CAPÍTULO 18
Uma tempestade quase perfeita – enquanto houver bambu, lá vai flecha
“Diante do silêncio do mandatário maior da Nação (Michel Temer) e de seu ex-assessor especial (Rocha Loures), resultam incólumes as evidências que emanam do conjunto informativo formado nestes autos a indicar, com vigor, a prática de corrupção passiva”, relatório da Polícia Federal, junho de 2017.
No presidencialismo brasileiro, o presidente da República se vê obrigado a dividir parte de suas responsabilidades administrativas com o Congresso, mas ainda assim mantém poderes quase imperiais sobre vastos domínios. Tive uma amarga aula prática sobre a extensão do poder de um presidente quando, na esteira da delação dos executivos da J&F, decidi apresentar duas denúncias criminais contra o presidente Michel Temer, alguns ministros e outros auxiliares diretos dele. Temer chegou ao cargo número um do país sem receber um único voto. Não era um líder popular, nem um formador de opinião. Mesmo assim, uma tempestade de críticas desabou sobre mim e minha equipe. Da noite para o dia, as festejadas investigações sobre corrupção passaram a ser classificadas como irresponsabilidade. A CPI da JBS foi criada apenas para torpedear o Ministério Público, especialmente os procuradores responsáveis pelas investigações contra o presidente. Um deputado dessa comissão, Carlos Marun (PMDB-MS), mais tarde premiado com um cargo de ministro palaciano, chegou a falar publicamente num pedido de prisão do procurador-geral da República, pelo simples fato de ter investigado e denunciado por corrupção um punhado de políticos mal-ajambrados, inclusive o chefe dele, o presidente. Óbvio que a bravata não tinha o menor fundamento. Serviu apenas para alimentar por algumas horas o noticiário na internet e instigar meus adversários. Mas ilustra bem a capacidade de reação de um presidente que, numa luta titânica contra todas as evidências, tentou inverter os papéis para colocar o Ministério Público Federal no banco dos réus, posar de vítima de um complô inexistente, salvar o mandato e, claro, a própria pele.
Nossas agruras começaram dois dias depois do início da fase ostensiva da chamada Operação Patmos, baseada nas delações dos irmãos Batista e de outros. As prisões e buscas foram realizadas na quinta-feira, 18 de maio de 2017. Apesar do vazamento de parte da ação, os resultados, como eu já disse, foram bons. De certa forma, estávamos celebrando, se não o sucesso, pelo menos o não fracasso da operação, quando, no sábado seguinte, a
Folha de S.Paulo
estampou um alto de página com o título “Áudio divulgado tem cortes, afirma perícia”. Uma segunda matéria, na mesma página, dizia: “Especialistas debatem legalidade no uso de gravações – Segundo advogado, gravação de Michel Temer feita por empresário foi ‘um flagrante provocado, um ato ilegal’”. Era o início de uma tentativa de desconstrução das nossas investigações que, mais tarde, desembocaria numa campanha para desconstrução da figura do procurador-geral. A primeira matéria foi um ataque frontal à gravação da conversa entre Temer e Batista, a pedra fundamental da investigação contra o presidente da República. “Uma perícia contratada pela
Folha
concluiu que a gravação da conversa entre o empresário Joesley Batista e o presidente Michel Temer sofreu mais de 50 edições”, dizia o texto.
O autor da acusação (aquilo não poderia ser chamado de perícia) era um cidadão chamado Ricardo Caires dos Santos, que se apresentara como perito. Eu me pergunto: perito em quê? O sujeito fez uma “perícia interpretativa” sem conhecer o objeto periciado e acusou o Ministério Público Federal de lastrear uma investigação contra o presidente da República em 50 fraudes. A segunda matéria ajudava o leitor a comprar a versão da anterior. Joesley Batista não poderia ter gravado a conversa que teve com Temer, e, portanto, a prova seria imprestável. Eu não sei por que a
Folha
, um jornal sempre muito crítico do poder, enveredou por aquele caminho. Não era apenas o erro de um repórter numa cobertura tensa. Entendi que havia ali uma decisão editorial de desmontar o começo da nossa investigação, algo que não combinava com a histórica postura do jornal. Alguns diziam que os editores paulistas não tinham assimilado bem o furo do concorrente carioca,
O Globo
, e, por isso, os dois jornais estariam trabalhando com vetores trocados. Se eu fosse um sociólogo alemão, nesse momento diria que muitas vezes o ressentimento, e não apenas a economia, é o motor ou a trava da história. Sim, além de enfrentar o exército do presidente, tivemos que lidar com ataques injustos de setores da imprensa. Aliás, esperei longamente uma revisão do caso pela
Folha
, o que não aconteceu até minha aposentadoria. Não me oponho a críticas. Elas são naturais e até saudáveis. Para não ser demagogo, eu diria que são inevitáveis. Mas o crédito dado à perícia interpretativa foi um erro, não uma crítica.
