CAPÍTULO 10
“Chefe, acho que vamos ter que prender um senador!” (Uma faísca no paiol de pólvora do governo)
Pelella entrou no meu gabinete para o primeiro despacho do dia. Ao final, depois da análise de documentos e das assinaturas habituais, disse, com toda a calma do mundo:
“Chefe, acho que vamos ter que prender um senador!”
Minha primeira reação foi de surpresa absoluta. Meu chefe de gabinete estava quase sempre de bom humor, mesmo nos piores momentos, mas não costumava fazer esse tipo de piada.
“Como assim, prender um senador?”, perguntei.
Era novembro de 2015, e os inquéritos abertos no início do ano andavam bem. Alguns avançavam mais que outros. Em julho tínhamos feito buscas em endereços de alguns políticos, entre eles Collor e os também senadores Ciro Nogueira e Fernando Bezerra (PSB-PE). Eram casos importantes, que também tinham bom andamento. Mas nenhum desses casos, até onde eu soubesse, continha os pressupostos necessários para justificar um pedido de prisão, ainda mais prisão preventiva. Como assim, prisão de um senador?
“E não é um senador qualquer, é o líder do governo”, ele acrescentou, com discreto sorriso no rosto e segurando um pen drive.
Ele falava com segurança, como se a simples visão do minúsculo equipamento fosse, por si só, uma explicação eloquente o bastante para desfazer o aparente absurdo da afirmação que fazia.
“Vocês estão loucos? O que é isso?”
Pelella não respondeu diretamente. Apenas me pediu que, antes de qualquer conclusão, eu primeiro ouvisse a gravação que estava no pen drive. A qualidade do som não era das melhores, ele disse, mas o conteúdo era autoexplicativo. O senador Delcídio do Amaral, ninguém menos que o líder do governo no Senado, fora flagrado numa conversa nada republicana, e o único remédio possível era o xadrez. Muito jovem, mas experiente, Pelella não costumava errar, nem exagerar. Não por acaso ele tinha sido o primeiro colocado no concurso que o levara ao Ministério Público Federal, um dos vestibulares mais concorridos do país. Sim, o que ele me dizia parecia absurdo, mas certamente era verdade. Era o que eu me dizia, mas ainda, confesso, um tanto incrédulo. O que teria feito um senador àquela altura que merecesse prisão? A Lava Jato estava havia quase dois anos na rua e, como todos sabiam, se aproximava perigosamente do poder político.
No fim da tarde, depois de resolver questões urgentes do dia, peguei a gravação e fui direto para meu escritório, em casa. Um lugar silencioso, onde eu sabia que não seria interrompido. Aquele comentário, “Chefe, acho que vamos ter que prender um senador”, martelava na minha cabeça. Será? Botei uma taça de vinho à mesa e o pen drive no laptop. Foram algumas horas de incredulidade e repulsa. O líder do governo no Senado, um homem grisalho, experiente e sempre muito educado, fora flagrado num monumental exercício de desfaçatez. Numa roda de conversa com o ator Bernardo Cerveró, filho de Nestor Cerveró, e com o advogado Edson Ribeiro, Amaral tramava uma mirabolante fuga do ex-diretor da área internacional da Petrobras, um dos alvos centrais da Lava Jato, para a Espanha. Pelo roteiro do senador tagarela, a Segunda Turma do Supremo concederia um habeas corpus para Cerveró. Uma vez fora da cadeia, ele seria levado para o Paraguai e, de lá, direto para a Espanha, em um jato capaz de cruzar o Atlântico sem necessidade de reabastecimento. A tornozeleira eletrônica, artefato de uso quase obrigatório para todos os presos da Lava Jato agraciados com habeas corpus naquele período, seria desativada. Na Espanha, Cerveró seria novamente um homem livre, fora do alcance da polícia brasileira. O ex-diretor tem cidadania espanhola e não poderia, em tese, ser mandado de volta para o Brasil.
A família de Cerveró seria generosamente amparada: Bernardo Cerveró receberia R$ 50 mil no ato do acordo e os outros familiares teriam uma mesada de igual valor por tempo indeterminado. Edson Ribeiro, advogado de Nestor Cerveró, seria agraciado com R$ 4 milhões para vetar a delação do cliente ou, em último caso, impedir que o ex-diretor incluísse o nome de Amaral e de André Esteves, do banco BTG Pactual, num eventual acordo de colaboração. Parte dos custos seriam bancados por Esteves, segundo relatou mais tarde Bernardo Cerveró.
