Um dos dados mais curiosos do trabalho é a constatação paradoxal de que todos concordam que os motoristas irresponsáveis devem ser severamente punidos. O problema, porém, é que tal opinião radical ocorre ao lado da visão (igualmente majoritária) de acordo com a qual não há ninguém que obedeça às regras no Brasil – eis a gravidade do achado.
Temos, assim, por um lado, um radicalismo repressivo extremo, bastante comum na vida pública nacional quando todos (sejam de direita, esquerda ou centro) dizem saber com precisão como virar o mundo pelo avesso no intuito de corrigi-lo de uma vez por todas (vamos caçar os marajás, liquidaremos a corrupção em seis meses etc.). Por outro, um realismo igualmente implacável, segundo o qual a obediência à regra seria algo ingênuo e, no limite, impossível, já que obedecer é mostrar-se como tolo e subalterno. Vemos que são dois os discursos: a cura definitiva na teoria e na retórica; e o cinismo, que afirma ser ingênuo crer em qualquer melhoria porque obedecer – assim como ler, pesquisar, escrever, ser honesto, fiel etc. – tem a ver com as más qualidades burguesas, sintomas de ingenuidade e subordinação. E, num outro plano ainda mais complicado, revelando uma insuspeita tridimensionalidade de nossa relação com a norma, há o espectro talvez mais aterrador e negativo: a opinião segundo a qual não há pessoa que siga a lei!
Dentro desse quadro, um tanto marcado pela derrota, todos – sem exceção – reclamam da ausência de uma fiscalização melhor e mais eficiente, assim como de um policiamento mais honesto e vigilante. Simultaneamente, duvidam da eficácia legal e policial porque – além da propensão a não seguir as leis – entendem que quem tem boas relações e detém um capital familístico e social poderoso pode eventualmente suspender os efeitos de quaisquer medidas policiais por meio de um elo pessoal: seja pelo jeitinho (quando o sujeito apela para uma igualdade humana dentro de uma situação onde o comando não lhe pertence e seu erro é claro, daí a súplica pelo jeito); seja pelo Você sabe com quem está falando? (quando, num contexto igualitário, um ator para quem a lei foi aplicada desmascara-se como socialmente muito superior – eu sou o governador do estado!)1.
Nesta área, o maior desafio para o gerenciador público é a construção de uma relação positiva, efetiva e legítima entre o que os motoristas fazem no trânsito, o que eles dizem que fazem e o que gostariam que o Estado fizesse. Não com eles, obviamente.
Os dados colhidos na pesquisa levam a uma questão fundamental, que reputo como crítica, a saber: como fazer com que os que atuam nesta área do mundo público – o condutor de carro de passeio, o pedestre, o motoboy, o caminhoneiro, o motorista de ônibus, o ciclista – pensem a si mesmos como parte de um sistema? Como fazer com que o pedestre tenha plena consciência de que uma imprudência de sua parte (digamos, uma brincadeira na qual finge atravessar a rua na frente de um carro que passa em alta velocidade) tem como consequência um gesto automático do motorista, o que pode provocar uma colisão com um ônibus que eventualmente esteja a seu lado e um choque desse ônibus com um caminhão etc.? O mesmo ocorre quando um condutor decide ultrapassar um sinal ou faz uma curva para o lado direito ou contrário sem aviso prévio. No trânsito, a primeira lição é entender que todos os seus elementos relacionam-se e que cada qual tem uma enorme capacidade de influenciar a conduta de todos os outros.
Mas, como essa percepção está ausente, o que se observa é o desejo de punição jamais para si próprio, mas apenas para quem é visto como autor da infração. Entendemos, pela leitura das entrevistas, que estamos diante de um paradoxo de considerável importância, com profundidade histórica e sociológica.
No Império, muitos fazendeiros eram contra a escravidão e, no entanto, quase todos tinham escravos. Por isso, foram necessários cinquenta anos para liquidar com a escravidão por sucessivos atos legais. Na República, somos contra a corrupção, desde que não seja feita por políticos do nosso partido ou gente da nossa administração. No trânsito, queremos penas severas para os outros, para os que vemos como os verdadeiros infratores do sistema. Para nós, sempre há o jeitinho e o Você sabe com quem está falando? quando não ocorre a plena impunidade porque, lá no fundo, cremos que a figura imaculada de uma pessoa que segue as regras não existe.
A despeito disso, porém, os entrevistados da pesquisa mostram haver uma reiterada vontade de intervenção no sentido da correção de abusos, da prevenção do caos e na direção de uma mudança. O fundamental aqui não seria discutir o óbvio: que é preciso punir e, sobretudo, multar os maus motoristas; mas chamar a atenção para o seguinte ponto: qualquer projeto de intervenção terá que ter como ponto central a consistência. O que conduz a uma descrença generalizada na melhoria e a uma crença universal na impunidade é justamente o fato de que todos sabem das normas, mas que, quando há uma infração, nem todos são punidos. Mais: nem sempre a impunidade é consistentemente punida e, quase sempre, aquilo que começa com vigor termina depois de algumas semanas (se durar isso tudo), de modo que os antigos hábitos retornam com mais força, esbofeteando a autoestima e o esforço cívico de toda a população. Qualquer programa de atuação nesta área, portanto, terá que primeiramente reverter e extinguir a ideia da impunidade como hábito, solução e tradição.