A partir do momento em que a tese da suposta edição do diálogo entrou em circulação, houve uma mudança no eixo do debate público. Em vez de se discutir se o presidente tinha ou não cometido crime em pleno exercício do cargo, as pessoas queriam saber se a gravação fora mesmo alterada, se a prova poderia ou não ser usada num processo criminal e se o procurador-geral estava fazendo tudo aquilo para derrubar o presidente da República porque queria o cargo dele para si. Alguns críticos até perguntavam, com sincera indignação, por que o procurador-geral não mandara fazer uma perícia antes de pedir inquérito. Não adiantava dizer que a área técnica do Ministério Público fizera uma análise preliminar e não detectara nenhuma irregularidade. Também não nos ouviam quando dizíamos que para fazer a perícia era preciso um inquérito. Os neocríticos queriam que fizéssemos a perícia no vazio para, só depois, partir para a investigação. Ora, a perícia é parte da investigação, daí a necessidade do inquérito.
A tese da adulteração do diálogo e da prova imprestável foi abraçada prontamente pela defesa de Temer. Os advogados do presidente até contrataram outro “especialista”, Ricardo Molina, para turvar ainda mais o ambiente. Numa estrepitosa entrevista coletiva em Brasília, ele apontou “mascaramentos” na gravação. Pelo tom dramático das declarações empoladas, parecia uma vestal da República apontando o dedo para um covil de conspiradores. Toda aquela encenação nos colocava na constrangedora situação de explicar o óbvio diante de olhares desconfiados de jornalistas e analistas políticos. Passado algum tempo do episódio, essas especulações parecem absurdas, mas, naquele período, nos consumiram muita energia e, de certa forma, embaraçaram um trabalho sério que fazíamos contra um dos mais antigos grupos encastelados no coração da administração pública do país. As desconfianças em relação à gravação só cessaram quando uma perícia do Instituto Nacional de Criminalística, da Polícia Federal, informou que não houvera cortes no diálogo entre Temer e Batista. As supostas “edições” eram, na verdade, breves interrupções, um mecanismo do próprio gravador. O aparelho, barato, mas tecnológico, parava de gravar quando os interlocutores paravam de falar e voltava a gravar quando os dois retomavam as falas. Simples assim.
Não foi só isso. Ainda estávamos enfrentando o fantasma da “gravação adulterada” quando outras duas assombrações vieram bater à nossa porta. Uma delas foi a tese de que a imunidade penal concedida a Joesley Batista era excessivamente generosa diante do rol de políticos corrompidos por ele. Batista tinha cometido muitos crimes, por isso teria que ser processado e punido com prisão. Não poderia fazer delação e, com isso, se livrar da cadeia. A tese se baseava na suposição de que Batista era chefe de uma organização criminosa e, portanto, pela lei, não poderia fazer um acordo de delação. Não sei de onde surgiram essas ideias. Sei que elas ganharam corpo e nos obrigaram a perder muito tempo com explicações simples, mas de difícil acolhida em um ambiente cada vez mais hostil a mim e à minha equipe. Meu fim de mandato, que poderia ter sido um momento de balanço positivo de uma longa carreira dedicada ao serviço público, acabou se transformando na fase mais difícil da minha vida profissional e pessoal. Confesso aqui que em alguns momentos demorei a ver uma luz no fim do túnel. Às vezes, o que me restava era apenas um vago sentimento de confiança de que, mesmo sem vislumbrar uma saída, ela certamente existiria. Nosso trabalho era em equipe, mas algumas decisões, as mais difíceis, eram solitárias.