E como esse plano, com tantas variáveis e com um final feliz, seria executado? Simples. Amaral diz, no desabrido diálogo, que já tinha falado sobre o habeas corpus de Cerveró com Teori Zavascki, relator da Lava Jato, e com José Antonio Dias Toffoli, presidente da Segunda Turma. Numa outra frente, ele escalaria o presidente do Senado, Renan Calheiros, para cabalar o voto de Gilmar Mendes. O ministro, aliás, já tinha sido procurado pelo vice-presidente Michel Temer, que estaria com receio da delação do ex-diretor da Petrobras, Jorge Zelada.
“Agora, agora, Edson e Bernardo, eu acho que nós temos que centrar fogo no STF agora. Eu conversei com o Teori, conversei com o Toffoli, pedi pro Toffoli conversar com o Gilmar, o Michel conversou com o Gilmar também, porque o Michel tá muito preocupado com o Zelada, e eu vou conversar com o Gilmar também”, afirma Amaral em um dos trechos mais emblemáticos da gravação, sem qualquer espanto dos ouvintes.
Ah, e como se não bastasse, como se aquilo fosse nada para os superpoderes que detinha, Amaral disse ainda que falaria com o ministro Edson Fachin para conceder um habeas corpus para Paulo Roberto Costa, o titã número 1 da corrupção na Petrobras. Aquilo era realmente inacreditável. Um senador prometendo botar no bolso quatro ministros do STF e, num passe de mágica, tirar de cena os dois mais importantes ex-diretores da Petrobras investigados pela Lava Jato. Era como se ele pudesse imobilizar o país por alguns momentos e agir livremente, como um gigante invisível. Estaria o senador tentando reescrever um romance do realismo mágico de García Márquez? Não sei. A crítica literária nunca foi meu forte. A única coisa que pensei foi:
Isso aqui é caso de cana, sim
.
Eu acho que vamos ter que prender um senador. E não é um senador qualquer, é o líder do governo
, disse a mim mesmo, enquanto fechava o laptop. A garrafa de vinho estava vazia e eu sentia um imenso cansaço.
No dia seguinte, fui direto para o gabinete de Zavascki.
“
Houston, we have a problem!
”, eu disse, logo que ele fechou a porta e ficamos a sós.
Eu não costumava falar assim com o relator da Lava Jato. Mas, tal qual o astronauta Jack Swigert durante a viagem da Apollo 13 à Lua, nos idos dos anos 1970, nós tínhamos um problema grave, que poderia explodir de vez a Lava Jato. Swigert tinha virado personagem de um filme de grande sucesso. Nós estávamos próximos de protagonizar uma comédia, se medidas enérgicas não fossem tomadas imediatamente.
“O que foi?”, perguntou Zavascki, pregando os olhos em mim.
Quando eu comecei a falar, ele me cortou.
“Não venha me dizer que você veio me pedir a prisão de um senador da República.”
Eu, com a mesma fleuma que vira em Pelella, disse que ia, sim, pedir a prisão do líder do governo no Senado. Ele me respondeu “Nãããão!”, como quem diz: não me traga um pepino desse tamanho numa hora dessas.
“Ministro, escute este áudio e depois me chame para conversar”, foi o que eu disse antes de entregar o pen drive e voltar para a Procuradoria-Geral.
No dia seguinte ele me chamou para tomar um café no gabinete. Mal fechou a porta e foi direto ao que interessava.
“O pedido de prisão está pronto?”
“Sim, está pronto.”
“Pode entrar com o pedido, então. É caso típico de prisão. Não tem outro remédio. Não tem mesmo. Vou negociar com o pessoal da Turma.”
