CAPÍTULO 17
No coração das trevas (ou o dia em que a Lava Jato fisgou o presidente da República)
O discurso de combate à corrupção ganhou o coração das multidões. No início de 2017, o futebol já não era o ópio do povo, como costumavam dizer críticos na época da ditadura militar. Nos bares, era mais fácil ouvir comentários sobre uma nova etapa da Lava Jato do que sobre a safra de craques que Tite levaria para a Copa do Mundo da Rússia. Vestais da política e do empresariado estavam sendo investigadas, processadas, condenadas e presas. As delações da Odebrecht haviam sido uma hecatombe que atingira influentes líderes políticos, dos mais diferentes quadrantes ideológicos. Ninguém poderia dizer que, em Brasília, a moral da Lava Jato era seletiva. Com três anos e meio no cargo de procurador-geral da República, eu já me preparava para o fim do meu mandato, em 17 de setembro de 2017. Um jornalista chegou a me dizer que eu poderia pendurar as chuteiras. Nenhum outro procurador-geral fora tão longe em investigações criminais contra políticos. Nenhum outro, no futuro, teria margem de manobra para repetir uma obra de tamanha envergadura. Mesmo porque, com tanta gente poderosa machucada, quem ousaria novamente cruzar a linha entre o público e o privado? Quem, nas altas esferas do poder, se atreveria a botar a mão na cumbuca pública, num momento em que a caça a corruptos federais tinha se transformado no esporte nacional?
De fato, eu acreditei que tínhamos virado uma triste página da nossa história. Até o dia em que Pelella e Sérgio Bruno entraram na minha sala com os olhos arregalados.
“O que houve?”, perguntei.
Problemas na sala Teori Zavascki não faltavam, mas os meus colegas pareciam alarmados além do normal.
“Ouça isso aqui. Batemos no teto, batemos no teto! Você nem faz ideia do que tem aqui!”, disse Pelella.
Dessa vez, nem fui para casa, como fazia antes, quando precisava analisar casos mais sensíveis. Wilton Queiroz, um dos promotores do grupo, apareceu com um laptop, um pen drive e um fone de ouvido. O nome de Queiroz não aparece nos cabeçalhos dos interrogatórios, tampouco nos jornais. Ele era nosso “chefe de inteligência”, o responsável por coletar, qualificar e armazenar dados que, mais tarde, dariam substância às linhas de investigação. Com longa experiência no Ministério Público de Brasília e na própria Procuradoria-Geral, ele sabia o que estava dizendo.
“Você vai ter que ouvir esse ‘trem’ já!”, ele disse.
Fui para uma pequena sala do meu gabinete, batizada de “farmacinha” (mais adiante explico por quê), fechei a porta e ouvi as primeiras frases registradas no áudio.
“Não pode ser! É o presidente da República!”, exclamei.
Interrompi a sessão e chamei os três à salinha.
“Esta pessoa que está falando aqui é a pessoa que eu estou pensando que é?”, perguntei.
Era óbvio o nome do personagem, mas eu tinha que perguntar. Sim, era o presidente da República. Ele havia sido gravado numa conversa com o empresário Joesley Batista, um dos donos da
holding
J&F, controladora da JBS. O diálogo fora gravado pelo próprio Batista, um bilionário de fala caipira, num encontro furtivo no subsolo do Palácio do Jaburu, residência oficial do vice-presidente da República. O encontro se dera tarde da noite, algo entre 22 e 23 horas, em 7 de março, menos de dois meses depois da homologação da delação da Odebrecht.
Na conversa, Batista narra as façanhas que vinha realizando, em meio ao turbilhão da Lava Jato, para escapar das investigações da Operação Greenfield, conduzida pelo procurador Anselmo Henrique Cordeiro, da Procuradoria da República do Distrito Federal. O empresário insinua a manipulação de um juiz federal e o suborno de R$ 50 mil mensais a um procurador da República. Tudo isso diante de comentários lacônicos, mas aprovadores, do interlocutor. Num outro trecho, ele fala sobre Eduardo Cunha, um dos principais aliados do presidente, que estava preso em Curitiba e, de vez em quando, ameaçava fazer delação. A conversa sugeria que o empresário estaria repassando dinheiro a Cunha e a outro preso, Lúcio Bolonha Funaro, para que os dois não fizessem acordo de colaboração.