Com todos aqueles ataques, vindo de várias direções, tivemos que dizer que a imunidade não era uma novidade na própria Lava Jato. Também não era um prêmio excessivo. Pelo contrário, Joesley Batista entregara de bandeja à PGR o presidente da República, que estava no exercício do cargo, e, além dele, como costumo dizer, o virtual futuro presidente da República. Se não fosse capturado por aquela conversa gravada por Batista num hotel de São Paulo, Aécio Neves teria amplas chances de vencer as eleições de 2018, conforme diziam os analistas políticos. Algum outro delator chegou perto disso? Claro que não. Outro detalhe: Batista, ao contrário dos outros delatores, relatara crimes em curso. O empresário havia concordado ainda participar de ações controladas, que resultaram para ele numa perda imediata de R$ 4 milhões. As malas de dinheiro entregues a Rocha Loures, ao emissário de Aécio Neves e a Roberta Funaro não retornaram ao empresário. Então, no meu ponto de vista, a imunidade foi, sim, uma medida justa.
Também tivemos que explicar longamente que o grupo do PMDB de Michel Temer estava no topo do poder havia muitos anos, provavelmente mais tempo que qualquer outra banda política. O grupo exercia influência desde o governo Itamar Franco, no começo dos anos 1990. E, desde então, só fizera ampliar sua esfera de atuação, até chegar à Presidência da República em 2016. Os irmãos Batista poderiam até ter mais dinheiro, mas não tinham o controle de tantos feudos na máquina pública quanto o grupo de Temer. Para mim, não havia dúvidas de que no topo da hierarquia estava o piloto da máquina pública, e não o empresário, que dependia das benesses dessa mesma máquina para turbinar lucros financeiros. As teses sobre premiação excessiva e chefia de organização criminosa eram, juridicamente, irrelevantes. Não vi nenhuma voz respeitada nos tribunais fazer eco a essas ideias. Mas elas também ajudaram a turvar o ambiente e a aumentar a hostilidade de alguns setores contra os investigadores, muitas vezes vítimas de ataques pessoais.
Em geral, o veneno era distribuído em notas maldosas no noticiário. Não vou reproduzi-las aqui porque considero desnecessário. Uma delas, publicada numa revista semanal, chegou a dizer que minha filha Letícia seria alvo dessas hienas, que fariam alguma denúncia escabrosa contra ela, uma jovem advogada que estava iniciando a carreira na iniciativa privada e não devia favores a ninguém, nem ao próprio pai. Aquilo me encheu de amargura. Aliás, me enche até hoje. Quando tentaram enxovalhar a imagem do meu irmão, já falecido, eu tive momentos dolorosos e chorei sozinho. Era muito difícil não poder defender a memória de um irmão morto. Mas, quando atacavam Letícia com aquelas insinuações maldosas, era como se estivessem arrancando meu fígado sem anestesia. Num dos momentos de dor aguda, de ira cega, botei uma pistola carregada na cintura e por muito pouco não descarreguei na cabeça de uma autoridade de língua ferina que, em meio àquela algaravia orquestrada pelos investigados, resolvera fazer graça com minha filha. Só não houve o gesto extremo porque, no instante decisivo, a mão invisível do bom senso tocou meu ombro e disse: não.
A perseguição perdurou inclusive depois do meu mandato. Foi em dezembro de 2017, por exemplo, que descobri que Marun pedira a minha prisão na CPI da JBS. Eu estava numa reunião do Comitê da ONU para Direitos Humanos, em Santiago do Chile, quando recebi a notícia da coordenadora da mesa.
“Olha que absurdo, estão querendo te prender no Brasil!”, ela disse, me mostrando o celular com uma reportagem sobre a movimentação da CPI.
A notícia causou perplexidade e indignação. Ninguém poderia acreditar que um deputado, aliado do presidente com sérios problemas de corrupção, tivesse a ousadia de se apropriar da estrutura do Estado para, num gesto de vingança pessoal, atingir um ex-procurador-geral da República. Rapidamente, os representantes de outros países ali presentes se levantaram para apresentar uma moção de repúdio àquela arbitrariedade. Eu pedi, então, que esperassem um pouco. Aquilo era tão insensato que, provavelmente, a própria CPI faria uma autocorreção. Foi o que aconteceu. Logo depois, Marun recuou. O pedido de prisão, anunciado, mas não concretizado, era uma forma de me jogar no mesmo balaio onde estavam os ex-chefes dele.