O ministro também estava estarrecido com o teor dos diálogos. Zavascki sempre foi muito tranquilo. Nunca o vi alterar tom de voz ou semblante. Daquela vez não foi diferente. Sem demonstrar qualquer tensão, ele me disse que aquilo tudo era um absurdo. Ele conversaria com os colegas de Turma, Dias Toffoli, Gilmar Mendes, Cármen Lúcia e Ricardo Lewandowski, e depois voltaria a falar comigo. O caso exigia um cuidadoso estudo de cenário. No STF é assim: os casos mais sensíveis, que podem afetar as relações com outros poderes, são, em geral, tratados de forma reservada. Só depois, com ou sem entendimento prévio, é que são levados ao plenário. Estrategista refinado, Zavascki gostava de compartilhar com os demais ministros a responsabilidade pelo encaminhamento e pelas decisões dos processos mais impactantes. Afinal, a Corte é um colegiado, ou pelo menos deveria ser, e não 11 ilhas decisórias.
Logo depois, não sei se no mesmo dia ou no dia seguinte, o ministro me chamou para mais uma conversa no gabinete dele. Na mesa de vidro redonda pude ver as marcas de dedos que se arrastavam em várias direções.
A reunião com o pessoal da Turma deve ter sido tensa
, pensei. Não deve ter sido fácil para os ministros ouvir aquela conversa, sobretudo porque alguns eram citados explicitamente ali como massa de manobra de um boquirroto. Mas, antes que eu concluísse minhas divagações, Zavascki me disse o que eu precisava ouvir. Ele autorizaria a prisão e, depois, a levaria para o colegiado referendar. Como se tratava de uma situação inédita, ele exigiu alguns cuidados.
“Vamos estabelecer a forma de execução disso. É a primeira vez que a gente vai prender um senador. É um senador importante. Vai ter busca e apreensão na casa dele, no gabinete, na liderança do governo no Senado. Então eu não quero estardalhaço. Não quero ninguém fardado, todo mundo tem que ir de terno. Não quero sirene ligada. Não quero algema”, disse.
Antes que um desavisado tire conclusões apressadas, é importante dizer que não havia, na cautela do ministro, nenhum temor ou vontade de proteção a um personagem do alto escalão. A preocupação era fazer tudo dentro dos limites da lei, sem dar margens a críticas sobre eventuais excessos e, sobretudo, sem despertar a ira de colegas do senador. A ordem de prisão teria ainda que ser chancelada no mesmo dia pelo plenário do Senado. Respondi que eu mesmo acompanharia a operação. Eu, na verdade, acompanhava todas as grandes operações. Uma delas foi a busca na casa de Collor. Não haveria qualquer dificuldade em reservar o dia apenas para coordenar a ação dos diversos grupos a serem escalados para a missão.
Zavascki ainda me pediu para destacar dois procuradores para acompanhar as equipes da Polícia Federal no cumprimento das ordens de prisão e dos mandados de busca. O ministro deixou claro ainda que, antes da execução da prisão, o presidente do Senado teria que ser avisado. O.k., não haveria nenhum problema. Calheiros seria avisado no momento oportuno. Em uma reunião com minha equipe, pedi que obtivessem os telefones de Luiz Fernando Bandeira de Mello Filho, secretário-geral do Senado, e da secretária de Calheiros. Teríamos que manter os canais abertos com a segurança do Senado. Esses detalhes poderiam ser decisivos na madrugada, na hora das prisões. Não poderíamos deixar que a falta de um número de telefone, um tropeço qualquer, colocasse em risco a maior ação de rua da Lava Jato em Brasília até aquele momento.
Na raiar do dia seguinte, 25 de novembro, uma quarta-feira, Amaral foi preso em seu quarto, em um hotel cinco estrelas, próximo ao Palácio da Alvorada. Mais difícil que a prisão do senador foi a conversa que tive antes de o sol raiar com Renan Calheiros. Quando as equipes da polícia e dos nossos procuradores já estavam no hotel e no Senado prontos para cumprir as ordens de Zavascki, eu decidi que estava na hora de falar com Calheiros. Estava com parte da minha equipe na Procuradoria-Geral. Liguei para a secretária e para Bandeira. Nenhum dos dois atendeu. As equipes de rua, com as quais mantínhamos contato permanente, começaram a ficar apreensivas. “E agora, como é que a gente faz?” Em pouco tempo, servidores começariam a chegar ao Senado. O aumento da chegada e da saída de hóspedes no hotel poderia dificultar o isolamento da área. Teríamos que sair daquela encrenca rapidamente. Eu pedi calma. Ninguém deveria fazer nada enquanto eu não desse o o.k.
