóteses levantadas pela inteligência, eram transmitidos em trocas de mensagens pelo celular. A confiança e o respeito nas relações foram fundamentais na cooperação. Eles também ficaram impressionados com nossos sistemas de cruzamento de dados. Num gesto de humildade, até pediram que compartilhássemos nossa experiência.