Em outros dias, também difíceis, quando alguns colegas pareciam mais assustados com o nível de agressividade dos investigados, eu apagava uma parte do quadro-negro da sala Teori Zavascki e escrevia a expressão “
hold on
”, o slogan de uma campanha publicitária dos Médicos Sem Fronteiras. O comercial exibe imagens de médicos socorrendo crianças desnutridas em bolsões de miséria na África. Nada poderia ser mais doloroso que aquilo. O sofrimento de uma criança é o mal absoluto, como diria o filósofo Marcel Conche. E a mensagem, embora repetida muitas vezes na TV, calava fundo como um longo sermão espiritual.
“Quero todo mundo firme aqui! Ninguém vai recuar, não! Esse tsunami que está vindo na nossa direção vai chegar, mas vai voltar para o mesmo lugar de onde veio”, era o que eu dizia.
E era assim que eu tentava melhorar o ânimo, a concentração e o espírito de combate da minha equipe, contando, às vezes, com rápidas incursões à “farmacinha”. De modo geral, procuradores sabem aguentar pressão. Nosso ofício não é agradar. Encarar adversidades é parte da nossa rotina. O problema eram os ataques pessoais, as mentiras, as insinuações lançadas ao vento, sobretudo quando maldades eram direcionadas aos nossos familiares. Nessas horas, não há homem de ferro. Todos sofrem.
Com a artilharia crescendo em nossa direção, tivemos que trabalhar em dobro, e ainda mais rápido. Rocha Loures e outros réus estavam presos. Tínhamos prazos curtos a cumprir.
Rocha Loures foi preso em 3 de junho, depois que perdeu a vaga de deputado com o retorno de Osmar Serraglio à Câmara. Em 26 de junho, pouco mais de um mês depois das primeiras buscas, denunciamos o presidente da República e o ex-assessor especial por corrupção.
Para nós, o crime estava devidamente caracterizado nas imagens de Rocha Loures recebendo a mala com R$ 500 mil de Ricardo Saud. A entrega da mala era o primeiro resultado concreto da conversa de Temer com Joelsey Batista no Jaburu e das incursões de Loures pelo governo para atender os interesses do empresário. Era um caso com ciclo completo. Na primeira cena, o presidente se reúne com um empresário às escondidas e indica um interlocutor de confiança, autorizado a tratar de qualquer assunto. No momento seguinte, o empresário se encontra com o assessor e apresenta um pedido de favores para uma de suas empresas. Na terceira etapa, o assessor recebe uma mala de dinheiro e sai correndo com a fortuna pelas ruas de São Paulo. Um roteiro de cinema não poderia ser mais completo e simples.
Como se não bastasse, relatório da Polícia Federal sobre a primeira fase do inquérito contra Temer seguia na mesma direção. “Diante do silêncio do mandatário maior da Nação (Michel Temer) e de seu ex-assessor especial (Rocha Loures), resultam incólumes as evidências que emanam do conjunto informativo formado nestes autos a indicar, com vigor, a prática de corrupção passiva”, concluiu o delegado Marlon Cajado. A denúncia teve forte impacto. Afinal, pela primeira vez na história, um presidente da República era denunciado por corrupção em pleno exercício do mandato. Alguns diziam que a acusação formal da Procuradoria-Geral seria o fim do governo. Outros insistiam na tese do açodamento. Outros ainda diziam que o procurador-geral deveria ter esperado um pouco mais (quanto tempo?) para fazer uma denúncia de tamanha envergadura. Houve até quem levantasse a hipótese de que só fiz a denúncia para desgastar o governo e impedir a reforma da Previdência, desfavorável aos servidores públicos, especialmente aos procuradores. Poucos levantaram a voz para destacar o ineditismo da ação e os riscos naturais de um enfrentamento direto entre um procurador-geral e um presidente da República.