“Eu estou de bem com o Eduardo”, confidencia Batista.
“Tem que manter isso, viu?”, responde o presidente.
“Todo mês”, acrescenta o empresário.
E a conversa segue num zigue-zague medonho. Não por causa do sotaque carregado do ricaço da J&F, que fala como se estivesse lendo Guimarães Rosa de trás para a frente, mas pelo conteúdo do diálogo. Batista reclama que, com o aperto das investigações sobre o ex-ministro Geddel Vieira Lima e com as dificuldades para falar com o ministro da Casa Civil, Eliseu Padilha, estava sem interlocutor no governo. Temer indica, então, o deputado Rodrigo Rocha Loures (PMDB-PR). Loures tinha acabado de deixar a assessoria especial da presidência e, a pedido de Temer, assumido o mandato na Câmara, na vaga deixada pelo ministro da Justiça, Osmar Serraglio. Loures seria um homem de inteira confiança do presidente, uma pessoa com quem o empresário poderia tratar de qualquer assunto.
Bateu no teto, não! Furou o teto!
, pensei.
Ali estava o presidente da República em ação. Com quase 80 anos, Temer era um político experiente. Na longa trajetória até chegar ao Palácio do Planalto, ele fora secretário de Segurança em São Paulo, três vezes presidente da Câmara e duas vezes vice-presidente da República. Tinha sobrevivido a algumas investigações e até a uma troca de insultos em que o já falecido ex-senador Antônio Carlos Magalhães (DEM-BA) o chamara de “mordomo de filme de terror”. O apelido era só um selo publicitário usado pelo ex-senador para carimbar o suposto envolvimento do então presidente da Câmara com falcatruas no Porto de Santos. Ora, depois de tantas escapadas, acho que o presidente tinha se deixado apanhar. E numa situação bem pior que a do correligionário José Sarney.
O que fazer? Joesley Batista, o irmão Wesley, o advogado Francisco de Assis e Ricardo Saud, diretor de Assuntos Institucionais da JBS, queriam um acordo de delação. A gravação era parte de um conjunto de provas que entraria na negociação.
“Isso aqui é crime em curso!”, eu disse.
“Sim, crime em curso. É a primeira vez que pegamos uma proposta de colaboração com um crime em andamento. Só tem um problema: pra sentar à mesa tem que ter imunidade penal. É isso o que eles querem”, disse Pelella, ou talvez tenha sido Sérgio Bruno; não me lembro bem qual dos dois falava mais naquele momento de forte tensão.
“Então traga todo o material. Quero ouvir tudo”, eu disse.
Eu tinha ouvido apenas um trecho dos diálogos, uma “provinha” do que os irmãos Joesley e Wesley Batista tinham em mãos, conforme dissera um dos advogados na conversa que antecedera a entrega das gravações. A dupla tinha outra bomba para disparar. Numa conversa gravada em 24 de março, num luxuoso hotel de São Paulo, o presidente nacional do PSDB, o senador Aécio Neves, pedia R$ 2 milhões a Joesley. Era como se um estudante pedisse ao pai um dinheiro extra para levar a namorada ao cinema no fim de semana. No diálogo, o empresário tenta, então, acertar uma forma de repassar o dinheiro ao senador de forma clandestina.
“Se for você a pegar em mãos, vou eu mesmo entregar. Mas, se você mandar alguém de sua confiança, mando alguém da minha confiança”, sugere Joesley Batista, com o gravador ligado no bolso.
“Tem que ser um que a gente mata ele antes de fazer delação. Vai ser o Fred com um cara seu. Vamos combinar o Fred com um cara seu, porque ele sai de lá e vai no cara. E você vai me dar uma ajuda do caralho”, responde o senador.
