CAPÍTULO 16
Corrida de toros – um ministro ferido
O senador José Serra deixou o Ministério das Relações Exteriores do governo Michel Temer em fevereiro de 2017, menos de nove meses depois de assumir o cargo. A demissão de Serra surpreendeu o mundo político e empresarial. O peessedebista era um dos principais fiadores do governo Temer. Oficialmente, ele alegou problemas de saúde, como dores na coluna, que o impediriam de fazer as viagens internacionais exigidas pelo cargo de chanceler. Na época, a imprensa viu na saída de Serra do governo e na sua volta ao Senado uma tentativa de submergir e sair do foco depois que a Odebrecht concluíra o seu acordo de colaboração premiada com a Lava Jato. Pouco menos de um mês depois, o senador, de fato, seria um dos principais nomes investigados com base nas revelações dos executivos da empreiteira, compondo a chamada segunda “lista de Janot”. No caso de Serra, o ex-presidente da Odebrecht, Pedro Novis, disse em depoimento que a empreiteira, a pedido do senador, pagara R$ 52,4 milhões de forma ilícita para campanhas políticas dele entre 2002 e 2012.
Pouca gente sabia na ocasião, porém, que, antes da delação da Odebrecht, uma outra investigação de âmbito internacional, que nada tinha a ver com a Lava Jato, esbarrara em José Serra, quando ele ainda estava na posição de titular da pasta das Relações Exteriores. No final de 2016, eu recebera um pedido de cooperação da Espanha para encaminhar um questionário a um cidadão espanhol residente em São Paulo. O alvo do interrogatório era Gregório Marin Preciado, casado com uma prima de Serra. Preciado era investigado na Espanha pela suspeita de ter sido o intermediário do pagamento de cerca de € 10 milhões em subornos a políticos brasileiros na obtenção de um contrato no Brasil pela empresa espanhola Defex, uma sociedade mista de capitais controlada pelo Estado espanhol. A Defex se tornara centro de um escândalo na Espanha depois da descoberta do pagamento de milhões de euros em propinas em contratos de vendas de armas a países como Angola, Arábia Saudita e Camarões.
O contrato da Defex no Brasil não estava relacionado a armas, mas à venda de equipamentos de infraestrutura para o Porto Sudeste, em Itaguaí, no litoral do Rio de Janeiro, um empreendimento para exportação de minério de ferro criado pelo empresário Eike Batista em sociedade com a multinacional holandesa Trafigura e o fundo de investimento Mubadala, de Abu Dhabi, nos Emirados Árabes Unidos. Segundo as investigações espanholas, as propinas aos políticos brasileiros teriam sido pagas por meio de uma empresa offshore chamada Iderbras, que era administrada por Preciado e estava em nome de Vicencia Talan, a prima de Serra. A mesma Iderbras havia aparecido na delação do lobista Fernando Baiano como intermediária do pagamento de US$ 15 milhões em propinas a funcionários da Diretoria Internacional e de Abastecimento da Petrobras no negócio da venda da refinaria de Pasadena, nos Estados Unidos.
Logo depois, os espanhóis enviaram um pedido formal para a criação de uma equipe conjunta de investigação entre Espanha e Brasil para apurar as conexões do caso Defex. Nos documentos, constava um questionário com perguntas sobre Preciado, mas, pelo contexto e pelas referências em outros trechos do material, um dos possíveis alvos era Serra, ninguém menos que o ministro das Relações Exteriores do Brasil. Era uma situação mais do que complicada.
Como é que eu poderia propor uma equipe conjunta para investigar o chanceler? A criação dessa equipe dependeria da autoridade central, que é o Ministério da Justiça, e depois teria de passar pelos trâmites burocráticos do Ministério das Relações Exteriores, comandado pelo investigado. Ou seja, o investigado teria que chancelar a própria investigação. Como viabilizar isso? , eu me perguntei várias vezes.
Sem alternativa, tive que pedir uma audiência com o presidente Michel Temer para levar o assunto até o governo. Temer me recebeu no Palácio do Planalto, na companhia de Eliseu Padilha, ministro-chefe da Casa Civil, e de Gustavo Rocha, subchefe de Assuntos Jurídicos da pasta. Depois de uma conversa preliminar, genérica, sobre vários assuntos, o presidente pediu para que os dois saíssem da sala. A conversa era sobre um assunto da mais alta gravidade, que seria tratado apenas entre o presidente da República e o procurador-geral.
“Presidente, nós temos aqui uma situação inusitada. Chegou um pedido de formação de equipe conjunta formulado pela Espanha para investigar esses fatos e essa pessoa, mas, no fundo, isso aqui envolve o ministro José Serra. Como é que vamos dar curso a um pedido de formação de equipe conjunta de investigação que pode envolver o chanceler? Como faremos isso?”, perguntei.