Enquanto muita gente boa silenciava, o presidente e seus soldados partiam para ataques pessoais. Num pronunciamento logo no começo do caso, Temer chegou a insinuar que minha atuação tinha como objetivo final alguma vantagem financeira. Ele não disse como isso aconteceria e nem de onde tirara a ideia. Ninguém teve curiosidade de cobrar explicações. Um chefe de Estado, mesmo rodeado de acusações nada abonadoras, não pode sair por aí falando o que bem quiser. Deve responder por atos e palavras. Num determinado momento, eu achei até que deveria reagir de forma enérgica àquelas insinuações maldosas. Mas, em conversa com minha equipe, chegamos à conclusão de que um bate-boca público entre o procurador-geral e o presidente só aumentaria o nível de tensão em torno do nosso trabalho e tiraria do foco o caso principal, a denúncia em gestação contra Temer. O silêncio costuma ser amargo, mas em alguns casos ainda é o melhor remédio. Suportamos pressão e ataques calados. Limitamo-nos a fornecer algumas explicações quando demandados pela imprensa, o que era muito pouco diante da avalanche de críticas. Olhando em retrospecto, acho que cometemos um erro. Deveríamos ter sido proativos, mais enfáticos, na defesa pública das nossas posições.
Em 29 de junho, a presidente do STF, Cármen Lúcia, enviou a denúncia para o Congresso. Pela Constituição, o Supremo só pode processar um presidente com autorização prévia da Câmara. Temer era um político impopular e conduzia um governo sem votos, mas, paradoxalmente, tinha uma forte base parlamentar. Boa parte dessa base formada por aquele numeroso grupo que, como dizia Romero Jucá, trabalhava para “estancar a sangria” da Lava Jato e encarava o presidente como “a solução” para o problema. O caso era de corrupção, mas, ao contrário do que vinha acontecendo, dessa vez as multidões não saíram às ruas e nem bateram panelas. Sem grandes protestos populares, aliados de Temer no Congresso apressaram a tramitação do caso em pleno recesso parlamentar. Em 2 de agosto, 263 dos 513 deputados votaram pela retenção da denúncia. Ou seja, Temer só poderia ser processado depois que deixasse o Palácio do Planalto. A mesma Câmara que votou pelo impedimento da presidente Dilma por causa de manobras fiscais, que nada tinham a ver com desvio de dinheiro público, garantia o primeiro salvo-conduto para Temer seguir em frente, livre de um processo judicial até o fim do mandato.
Naquele período, não sei se antes ou depois da votação da denúncia, fui aos Estados Unidos participar de uma rodada de palestras e tive uma curiosa conversa com a jornalista Lally Graham Weymouth,
publisher
do
Washington Post
. Estávamos eu, ela, o procurador regional Vladimir Aras e minha mulher, Júnia, num restaurante em Washington. Num determinado momento do encontro, quando falávamos sobre o caso Temer, ela parecia não acreditar que o presidente fora flagrado naquela conversa com Joesley Batista.
“Eu não acredito. Por que ele não deixou para “roubar” depois de sair da presidência?”, ela perguntou, com certa perplexidade e com aquele toque de pragmatismo que caracteriza os americanos.
“Eu não sei. Isso você tem que perguntar a ele”, respondi.
De fato, eu não tinha uma resposta clara. Talvez tenha sido a força do hábito. O inquérito dos portos, aberto a meu pedido e depois conduzido pelo delegado da Polícia Federal Cleyber Malta, mostrou o envolvimento do presidente com um longo histórico de desvios de dinheiro público, num esquema operado pelo coronel João Batista Lima. Só para se ter uma ideia do volume de encrencas escarafunchadas pelo delegado na vida pregressa de Temer e aliados, é bom lembrar que o relatório final desse inquérito tem quase mil páginas e já resultou na abertura de outras quatro investigações em Brasília, no Rio e em São Paulo. Numa dessas, Temer e Lima tiveram duas passagens pela prisão: uma delas de quatro dias e outra de seis dias. As prisões foram determinadas pelo juiz Marcelo Bretas, da 7
a
Vara Federal do Rio de Janeiro e, depois, confirmadas pelo Tribunal Regional Federal da 2
a
Região.