“Tem que ser um carregador de dinheiro que a gente mata antes de fazer delação?” Sim, era isso mesmo que estava ali na voz do senador. Com mais de 50 milhões de votos nas eleições presidenciais de 2014, Aécio Neves seria o candidato natural do PSDB à Presidência da República em 2018 e, segundo os analistas políticos, o provável presidente do país a partir de janeiro de 2019. Sim, dezessete dias depois de fisgar o presidente da República, o bilionário agarrou mais um figurão, dessa vez o ex-governador de Minas, que, àquela altura, parecia estar com a faixa de presidente na mão.
Depois de ouvir todo o material, ficamos discutindo o que fazer: damos ou não damos a imunidade pedida pelos delatores?
“Moçada, não temos que pensar muito. Isso aqui é crime em curso. Temos que interromper esses crimes agora. Se não interrompermos, se não fizermos acordo, esse material é inservível, não posso usar. Como é que eu vou interromper essa merda sem acordo? Eu vou ter que fazer acordo, sim. E vamos dar imunidade”, foi o que eu disse.
A imunidade penal não era uma novidade nos acordos de delação. Alguns não se lembram, mas Paulo Roberto Costa, o primeiro delator, só decidiu abrir a boca ao receber a promessa de imunidade para as filhas, envolvidas em parte da movimentação da propina dele. Lúcio Bolonha Funaro também só aceitou acordo de delação depois que sua irmã, Roberta Funaro, foi excluída de uma provável ação penal contra ela. Outro detalhe importante é que os candidatos a delação estavam dispostos a participar de ações controladas. Seria a primeira vez que isso aconteceria na Lava Jato. Os empresários e seus operadores seguiriam na prática do suborno e a Polícia Federal filmaria tudo. Um filme de corrupção explícita, ao vivo e em cores. O show de horrores continuava em cartaz. Enfim, era mais que acertada a decisão de conceder imunidade aos novos delatores.
Da mesma forma, eram obrigatórias as ações controladas. Os áudios gravados por Batista serviriam como prova, sem problema algum. Mas era importante, num caso grande, buscar elementos adicionais. Definida a linha de ação, fui falar com o ministro Edson Fachin. Era uma prova de fogo para ele, que tinha acabado de chegar à relatoria da Lava Jato. Tínhamos uma relação formal, um pouco distante. Fachin era, acho que por temperamento, mais contido que Zavascki. Mas bem antes de tudo isso tínhamos tido uma boa conversa, parecida com a que tive com o antigo relator no começo da operação. Nosso acerto era que assuntos menores, da rotina do nosso trabalho, seriam tratados por nossas equipes. Casos mais relevantes seriam discutidos diretamente entre nós dois. Bom, o caso era mais que relevante, e eu estava lá para manter o ministro a par das novidades.
Fiz um curto relato do que tínhamos em mãos: as falas do presidente, do senador e parte da narrativa deles sobre pagamentos de propina em escala industrial.
“É inacreditável! Com essa confusão toda que está acontecendo, esse povo não para. É muita ousadia”, disse Fachin, sem mudar o tom de voz, mas aparentemente estarrecido.
Deixei os áudios com ele e fui embora. Um ou dois dias depois, retornei ao seu gabinete. Expliquei, então, que estávamos negociando um acordo de delação premiada. Não tinha nada fechado ainda, mas, se tudo desse certo, teríamos que partir para a ação controlada. Repeti que o caso era grande demais e que os crimes teriam que ser brecados com uma ação policial incisiva.
“A ação controlada é um instrumento novo, que nunca pensamos em usar. O Supremo nunca autorizou. Mas agora teremos que partir para esse novo caminho. Não tem outro jeito”, eu disse.
“Eles estão dispostos a participar de uma ação controlada?”, ele perguntou.
“Sim. Estão, inclusive, dispostos a colocar dinheiro do próprio bolso nestas ações”, respondi.
“Então faça lá os seus pedidos”, disse o ministro, no fim da conversa.