Sem alternativa, liguei direto para a residência oficial do presidente do Senado. Um segurança atendeu a ligação.
“Bom dia, aqui quem está falando é o Rodrigo Janot. Sou o procurador-geral da República. Preciso falar com o presidente. É um caso urgente!”, eu disse.
O segurança respondeu que o senador estava dormindo e não poderia ser acordado naquele momento. Eu tive, então, que mudar o tom.
“Se você não acordar o senador agora, sou eu quem vai aí. Vai ser pior, sou eu quem vai bater à porta do quarto dele. Eu não tenho mais tempo para continuar com essa conversa!”
O segurança entendeu o tom de urgência e transferiu a ligação para o quarto do senador. A esposa dele atendeu com voz de sono. Eu me identifiquei e pedi desculpa pelo horário inoportuno da ligação, mas disse que o assunto era relevante e urgente.
“Preciso falar agora com o senador!”
Do outro lado da linha, eu pude ouvi-la falar baixinho, provavelmente com a mão no bocal do telefone:
“É ele... É ele... É ele.”
Seguiu-se um longo silêncio até que o senador viesse ao telefone.
“Bom dia, presidente. Desculpe o incômodo da ligação nesse horário, mas vai acontecer uma diligência agora e eu tenho que lhe informar. Nós vamos prender um senador!
Fez-se se um novo e longo silêncio do outro lado da linha. Meu interlocutor parecia travado. Eu pensei:
E agora, o que eu falo para tirar essa trava? Preciso resolver isso logo. Tem gente na rua esperando um comando meu. O sucesso da operação depende disso
. Então, com uma absoluta falta de tato, disparei:
“Não é o senhor, não!”
As palavras mal escaparam da minha boca e eu percebi, constrangido, o tamanho da gafe.
Não acredito que falei isso
, pensava.
E agora, o que dizer?
O senador, então, me perguntou quem seria preso. Quando eu disse que seria Delcídio do Amaral, ele pareceu subitamente aliviado, e a conversa fluiu normalmente.
Expliquei que a ordem de prisão fora expedida com base em um pedido meu. O filho de Cerveró gravara uma conversa em que Amaral tramava a fuga e o silêncio do ex-diretor da Petrobras. A ordem de prisão seria cumprida naquele momento, mas precisaria ser referendada mais tarde pelo plenário do Senado. Ele seria comunicado oficialmente do processo. O senador me pediu uma cópia do pen drive. Ele queria ouvir a gravação com os líderes dos partidos e encaminhar as decisões necessárias quanto antes. Eu não tinha nenhum funcionário que pudesse levar o pen drive à casa dele; era muito cedo, o expediente só começaria mais tarde. Ele achou por bem mandar acordar uma das secretárias para buscar o pen drive no meu gabinete. Não sei se era a mesma secretária que não tinha atendido minha ligação minutos antes. O fato é que ele ouviu a gravação com os líderes e, no mesmo dia, o plenário convalidou a prisão do senador, um novo momento histórico na sucessão de momentos históricos da Lava Jato. O mandato parlamentar já não era uma capa de aço, o degenerado manto da impunidade. Alguns senadores já tinham sido processados, cassados e até condenados. Mas aquela era a primeira vez que o Senado Federal se reunia para dizer sim à prisão preventiva de um senador. Pela primeira vez, teríamos um senador preso em pleno exercício do mandato.
Delcídio do Amaral foi preso em um quarto do segundo andar do luxuoso hotel Royal Tulip pela equipe do delegado Thiago Delabary, acompanhada dos procuradores Douglas Fischer e Marcelo Miller. Depois de passar pela portaria e pela recepção do hotel, com as devidas advertências aos funcionários do local de que ali estava em curso uma operação da polícia e eles não poderiam se comunicar com mais ninguém fora daquele espaço, Fischer e Delabary subiram até o quarto do senador. O delegado já estava com uma cópia da chave, mas ambos acharam melhor pedir para o recepcionista ligar para o quarto do senador e solicitar que ele mesmo abrisse a porta, porque a polícia queria falar com ele. O recepcionista cumpriu a ordem exatamente como fora instruído. No corredor era possível ouvir o toque do telefone e a reclamação do homem que acabava de ser acordado.