O resultado desfavorável na Câmara não chegou a ser uma surpresa, mas não deixou de ser chocante. O que mais os deputados que votaram a favor de Temer queriam para autorizar o andamento do processo? No meu ponto de vista, esse era um dos casos mais bem resolvidos da Lava Jato. Tínhamos a gravação da conversa incriminadora entre Temer e Joesley Batista na calada da noite no Jaburu. Tínhamos a gravação de Batista e Rocha Loures acertando o uso da estrutura do governo em benefício do empresário. E, por fim, tínhamos a corridinha com a mala de dinheiro pelas ruas de São Paulo. Se aquelas conversas escabrosas e aquela fuga do assessor do presidente com uma mala com R$ 500 mil não eram “indícios” suficientes para se abrir um processo por corrupção, o crime deveria ser excluído do Código Penal. Depois de algum tempo, um amigo me perguntou se aquele resultado foi uma derrota pessoal. É óbvio que, se fiz uma acusação formal contra um investigado, eu gostaria que o caso fosse levado até o fim, sem entraves. Mas não era uma derrota pessoal. A luta era um movimento institucional contra a corrupção. Nesse jogo, quem perde é a parcela da sociedade que se esforça para acreditar no triunfo da justiça sobre a mentira. Não, a derrota não era só minha. O revés era coletivo. Todos nós, que pagamos impostos, perdíamos.
Quando ainda estava na fase final da elaboração da denúncia, alguns colegas da nossa equipe de investigação pareciam em dúvida quanto a valer a pena fazer uma acusação de tamanha envergadura. O presidente tinha uma base forte e poderia usar sua força contra o Ministério Público.
“E se a Câmara não liberar?”, perguntou um deles.
“O que nós temos a ver com isso? A gente faz o nosso papel e deixa a Câmara fazer o papel que acha que deve fazer. A história vai julgar todos nós. Eu não quero ser julgado por omissão. Por que esse procurador-geral não denunciou um presidente da República que estava cometendo crime no exercício do cargo? Essa é a pergunta que vão fazer se não fizermos a denúncia. E isso eu não quero para mim. Eu não quero o carimbo de omisso”, respondi.
Foi uma conversa tensa, mas, ao final, prevaleceu o consenso de que faríamos a denúncia, independentemente dos resultados políticos. O revés na votação, mesmo analisado antecipadamente, teve gosto amargo e nos deixou muito desapontados. No entanto, confesso, não tivemos tempo de lamber as feridas. Depois da primeira denúncia, tivemos que mergulhar no farto material que daria base à segunda acusação. Estávamos correndo contra o tempo, afinal, me restavam poucos dias de mandato. Os elementos recolhidos ao longo da investigação e não aproveitados na denúncia por corrupção indicavam que Temer e outros auxiliares haviam incorrido em crimes ainda mais graves: envolvimento em organização criminosa e obstrução de justiça. Acusar qualquer pessoa de tais crimes é sempre uma tarefa complicada. No caso de um presidente da República, essa responsabilidade é, obviamente, ainda maior. Afinal, se o presidente é acusado de crimes tão graves, toda a República deve exigir pleno esclarecimento dos fatos, caso contrário pode banalizar a ideia de crime e mesmo de República. Enfim, nosso trabalho dali em diante estaria num patamar ainda mais elevado de complexidade e responsabilidade. Tudo isso com uma dificuldade adicional: eu tinha menos de dois meses de mandato pela frente e, por dever profissional, considerava necessário não deixar tamanho abacaxi para a minha sucessora.
Eu só não contava com “fogo amigo” àquela altura dos acontecimentos. E foi exatamente o que ocorreu e que nos deixou sem chão por alguns preciosos dias. Na manhã de 2 de setembro, um domingo, eu estava em casa preparando o almoço quando vi no nosso grupo no WhatsApp (o Telegram só era usado nas operações de rua) uma mensagem de alerta da procuradora Carolina Resende, uma das mais aguerridas investigadoras com quem trabalhei.