Era uma questão de Estado e exigia uma resposta à altura. O Brasil não poderia se negar a cooperar com uma investigação internacional sobre corrupção num momento em que o país chamava atenção no exterior justamente por causa de uma grande operação de combate a desvios de dinheiro público. Temer era o chefe do ministro e, ao mesmo tempo, um devedor do apoio político dele. Mas, antes de tudo isso, era chefe de Estado, e assim deveria agir.
“Pode deixar que isso será deliberado. Eu vou chamar o Alexandre de Moraes (ministro do Supremo Tribunal Federal que, na ocasião, era o titular do Ministério da Justiça) e vamos resolver isso. Essa questão será tratada no âmbito do Palácio do Planalto com a Casa Civil e o Ministério da Justiça”, disse o presidente, num tom sempre formal.
Num gesto tranquilizador, afastou qualquer hipótese de o Itamaraty interferir na criação da equipe conjunta. Dias depois, Alexandre de Moraes me disse que fora chamado pelo presidente para discutir o assunto. Eu não sei como o fato foi encaminhado e nem como a questão repercutiu dentro do governo. O certo é que a equipe conjunta de investigação, pedida pela Espanha e prometida por Temer, nunca foi formada, mesmo depois da saída de Serra do Itamaraty. Não muito tempo depois da nossa conversa, Alexandre de Moraes foi substituído no Ministério da Justiça por Osmar Serraglio, que depois cedeu a vaga para Torquato Jardim. Mesmo com a troca de ministros, o pedido dos espanhóis não foi atendido.
Em junho de 2017, quando já estava preparando minha saída da Procuradoria-Geral da República, enviei a Torquato Jardim um ofício em que cobrava uma posição sobre o pedido de formação da equipe conjunta. Depois do meu ofício, o Ministério da Justiça consultou os espanhóis para saber se continuava a haver interesse na formação da equipe conjunta – e a resposta foi afirmativa. Questionado pela imprensa, o Ministério da Justiça passou a dizer que estava trabalhando numa minuta de proposta de equipe conjunta de investigação que “atendesse ao ordenamento jurídico dos dois países”.
Mais de um ano depois do meu ofício a Torquato, apesar de cobranças da Secretaria de Cooperação Jurídica Internacional da PGR, a proposta da equipe conjunta com a Espanha continuava parada no DRCI.
Da mesma forma, outras investigações poderiam ter sido tocadas em conjunto com Suíça, Argentina, Peru e Paraguai (estas em decorrência da Lava Jato) e não foram. A vantagem das equipes conjuntas é que elas dão muito mais velocidade à obtenção das provas nas investigações internacionais. Sem elas, os procuradores são limitados a investigações pontuais pelos canais burocráticos tradicionais – um processo mais lento e de resultados nem sempre satisfatórios.
Além das injunções políticas, as questões corporativas também têm representado uma barreira à formação das equipes conjuntas de investigação internacional. Com a equipe conjunta, os procuradores brasileiros poderiam investigar essas contas na Suíça em conjunto com o Ministério Público suíço.
Na ocasião da formulação do pedido, o chefe do DRCI era um delegado federal que criou todos os embaraços possíveis para a investigação. No fundo, ele queria que a equipe conjunta, da qual fariam parte os procuradores-gerais da Suíça e do Brasil, fosse chefiada por um delegado da Polícia Federal, o que era um absurdo, uma inversão de papéis. Na sucessão de exigências descabidas, o DRCI chegou a enviar um e-mail aos suíços em que demandava o envio dos nomes dos donos das contas para que a investigação fosse aberta. Os dirigentes do órgão argumentavam que alguns investigados poderiam ter prerrogativa de foro. Isso, segundo eles, exigiria uma decisão da autoridade judiciária competente no Brasil. Outro absurdo. Não precisamos de autorização judicial para a formação de uma equipe conjunta de investigação. Ao que tudo indica, o que queriam mesmo era conhecer os possíveis investigados.
Depois dessa nova aberração, fui pessoalmente encontrar o ministro Alexandre de Moraes, que ainda estava no Ministério da Justiça, para expor o caso e pedir providências. Ele concordou com as minhas queixas e, tempos depois, demitiu toda a equipe do DRCI. Mesmo assim, muito depois da minha saída da PGR, a equipe conjunta com a Suíça continuava apenas no papel, como as demais solicitadas por outros países – com o agravante de que o bloqueio das contas dos brasileiros pelo Ministério Público suíço tinha prazo para expirar.