“Como assim, Polícia Federal? Eu sou um senador. Eles não podem entrar aqui”, dizia Amaral.
O delegado decidiu, então, intervir. Ainda no corredor, fez a devida identificação e disse que tinha uma cópia da chave do quarto. Se o senador não abrisse a porta, ele mesmo o faria. Depois de um longo silêncio, Amaral abriu a porta. Parecia irritado, confuso. Delabary anunciou que tinha um mandado de busca contra ele expedido pelo Supremo e que seria cumprido naquele instante. Fischer se apresentou como procurador da República. Seria mais uma garantia de que ele não sofreria qualquer ilegalidade. O senador, ainda assustado, pediu para falar com o advogado, mas só conseguiu contato depois de mais de dez tentativas. Ao final das buscas, encerradas em menos de uma hora, o delegado se voltou para o senador e disse que tinha um mandado de prisão, também expedido pelo Supremo. Ele estava, a partir daquele momento, preso. Segundo me contaram, ao ouvir a voz de prisão, Amaral ficou pálido.
“Eu não posso ser preso. Sou um senador!”
Coube a Fischer entrar em cena e explicar que a ordem de prisão obedecia aos preceitos legais. A lei permite, sim, a prisão em flagrante de parlamentar. Amaral pediu novamente para falar com o advogado, que parecia não aceitar o fato de que o cliente estava sendo preso. Logo depois, pediu para falar com a mãe, uma mulher já idosa, que vivia em Campo Grande. Depois de várias tentativas de ligações sem sucesso, o senador descobriu mais um detalhe que, para ele, era chocante.
“Doutor, está acontecendo alguma coisa em Campo Grande?”, ele quis saber.
Sim. A Polícia Federal estava fazendo buscas simultâneas em todos os endereços oficiais dele, inclusive na liderança do Senado. Quando soube das buscas na casa da mãe, o senador se tornou ainda mais agitado. No meio da confusão, pediu para tomar banho. Foi autorizado, desde que não trancasse a porta do banheiro. Eram medidas de segurança. Quando tudo parecia sob controle, eis que entra o gerente do hotel e diz para Fischer, a quem já conhecia, que “a imprensa toda está lá fora”. Era tudo que não poderia acontecer. Zavascki tinha pedido discrição absoluta. Não poderíamos permitir a exposição do preso. Para driblar os jornalistas, os dois procuradores saíram no carro da polícia, enquanto Amaral era levado por Delabary e um agente numa caminhonete descaracterizada do Ministério Público. Quando chegou a uma sala da Superintendência da PF, na Asa Sul, onde permaneceria preso nos dias seguintes, o senador fez mais um pedido:
“Quero falar com minha mãe!”
Depois da prisão de Amaral, algumas pessoas começaram a difundir a versão de que ele tinha sido vítima de um flagrante preparado. Na falta de argumento melhor, diziam que investigadores teriam orientado Bernardo Cerveró a gravar a conversa com o senador. Uma bobagem sem tamanho, que não resiste a um minuto de análise. Cerveró, o filho, pode até ser um bom ator, mas quem entrou em cena e assumiu o protagonismo do roteiro criminoso foi o líder do governo. Uma pessoa sobre a qual se pode dizer muita coisa, menos que era ingênua. E o que Bernardo Cerveró ganharia com a prisão do senador? Nada, a não ser, claro, um inimigo poderoso. Não me parece que, com o pai preso, ele estivesse em condições de sair por aí fazendo inimizades.
A verdade é que Bernardo Cerveró procurou Sérgio Bruno, coordenador do grupo de trabalho, falou sobre o assédio do senador e entregou o pen drive com a gravação de uma das conversas que tiveram. O ator entendera claramente que, com o pai preso, aquela movimentação do senador e do advogado só poderia complicar a situação e, pior, atingir outras pessoas da família. Não há dúvida de que ele escolheu o melhor caminho. Também não há razão para especular sobre uma intervenção ilegal da minha equipe de investigação num caso que chegou às nossas mãos praticamente pronto. Nosso único trabalho foi emoldurar a cena num tipo penal adequado para dar suporte aos pedidos de prisão preventiva.