Ele não me disse se iria autorizar as ações controladas. Mas eu entendi que, dali em diante, daríamos um passo gigantesco dentro da já superlativa Lava Jato.
Voltei para a Procuradoria-Geral, reuni minha equipe, e começamos a trabalhar nos pedidos. Era uma operação de alto risco, sobretudo para os executivos. As ações controladas estariam em nome de potenciais colaboradores, não de colaboradores formalmente protegidos pela lei. Felizmente tudo correu dentro do esperado. Fachin autorizou as ações, e a Polícia Federal fez um bom trabalho. Num curtíssimo prazo, tínhamos mais duas bombas. Na primeira delas, uma equipe do delegado Thiago Delabary filmara Rocha Loures, o homem da mais estrita confiança de Temer, correndo pelas ruas de São Paulo com uma mala com R$ 500 mil, que recebera de Ricardo Saud.
O dinheiro seria a primeira parcela de uma propina que, conforme o acerto prévio entre Saud e Loures, poderia chegar a R$ 38 milhões. Pelo acordo criminoso, Loures, atuando como representante do presidente, melhoraria as condições de compra de gás da Empresa Produtora de Energia (EPE) junto à Petrobras e, em troca, receberia 5% dos lucros adicionais obtidos pela empresa. A EPE era uma das empresas do grupo J&F. Antes do pagamento da propina, Loures fora gravado negociando uma ajuda extra do CADE em favor da EPE e contra os interesses da Petrobras. Saud atuara como o antigo operador de Joesley Batista. Era um caso com ciclo completo. Tínhamos a conversa nada republicana entre o empresário e o presidente. Em seguida, tínhamos o assessor faz-tudo vendendo influência e recebendo uma mala de dinheiro.
A outra frente da investigação também estava completa. A Polícia Federal gravara Frederico Pacheco, primo e emissário de Aécio Neves, recebendo R$ 2 milhões das mãos de Saud. O dinheiro fora repassado em quatro parcelas, tudo conforme o acertado dias antes entre Batista e o senador num hotel de São Paulo. Numa outra ponta, a polícia filmara Saud entregando R$ 500 mil a Roberta Funaro, irmã de Lúcio Funaro. Era um indicativo material de que, de fato, Batista estava comprando o silêncio do ex-doleiro. Ex-cúmplice de Eduardo Cunha, Funaro poderia comprometer em uma eventual delação não só o ex-deputado, que já estava preso, mas também o presidente da República. O que, de fato, acabou acontecendo. Depois da prisão da irmã, Funaro fez a delação e ajudou a robustecer a primeira denúncia que fizemos contra o presidente.
De posse dessa farta quantidade de provas, partiríamos para a homologação do acordo de delação dos executivos da J&F, para os pedidos de prisão de Neves e Rocha Loures e, claro, para a abertura de um inquérito formal contra o presidente da República. Seria um desfecho seguro e rápido para a mais fulminante das investigações da Lava Jato.
Eu digo “seria” porque não foi isso o que aconteceu. A conjunção dos astros que vinha conspirando a nosso favor de repente se desfez. Em vez de saborear um manjar, tivemos que comer o pão que o diabo amassou para concluir a investigação que, dois anos depois, levaria o presidente à prisão.
O primeiro contratempo surgiu quando a advogada Fernanda Tórtima me pediu para receber os irmãos Batista no meu gabinete. Eles estavam satisfeitos com os desdobramentos das investigações; tinham, segundo ela, admiração pelo meu trabalho, e até gostariam de posar para fotos ao meu lado. Ela não disse, mas eu entendi, que eles estavam apreensivos quanto ao desfecho do acordo. Queriam saber se Fachin iria homologar ou se já tinha homologado as colaborações. Sinceramente, aquela pressão, ainda que indireta, me irritou. Eu disse à advogada que não receberia os irmãos Batista.
“Fernanda, isso aqui não é namoro. É um acordo penal. Eu sou o procurador-geral e não me reúno com investigados”, eu disse, de forma polida, mas taxativa.