“Gente, descobri uma bomba aqui. Acho que pode ter consequências”, ela dizia, para logo em seguida explicar, em linhas gerais, qual era a bomba. No final da tarde da quinta-feira (31 de agosto), os advogados dos executivos da J&F haviam entregado à Procuradoria-Geral vasto material, inclusive quatro áudios intitulados Piauí 1, 2, 3 e 4. Era o último pacote de provas de que dispunham até então e que deveriam entregar em prazo ajustado inicialmente, como previa o acordo de colaboração. Os advogados deixaram os áudios na Procuradoria com os respectivos anexos. O material fora, então, distribuído entre os procuradores da minha equipe para uma primeira análise de conteúdo. Os áudios 1, 2 e 4 continham informações sobre o senador Ciro Nogueira, que já era investigado. A bomba estava no áudio 3, que nada tinha a ver com o senador.
Eu e os demais procuradores do grupo da Lava Jato deixamos nosso dia de folga com nossas famílias para trás e corremos para a Procuradoria-Geral para ouvir a gravação e analisar o quadro geral. Em quatro horas e meia de conversa, aparentemente regada a altas doses de uísque, Joesley Batista e Ricardo Saud despejavam um caminhão de asneiras sobre os ministros do Supremo Tribunal Federal Cármen Lúcia, Gilmar Mendes e Ricardo Lewandowski, e até sobre mim. Os dois falavam também sobre o ex-procurador Marcelo Miller, que até um ano antes integrava o grupo da Lava Jato em Brasília. As bobagens que eles diziam sobre mim e os ministros do STF não tinham relevância penal, mas davam margem a interpretações maledicentes e, por isso, deveriam ser devidamente esclarecidas. As referências a Miller eram mais específicas e deixavam o ex-procurador numa perigosa faixa cinzenta. Tomadas ao pé da letra, aquelas declarações não passavam de uma comédia pastelão protagonizada por dois bocós. Entretanto, no contexto envenenado daquele momento, com o mundo político querendo nossas cabeças, aquele palavrório suscitava dúvidas que, se não fossem dirimidas o mais cedo possível, seriam uma bomba explodindo na fortaleza da Lava Jato.
No início da noite do dia seguinte, convoquei uma entrevista coletiva e, contra a vontade de parte da minha equipe, falei sobre o caso. Disse que considerava o conteúdo e a entrega das gravações, sem as devidas explicações prévias, uma quebra de confiança. Portanto, pediria ao Supremo a rescisão do acordo de colaboração dos executivos da J&F. Também seria aberto um inquérito para apurar se as declarações dos dois colaboradores tinham algum fundamento, embora parecessem demasiadamente fantasiosas. A notícia sobre o pedido de rescisão do acordo teve forte repercussão. Era o efeito de um apagão numa cidade iluminada. Na momentânea escuridão, muitos especulavam sobre a perda da eficácia de toda a investigação sobre Temer, e até sobre um efeito cascata sobre outros acordos de delação. O bombardeio em nossa direção foi multiplicado por dez. Tínhamos que nos defender dos ataques, alimentados em parte por nossas decisões, e, ao mesmo tempo, seguir firmes na investigação sobre organização criminosa e obstrução de justiça. Isso a duas semanas do fim do meu mandato.
Por que todo aquele enxame em torno de uma suspeita sobre um ex-procurador? No início da investigação, descobrimos indícios de que o procurador Ângelo Goulart Villela recebera propina para ajudar os irmãos Batista a se defender do cerco montado sobre eles pelo procurador Anselmo Lopes, coordenador da Operação Greenfield. No primeiro dia da fase ostensiva da Operação Patmos, Villela estava entre os presos. Pedi a prisão dele com o coração apertado. Antes de se envolver com a turma da J&F, Villela chegou a frequentar a minha casa e, durante um tempo considerável, tivemos uma boa relação de amizade. Logo depois de ser informado sobre a prisão dele, me recolhi no banheiro do meu gabinete e vomitei umas duas ou três vezes. Minhas entranhas estavam se revirando. Mas tinha que cumprir o meu dever. E o meu dever era submeter o procurador ao mesmo tratamento dos demais investigados. O caso continha um forte drama pessoal, e era bastante significativo. Mesmo assim, teve pouco espaço no noticiário. Com Miller, a situação foi diferente. Embora não houvesse uma prova inconteste de que o ex-procurador tivesse cometido um crime, a defesa do presidente resolveu fazer um estardalhaço com o caso. Era um falso escândalo criado para esvaziar o verdadeiro escândalo.