Se eu tivesse que buscar uma explicação além da que está nos autos, diria que o movimento impulsivo do senador era a reação de um sistema político doente aos efeitos profiláticos da Lava Jato. Apavorado com o risco de ser delatado e preso, Amaral se precipitou na prática de um crime. Quem conhece o campo da investigação criminal sabe que isso não é novidade no comportamento de quem ultrapassa as barreiras da lei. Culpa e medo de réus ou de potenciais investigados costumam ter importância decisiva no desenlace de crimes de grande repercussão.
Menos de um mês depois de preso, a imagem do homem inocente, vítima de um complô, que o senador tentava construir para si caiu por terra. Com dificuldades de se adaptar à rotina da cadeia e ciente de que as provas contra ele eram contundentes, Amaral contratou novos advogados e partiu para a delação. Nossa primeira providência foi transferi-lo da Superintendência da Polícia Federal para um quartel do Corpo de Bombeiros. Longe do entra e sai de advogados, parentes e policiais que se vê todo dia na PF, diminuiríamos os riscos de vazamento. Sabíamos que a delação do senador seria explosiva, como acabou sendo, nem tanto pelo conteúdo, mas pela identidade do delator. Afinal, era o líder do governo que resolvera abrir a boca num momento político delicado.
Para garantir o sigilo, criamos até uma história de cobertura. Se alguém descobrisse e viesse nos perguntar por que o senador estava numa prisão de oficiais, e não na PF, diríamos que a mudança se devia a razões médicas. Acho que alguns jornalistas até desconfiaram da movimentação no quartel, mas felizmente nada vazou, e o senador pôde ser ouvido sem nenhuma perturbação externa. Em 21 anexos, Amaral disparou acusações contra a presidente Dilma Rousseff, o ex-presidente Lula, o vice-presidente Michel Temer, o presidente do PSDB, Aécio Neves, e o banqueiro André Esteves, entre outros personagens centrais do mundo político e empresarial. De todas as acusações, duas me chamaram mais atenção. A primeira era sobre a atuação da presidente na escolha de um ministro do Superior Tribunal de Justiça (STJ) para esvaziar parte da Lava Jato no tribunal. A outra era sobre a manobra de Aécio Neves para alterar o curso da CPI dos Correios, a investigação que levaria à prisão as cúpulas do PT e do Banco Rural.
Com certa desenvoltura, Amaral contou que a indicação do desembargador Marcelo Navarro, do Tribunal Regional Federal da 5
a
Região, para o STJ fazia parte de uma manobra do governo e de parte do Congresso para soltar o presidente da Odebrecht, Marcelo Odebrecht, que estava preso em Curitiba. O empresário, dono da maior empreiteira da América Latina, maior financiador de campanhas eleitorais do país, fora preso em 19 de junho, e, para surpresa de muitos, a prisão vinha sendo mantida ao longo dos dias. A detenção do empresário representava pressão máxima sobre o mundo político. Algo deveria ser feito. E esse algo era a nomeação de Navarro para o STJ. O senador conta que, na condição de líder do governo, se reuniu com a presidente Dilma no Palácio da Alvorada para tratar do assunto. Numa caminhada pelos jardins do Palácio, a presidente teria orientado o senador a sondar com Navarro a disposição dele de votar a favor do dono da Odebrecht. O senador atendeu a sugestão e, no dia 22 de julho, se reuniu com Navarro no Palácio do Planalto para arrematar a negociação.
As tratativas teriam passado ainda pelo presidente do STJ, Francisco Falcão, amigo de Navarro. Amaral não tinha gravado as conversas com a presidente e com o ministro, mas agendas extraídas do computador dele registravam os encontros com Dilma e com Navarro. Outro detalhe importante é que, na primeira votação como ministro da Quinta Turma do STJ, Navarro votou pelo relaxamento da prisão de Marcelo Odebrecht. O empresário só não foi solto porque outros quatro ministros votaram pela permanência dele na cadeia. Se comparado com o que mais tarde seria revelado pela Lava Jato, inclusive com a delação do próprio Marcelo Odebrecht, a acusação de interferência do governo no Judiciário pode parecer um fator de menor relevância. Mas naquele momento não era. Pelo contrário, as acusações do senador empurraram a Lava Jato para dentro do Palácio do Planalto. Até então a Operação se concentrava nas relações de diretores da Petrobras, empreiteiras e doleiros com deputados e senadores. Amaral apontou o dedo contra Dilma e, com o gesto, trincou a imagem de neutralidade absoluta que a presidente cultivava perante as investigações sobre o lamaçal da Petrobras.