Desde o início eu tinha decidido com meus auxiliares que eles fariam a negociação direta com os colaboradores. Eu entraria na parte final, para decidir se os acordos valeriam ou não a pena. Era uma forma de proteger as investigações de eventuais improvisos. Tórtima entendeu meu ponto de vista e não tocou mais no assunto. Hoje, depois de tudo o que aconteceu, me dá calafrios pensar que, se eu tivesse acolhido aquele pedido, eles poderiam ter me gravado para, num outro momento, ostentar uma intimidade comigo que não tinham. As fotos não deixariam dúvidas sobre a suposta amizade. Até explicar que focinho de porco não é tomada, eu já teria sido trucidado pela matilha que queria arrancar minha pele por causa dessa investigação.
Outro fator de estresse surgiu depois. Poucos dias antes da decisão do ministro Edson Fachin de homologar a delação dos executivos da JBS, fomos informados de que o colunista Lauro Jardim, do jornal
O Globo
, tivera acesso aos áudios das conversas de Joesley Batista com Michel Temer e Aécio Neves, sabia dos acordos de colaboração e iria publicar as informações. Guilherme Amado, repórter que trabalhava na coluna com Jardim, queria “apenas” saber se o acordo já tinha sido homologado. Quando eu soube disso, tive que me controlar para não explodir de raiva. A publicação de qualquer informação sobre o caso poderia colocar a perder boa parte do nosso trabalho. Tínhamos um caso maior que o da Odebrecht na mão, e tudo poderia ser jogado no lixo por causa de um estúpido vazamento. Não, aquilo não poderia acontecer. Teríamos que convencer o jornal a não publicar nada. Então fiz a clássica proposta que procuradores e delegados costumam fazer em situações assim. No dia das buscas, eles seriam informados previamente, talvez às 5h30, ou seja, meia hora antes do início dos trabalhos. Assim, dariam a informação em primeira mão e não comprometeriam a apreensão de documentos e eventuais prisões. Ora, era uma oferta justa, boa para as duas partes. Fiz questão de conversar sobre o assunto com Lauro Jardim. Nas primeiras conversas, ele concordou. Depois, não sei precisar em que momento, passou a dizer que estava difícil segurar a matéria. “O Ascânio está pressionando para a gente publicar logo”, ele disse. “Quem é o Ascânio?”, eu perguntei. Ora, era o diretor do jornal, Ascânio Seleme. Sozinho, Jardim não teria como resistir à cobrança e publicaria tudo o que tinha. “E quem manda no Ascânio?”, perguntei.
Foi aí que passei a falar diretamente com João Roberto Marinho, um dos donos do jornal. O caso envolvia o presidente da República e precisava ser tratado em alto nível. A primeira conversa foi bem cordial. Ele me pareceu empolgado com a história, e queria publicar o mais cedo possível todas as informações. Eu repeti a argumentação que fizera ao colunista. Nada daquilo poderia ser publicado naquele momento. A divulgação de qualquer informação poderia comprometer buscas e prisões. O segredo seria a chave do sucesso da operação, que poderia definir, como de fato acho que definiu, o destino do país. Era uma coisa elementar.
“O Lauro me disse que só vocês têm acesso a esse material. Vocês não vão tomar furo. Então eu sugiro que vocês aguardem um pouco. Eu me comprometo a informar o dia em que essas diligências serão cumpridas. Nesse dia, a partir das 5h30, vocês vão botando as notícias. Nesse horário a divulgação não vai prejudicar as buscas, que vão acontecer a partir das 6h”, eu disse, logo que abrimos as tratativas.
“Então tá bom. Pode ser. Eu tenho certeza de que ninguém tem esse material. Só nós temos”, ele disse, orgulhoso, desde já, da exclusividade da informação.