A centelha do incêndio era um trecho da conversa em que Saud falava com Batista sobre conversas que teriam tido com Miller a respeito de táticas para se fazer um bom acordo de delação. Miller pedira demissão no final de fevereiro, mas, como tinha férias acumuladas, a exoneração só foi formalmente concluída em 5 de abril. Nesse período ele já estava afastado de suas atividades de procurador, mas ainda mantinha vínculos formais com a Procuradoria da República no Rio de Janeiro, onde estava lotado. Miller acelerou os preparativos para a carreira de advogado e acertou a participação na defesa dos Batista. Era o que a defesa de Temer precisava para dar curso à teoria da conspiração, que era algo mais ou menos assim: Miller, ainda como procurador, ajudara os irmãos Batista a traçar um caminho rumo à delação. Portanto, o acordo deles não teria validade, e as investigações contra Temer também teriam que ser suspensas. Ora, era uma bobagem achar que empresários do porte dos Batista, com recursos para contratar os melhores advogados do país, precisariam de um procurador para explicar para eles o que era necessário para eu aceitar uma proposta de acordo de delação. Os critérios da delação estão em lei, e qualquer inteligência mediana é capaz de entender que para obter um acordo é necessário, como ponto de partida, revelar crimes cometidos por si e por outros cúmplices numa escala superior. Não há mistério nenhum aí. Outra coisa: as investigações não se resumiam a áudios gravados por Joesley Batista. As acusações que fizemos estavam lastreadas em ações controladas, em interceptações telefônicas e documentos apreendidos. Tudo isso demorou a ser entendido, sobretudo por quem não queria entender nada mesmo.
De qualquer forma, cinco dias depois de termos tido acesso à gravação Piauí 3, pedimos e o ministro Edson Fachin determinou a prisão de Joesley Batista e Ricardo Saud. Pedimos a prisão de Miller também, mas o relator entendeu que não era o caso. Os investigados precisavam entender que delação não é um jogo, mas um movimento sério em direção ao arrependimento, à confissão de crimes, e um firme compromisso de uma vida limpa. É quase uma conversão religiosa, mas com uma diferença. Se a conversão for só da boca para fora, o risco de prisão é alto. E, de fato, foi o que aconteceu.
As conversas imaginativas de Joesley Batista e as trapalhadas de Marcelo Miller sugaram boa parte de nossa energia num momento crucial. Alguns colegas ficaram furiosos com Miller. O consenso era que ele tinha sido desleal conosco e expusera a Lava Jato de Brasília a um desgaste absolutamente desnecessário. De qualquer forma, não haveria recuos no nosso caminho.
“Enquanto houver bambu, lá vai flecha!”, eu disse, numa entrevista num seminário da Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (Abraji), uma frase que, de certa forma, resumia o espírito daquele nosso momento, que era de levar todas as investigações adiante, até o último dia do meu mandato.
Em 15 de setembro, uma sexta-feira, dois dias antes do fim do meu mandato (e dia do meu aniversário), apresentei a segunda denúncia contra Temer e outros aliados por envolvimento com organização criminosa e obstrução de justiça. Estávamos decididos a fazer a denúncia mesmo sem o inquérito policial, também em andamento. Quando o relatório da PF chegou a nossas mãos, corri os olhos pelas últimas páginas do documento (é assim, de trás para a frente, que lemos inquéritos e processos) e, de imediato, achei o que precisava.
“Pare aí, moçada! Acho que chegou o momento do copiar e colar”, eu disse.
Num trabalho magistral, o delegado Marlon Cajado atribuía ao presidente da República os crimes de envolvimento em organização criminosa e obstrução de justiça. Não éramos só nós, do Ministério Público, a firmar convicção nesse sentido, mas também a Polícia Federal. E tinha mais: o delegado reconhecia expressamente que o presidente da República era o chefe da organização criminosa.
Na segunda-feira seguinte, minha sucessora assumiu o cargo de procuradora-geral da República. Eu só me aposentaria dois anos depois. Não obstante, a partir dali, para mim, tudo mais da Lava Jato já era história.