A acusação de que Aécio Neves agiu para atrapalhar as investigações da CPI dos Correios, entre 2005 e 2006, também foi um disparo de impacto. O senador contou que Neves pedira a ele para prorrogar o prazo de entrega dos documentos sobre a movimentação financeira do Banco Rural pedidos pela Comissão. Com a ampliação do prazo, o banco teria tido tempo para maquiar dados e excluir informações comprometedoras contra Neves e Clésio Andrade, no período em que os dois foram, respectivamente, governador e vice-governador de Minas Gerais. Os canhões da CPI tinham estado direcionados contra dirigentes do PT e do Banco Rural. A revelação dos dados excluídos dos documentos enviados à comissão poderia arrastar Neves para o centro do escândalo, com dois resultados possíveis. Um deles seria enlamear o PSDB, que liderava a oposição. O outro, mais provável, seria reduzir, na esfera política, as investigações contra o partido do governo.
Amaral contou ainda que os deputados Carlos Sampaio e Eduardo Paes, as duas vozes mais estridentes do PSDB na CPI, sabiam da manobra para proteger Aécio. Sim, era um escândalo dentro do escândalo. Na frente das câmeras, líderes da oposição faziam discursos veementes, às vezes raivosos, contra a corrupção e em defesa da moralidade no trato da coisa pública. Nos bastidores, repetiam os mesmos vícios condenados nos adversários. Isso explica um pouco por quê, apesar das aparentes mudanças, tudo permanece como sempre foi ao longo da história política brasileira. As mudanças são tópicas, apenas de fachada. As estruturas sobrevivem aos choques partidários e aos clamores das ruas.
Amaral também falou sobre as relações de Aécio Neves com Dimas Toledo, ex-diretor de Engenharia de Furnas. Na mesma linha de Alberto Youssef, o senador disse que vários políticos recebiam regularmente propina de empresas com contratos com Furnas. Neves era um dos nomes mais vistosos dessa lista. O esquema era o mesmo identificado na Petrobras pela Lava Jato. Empresas contratadas por uma estatal faziam pagamentos de propinas a políticos que davam sustentação aos diretores da empresa. O curioso é que parte desse esquema foi descoberto ainda quando se investigava o mensalão e, não sei por quê, as investigações foram deixadas de lado.
As informações de Amaral não eram suficientes para ensejar uma condenação. Eram difíceis até mesmo como ponto de partida de uma investigação, mas ajudaram a mostrar que as suspeitas contra o ex-governador de Minas não se resumiam às memórias incompletas de um doleiro enrolado.
Tempos depois, alguns críticos disseram que a delação de Amaral carecera de provas e, portanto, o acordo que fizemos com ele deveria ter sido cancelado. Chegaram a dizer, de forma maldosa, que o senador fez apenas uma crônica da vida política. Ora, isso não é verdade. Delcídio do Amaral fez relatos de crimes graves e indicou caminhos por onde as provas poderiam ser obtidas. As investigações, de fato, não avançaram como queríamos. Mas isso se deve muito mais à complexidade dos crimes narrados do que a eventuais falhas da delação. Eu mesmo pedi o arquivamento do inquérito sobre Dilma e os dois ministros do STJ. Fiz isso porque as informações eram falsas? Não necessariamente. Optamos pelo encerramento do caso porque, num determinado momento, esgotamos todas as nossas possibilidades de investigação sem alcançar os indícios necessários para uma acusação formal. Não é fácil provar que um ministro votou desta ou daquela maneira para atender um acerto prévio. Sem registro material de um eventual acordo espúrio, o investigado sempre poderá reivindicar, de forma legítima, livre convencimento. “Votei assim porque me convenci de que essa era a decisão mais justa”, ele poderia dizer, e ninguém teria autoridade para afirmar o contrário. Juízes têm autonomia para decidir pelo que consideram mais justo. Se não fosse assim, não seriam juízes.