Aliás, esse “só nós temos”, ele repetiu várias vezes. Parecia que ele entendera meu ponto de vista. Trocamos telefones e, a partir dali, tivemos outras conversas. Não me lembro quantas. Às vezes, ele me ligava; às vezes, eu ligava para ele. Ao final de cada diálogo, ele sempre vinha com a mesma pergunta: “O acordo já foi homologado? Quando o acordo vai ser homologado?”. A insistência nas mesmas perguntas e os comentários sobre “o furo de reportagem” que estava a caminho me deixavam em dúvida sobre estar falando com o empresário ou um repórter. De qualquer forma, a contenção de danos estava dando certo. Nada havia sido publicado, e seguíamos, secretamente, nos preparativos da operação. Claro, num nível de tensão muito mais elevado. Além dos cuidados naturais com as ações controladas, já em andamento, com a movimentação dos delatores e com a acolhida que o caso teria no STF, tivemos que gastar muita energia para segurar uma bomba que já estava com o estopim aceso.
Quem passou a informação sobre o acordo de delação dos irmãos Batista para o
Globo
? Eu me fiz essa pergunta algumas vezes. E a resposta plausível era uma só. O vazamento só podia ter sido coisa de gente ligada aos delatores, uma tática comum de muitos deles para incluir o tema na agenda política e, com isso, pressionar pela homologação. Todo acordo tem cláusula de confidencialidade, mas, pelas contas deles, não adianta manter uma colaboração em segredo se ela não for homologada. De qualquer forma, o leite estava derramado e não teria como voltar para a garrafa. Outro detalhe me intrigava. O pessoal do
Globo
não demonstrava muito interesse nas buscas. Era como se só a homologação fosse importante. Mais tarde eu entendi por que os jornalistas e o patrão tanto queriam a informação. Se o acordo não fosse homologado, a matéria deles não teria relevância.
Na tarde de 17 de maio, recebi uma mensagem de Marinho. Ele queria falar comigo. “Tem notícias?”, perguntou. No dia anterior ele tinha me dito que o acordo seria homologado em 24 horas. Eu estava em sessão no Supremo e mandei uma mensagem dizendo que falaria com ele mais tarde. O acordo estava homologado, mas essa era uma informação sigilosa, que eu não poderia contar para ninguém, e só contaria para ele meia hora antes do início das buscas, que era o prometido.
No início da noite, quando retornei à Procuradoria-Geral, recebi o recado de que ele tinha ligado para o meu gabinete. Tentei falar com Marinho, sem sucesso. Ele é quem estava em reunião. Achei que era um encontro de diretoria, mas me disseram que era reunião de pauta.
O.k., mais tarde ele me liga
, pensei. Mal eu me viro na cadeira para retomar outros despachos, a equipe da Lava Jato abre a porta e entra no meu gabinete.
“Puta merda, chefe! Puta merda!”, diz um deles.
“O que foi desta vez?”, pergunto, diante daquele pânico coletivo.
“
O Globo
on-line está publicando tudo!”, acrescenta outro.
Eu abri meu tablet e rolei as páginas. Estava tudo lá. Detalhes e mais detalhes do acordo, das gravações das conversas e de tudo mais. Estavam até trechos da conversa de Joesley Batista com Temer. Em meio à perplexidade geral, Marinho me ligou.
“Oi, procurador, fizemos uma reunião aqui e chegamos à conclusão de que a gente tinha que soltar alguma coisinha”, ele disse.
“Coisinha?! Coisinha?!”
“E quanto às diligências?”, ele ainda insistiu.
“Puta que pariu, fodeu tudo!”
Tive que desligar o telefone para não cruzar o marco civilizatório que deve presidir qualquer conversa entre dois adultos, mesmo que um deles, no caso eu, esteja espumando de raiva. Não eram “coisinhas”. O jornal tinha disparado um canhão contra o Palácio do Planalto, mas os primeiros atingidos éramos nós. Eu e minha equipe teríamos, a partir dali, que correr atrás do prejuízo que tanto temêramos. “O que vamos encontrar nas buscas se os investigados já sabem que estamos de olho neles?”, era o que todos perguntávamos. “Como a polícia vai executar as prisões?” Uma nuvem cinza pairava sobre nossas cabeças. Eu cheguei a escrever um e-mail despejando toda a minha fúria nos responsáveis pela publicação das matérias, mas um assessor com a cabeça fria me pediu para não enviar a mensagem. Palavras azedas não trariam de volta o sigilo quebrado. Acho que o quadro só não se complicou demais porque, embora quase ninguém soubesse, as buscas e prisões já haviam sido deferidas anteriormente e seriam realizadas no dia seguinte, independentemente de qualquer outro fator.
Alguns amigos me acham sanguíneo, mercurial. Não é bem assim. Eu não gosto de esconder emoções. Abomino hipocrisia. Não suporto a teatralidade que alguns homens públicos impõem a si mesmos com receio de desagradar a uma determinada plateia. Isso para mim é demagogia barata. Prefiro dizer o que penso, mesmo que isso implique choque de opinião, a agradar a quem quer que seja com uma falsa ideia a meu respeito. De qualquer forma, ninguém pode pedir a um homem que mantenha a pose de estadista enquanto a casa dele arde em chamas. Nossa casa estava em chamas naquele momento. Ou pelo menos eu achava que estava. O andamento de nossa última e derradeira investigação estava em perigo.
Felizmente, o estrago foi menor do que esperávamos. Na manhã seguinte, pouco mais de dez horas depois da publicação das matérias, policiais federais, acompanhados de procuradores, cumpriram mandados de buscas e prisões com bons resultados. Na principal missão do dia, a Polícia Federal apreendeu a mala de dinheiro de Rocha Loures na casa de seus pais. Na mala foram encontrados R$ 465 mil. Mais tarde, numa confirmação do suborno, Loures entregou à Justiça R$ 35 mil. Era o que faltava para completar os R$ 500 mil recebidos de Ricardo Saud em troca das facilidades oferecidas a empresas da J&F. O dinheiro que, conforme indicavam as provas, tinha como destinatário o interlocutor original de Joesley Batista, o presidente da República.
No mesmo dia, com um pouco de sorte, a polícia recuperou R$ 480 mil, que estavam em poder de Mendherson Souza Lima, assessor do senador Zezé Perrela (PMDB-MG). O dinheiro era parte dos R$ 2 milhões que Ricardo Saud passara para Frederico Pacheco, um dos coordenadores da campanha presidencial de Aécio Neves em 2014. Com a busca, a polícia fechou o ciclo da investigação sobre a propina de R$ 2 milhões que Joesley Batista se comprometera a pagar para Aécio Neves num quarto de hotel em São Paulo. Saud repassara o dinheiro em quatro parcelas de R$ 500 mil para Frederico Pacheco e parte desses recursos fora transferida para o assessor de Perrela. Quando saí do comando da Procuradoria-Geral, essa teia de relações ainda não estava devidamente esclarecida. Mas a prova do pagamento estava lá e não poderia ser negada por nenhuma das partes.
Eu disse que a polícia teve sorte porque Lima, não se sabe o porquê, decidiu entregar o dinheiro espontaneamente. Quando soube, na noite anterior, das investigações sobre Temer, Neves e Batista, o assessor escondeu R$ 480 mil na casa da sogra. Na hora da prisão, decidiu colaborar e, devidamente escoltado, retornou à casa da mulher, pegou duas mochilas onde estavam os pacotes de dinheiro e entregou aos policiais. Era o desfecho das duas primeiras ações controladas da Lava Jato, as quais, apesar de alguns contratempos, foram bem-sucedidas.
No mesmo dia, Fachin rejeitou a prisão, mas acolheu nosso pedido de suspensão do mandato de Aécio Neves. As outras frentes da operação seguiram dentro do roteiro traçado, inclusive a prisão de Andrea Neves, irmã de Aécio Neves, a primeira a abrir negociações em busca do dinheiro de Joesley Batista. Também foi presa Roberta Funaro, irmã de Lúcio Bolonha Funaro, a qual, numa ação controlada, fora filmada recebendo uma mala de dinheiro entregue por Saud a pedido de Batista. Foram feitas também buscas em endereços de João Batista Lima, coronel aposentado da Polícia Militar de São Paulo, e numa de suas empresas, a Argeplan. Estes dois últimos casos passaram quase despercebidos pelo noticiário, concentrado na conversa nada republicana de Temer com Joesley Batista, no afastamento de Aécio Neves e na prisão de Andrea Neves.