A outra opção que tínhamos quando Amaral pediu para fazer acordo era simplesmente não aceitar a proposta. Nesse caso, o que diriam os críticos quando soubessem que o líder do governo denunciara a chefe dele, acusara o líder da oposição e muitos outros políticos importantes e, mesmo assim, o Ministério Público Federal não se interessara pelo caso? Não, isso não seria razoável. Eu e meus auxiliares seríamos triturados. O mínimo que diriam é que teríamos prevaricado à luz do dia diante de uma nação sequiosa por correção e coragem. Enfim, acho que fizemos a coisa certa e, se fosse possível recuar no tempo, faria exatamente o que fiz.
O acordo com Amaral colocou a Lava Jato num patamar mais elevado. O primeiro senador a ser preso em flagrante era também o primeiro integrante da base governista a fazer uma delação contra o governo e contra parte da oposição. Faltaram contas bancárias, livros-caixas, gravações de conversa? Sim, faltaram. Mas o senador era um político, não um operador financeiro. Por isso, a delação dele era mais importante pelas revelações de detalhes sobre determinadas relações políticas do que por eventuais indicativos de movimentações financeiras.
Aceitar o acordo de delação de Amaral não foi, por si, uma decisão fácil como alguns podem pensar. Eu e meus auxiliares mais próximos sabíamos que estávamos entrando num caminho sem volta. Dali em diante não teríamos mais diálogo com o Executivo e com o Legislativo. Ninguém tinha receio pessoal. Nesse ponto, acho que estávamos devidamente protegidos. Nossa preocupação era com medidas contra a instituição, o retorno da Lei da Mordaça e outras quinquilharias legais que pudessem reduzir os poderes de investigação do Ministério Público, duramente conquistados nos últimos anos. Ainda assim, mesmo cientes dos riscos, resolvemos assinar o acordo porque não era possível fechar os olhos para crimes graves, descritos por ninguém menos que o líder do governo no Senado.
Com os depoimentos da delação encerrados, Amaral deixou a prisão em 19 de fevereiro de 2016. Duas semanas depois, a revista
IstoÉ
divulgou com estardalhaço parte do conteúdo de alguns depoimentos. A publicação centrou fogo nas acusações dele contra Dilma e Lula. Não sei por que se omitiu em relação a Aécio Neves e outros importantes nomes mencionados pelo senador-delator. A divulgação da delação, naquele formato, caiu como uma bomba no conflagrado ambiente político de Brasília. Em agosto, cinco meses depois, o Senado aprovou o impeachment da presidente.
Tenho a impressão de que a delação do senador catalisou o movimento pelo impeachment e ajudou a tirar do poder o governo do qual ele era, até ser preso, uma peça-chave. O processo para o impedimento da presidente já estava em curso desde o início de dezembro, quando Eduardo Cunha e Michel Temer romperam de vez com Dilma Rousseff. A prisão, a delação e, depois, a cassação do mandato de Amaral deixaram à mostra a fragilidade e a desorganização do governo.
Para completar, em 16 de março, duas semanas depois de partes do conteúdo da delação virem à tona, foi divulgado o teor de uma interceptação em que Dilma acertava com Lula o termo de posse dele na Casa Civil. Estaria ela tentando tirar o ex-presidente do alcance da Lava Jato de Curitiba? Se Lula tivesse status de ministro, as investigações sobre ele teriam que sair da 13
a
Vara, em Curitiba, e ser remetidas ao Supremo. Estaria a presidente tentando interferir na Lava Jato? A pergunta, mesmo sem uma resposta incontroversa, abriu uma avenida para os adversários do governo. Dali até o impedimento da presidente foi um piscar de olhos.
Delcídio do Amaral não foi a causa, mas um sintoma, de um governo fraturado. Numa análise em retrospectiva, minha conclusão é que a bomba e o rastilho da pólvora já estavam lá. Ao tramar a fuga de Cerveró e depois delatar colegas de partido, o senador mato-grossense-do-sul, de cabelos prateados e voz macia, foi a faísca que faria tudo explodir. E, veja bem, tudo que ele queria era salvar a própria pele.
Às vezes, mudanças históricas são só o somatório dos mais baixos instintos.