Mas a prisão de Roberta Funaro e a visita da polícia ao coronel João Batista Lima se revelaram, mais tarde, de importância capital. A prisão de Roberta foi o empurrão que faltava para Lúcio Funaro fazer um acordo de delação e entregar detalhes sobre um caso de corrupção na Caixa Econômica Federal envolvendo o ex-ministro Geddel Vieira Lima, Eduardo Cunha e o ex-ministro Henrique Eduardo Alves, entre outros. Mais tarde, documentos e investigações comprovaram que João Batista Lima era um operador do presidente Michel Temer. Não por acaso, os dois, Temer e Lima, acabaram presos em março de 2019, menos de três meses depois de o ex-presidente ter deixado o Palácio do Planalto.
Todas as operações com buscas e prisões são muito tensas. Quando a polícia sai às ruas em busca de provas e investigados, a ordem natural das coisas é quebrada, e o resultado é sempre imprevisível. Naquele caso, acho que todos estávamos mais preocupados que o normal. Primeiro, por causa do vazamento do dia anterior. Depois, porque seria a partir daquelas ações que desencadearíamos um processo contra o presidente da República, um fato inédito na história do país, e contra o presidente nacional do PSDB, que, desde as eleições de 2014, tinha se tornado o principal líder da oposição. Com tantos ingredientes explosivos, acho que ninguém do nosso grupo dormiu naquela noite. Às 2h, estávamos todos reunidos na Procuradoria-Geral. Dali partiriam as equipes de procuradores para acompanhar as diligências executadas pela Polícia Federal. Outra parte da equipe ficou comigo para coordenar a movimentação.
Como era o costume nessas ocasiões, botamos uma mesa com lanches e nos instalamos na frente de um monitor de TV, dividido em três telas: uma com nossas conversas num grupo criado no Telegram (para nós, à época, mais seguro que o WhatsApp); outra com o mapa do Brasil, com a indicação de cada local de busca; e a terceira com o desfile do noticiário. O curioso era que, com a movimentação dos carros da polícia em determinados endereços, logo começavam a chegar os repórteres. Então, podíamos acompanhar as ações com as conversas no Telegram e, ao mesmo tempo, com as notícias produzidas pelos repórteres destacados para a cobertura do caso. Claro, estávamos atentos também à repercussão política, afinal, os personagens centrais eram políticos. Durante o dia, circulou a informação de que o presidente da República iria renunciar. O conteúdo da conversa dele com o dono da JBS era contundente demais. Num discurso ao longo da tarde, Temer disse que não deixaria o cargo por vontade própria. Confesso que nem sequer tinha pensado naquela hipótese. Nossa meta eram as provas e o processo penal, que poderia levar ao afastamento do presidente, mas dependia de um pedido ao Supremo Tribunal Federal e da aprovação da Câmara.
Ao fim daquele longo 18 de maio de 2017, estávamos exaustos, mas aliviados. Voltei para casa com a boa sensação do dever cumprido. Tínhamos vencido a etapa mais difícil. Agora era só colher mais alguns depoimentos, analisar documentos apreendidos e redigir a denúncia contra o presidente da República. Sentei-me no sofá da sala com um copo de uísque numa mesinha do lado; precisava baixar a adrenalina. Mas tamanha era a minha exaustão que adormeci ali mesmo, antes do primeiro gole. No meio da madrugada, acordei meio zonzo, apaguei as luzes, desliguei a TV e me arrastei até à cama. Naquela noite eu dormi o sono dos justos. Não tinha a menor ideia das pedras que colocariam em nosso caminho. A jornada final do meu segundo e último mandato, que coincidiu com o caso JBS-Temer, foi a mais longa e tumultuada de toda a minha vida.