Como falso arremate para tudo o que o leitor leu até aqui, pode-se dizer que a pesquisa sobre o comportamento no trânsito no estado do Espírito Santo traz à tona um conjunto de fatos e condutas que não destoa do restante do Brasil. Assim, tanto em Vitória quanto nas outras cidades examinadas (Cariacica, Vila Velha, Cachoeiro de Itapemirim, Linhares e São Mateus) e, acrescentemos, no restante do país, o que temos é um estilo de dirigir e de conduta nas ruas, avenidas, estradas e calçadas caracterizados pelos seguinte pontos:
Retórica ideal repressiva e ausência real de obediência. Um dos dados mais curiosos do trabalho é a constatação paradoxal de que todos concordam que os motoristas irresponsáveis sejam severamente punidos. O problema, porém, é que tal opinião radical ocorre ao lado da visão, igualmente majoritária, de acordo com a qual não há ninguém que obedeça às regras.
Como obedecer sem a presença da autoridade. No fundo, tudo isso trata de uma dificuldade pouquíssimo discutida, e por isso mesmo implícita (ou inconsciente), de internalizar limites impostos por normas impessoais. Falamos de regras que simplesmente dizem sim ou não e que dispensam a presença de uma autoridade em carne e osso que as represente ou aplique. Como todos estão fartos de saber, a mera presença de um guarda controla mais eficientemente os motoristas (e pedestres) do que os semáforos ou sinais mecânicos e impessoais, que pressupõem usuários-cidadãos dotados de uma consciência de limites mais aguda e sensível. E isso, vimos nos capítulos anteriores, depende de vários fatores. Entre eles, a educação elementar que acentue a crença na igualdade perante os outros e nos limites; uma família que consistentemente demonstre que os limites existem e devem ser respeitados e, finalmente, um conjunto de efeitos-demonstração na forma de multas, admoestações, perda de privilégios e punições que ultrapassem o nível impessoal (ou da lei tal como está escrita no papel) e cheguem ao infrator de modo concreto, atingindo seu cerne moral.
No caso do trânsito, essa consciência depende de políticas públicas que sejam capazes de extinguir uma enraizada e costumeira crença na impunidade. Devem também conscientizar os cidadãos de suas responsabilidades perante os outros no cenário de um sistema complexo e dinâmico que reúne pessoas, animais e máquinas, bem como sinais e demarcações impessoais.
A esse cenário soma-se uma sistemática desobediência às normas universais, que teoricamente valem para todos. O problema tem sua origem numa relação desconfiada entre Estado e sociedade, entre o governo e a população de um país, estado ou cidade. Se obedecer é seguir normas e se seguir normas é ser honesto e transparente, como ocorre quando um carro automaticamente para num sinal vermelho, como realizar isso se sabemos que, em nossa cidade, os administradores gerenciam melhor suas casas e famílias do que a coletividade pela qual foram eleitos? Ademais, como realizar o elo de confiança que se traduz em obediência e cujo componente coletivo é marcante (eu obedeço porque sei que todos assim o fazem) se as administrações locais, estaduais e federais se caracterizam por uma presença no nível da promessa e da demagogia e por uma extraordinária ausência na manutenção e sustentação dos vários sistemas que perfazem a estrutura de qualquer comunidade, como o sistema sanitário, de segurança, educacional e, claro está, do trânsito? Como multar um motorista por ter ultrapassado um sinal, se o sinal está constantemente apagado ou quebrado? Como exigir que o pedestre ande na faixa, se a faixa se apagou e sua pintura não foi refeita?
Nosso estudo indica que, em todos os níveis e com todos os atores, há uma atitude comum que fala de modo muito preocupante do universo da rua como terra de ninguém, lugar perigoso onde seres humanos (as pessoas, como se diz) são desumanizados e se transformam em pedestres ou vítimas potenciais dos outros atores presentes neste espaço, no qual as regras foram feitas para serem desobedecidas. Ora, se os motoristas não obedecem e têm um comportamento inconsistente em relação aos sinais e aos pedestres, estes atuam na base do mesmo modelo.
A confirmação de que quem obedece à lei é, hoje em dia, um ser inexistente, uma pessoa tola ou idiota, um babaca! – como me disse uma vez um entrevistado –, fala de um sistema fechado em si mesmo: uma área da vida na qual a impessoalidade esconde um marcante traço desumanizador. Se eu não conheço alguém pessoalmente, esta pessoa não existe como uma entidade merecedora de respeito, dignidade e consideração. Se esse alguém não existe como pessoa, não há como tratá-lo como ser humano. Ou, quem sabe e de modo mais profundo, o feixe de regras que governa nossas vidas em geral e o trânsito em particular não chegue a atingir nossa existência porque sua clareza, sua manifestação explícita, contém um certo toque de artificialidade, sendo por demais superficial para atingir nosso modo de ser mais profundo e real, que não poderia ser governado ou marcado por normas vindas de fora. Se somos uma sociedade no fundo e na realidade feita de superpessoas que estão – como a vida nacional recorrentemente demonstra – acima da lei, esse papel legitima toda e qualquer forma de ultrapassagem das normas, mostrando não a ilegalidade, mas uma superioridade de raiz que faz parte de nossa autoconsciência – tão personalizada que ela se recusa a obedecer a qualquer norma.
Por isso, toda e qualquer atuação no sistema deve contemplar o trânsito como um todo: estudando os processos pelos quais uma pessoa aprende a dirigir e os aprendizados que dizem respeito ao modo de andar na cidade e suas ruas. Isso sem esquecer os riscos que todos se permitem ao usar e abusar de álcool e outras drogas, bem como as concepções de impunidade, jeitinho, apadrinhamento e relação negativa entre a população e o Estado (e o governo) que marcam tanto o Espírito Santo quanto qualquer outra região do Brasil.
Ora, é precisamente essa inconsistência de raiz o que nos enlouquece. Referimo-nos ao fato de que todos os agentes do sistema de trânsito entendem que não são culpados pelos acidentes ou pelas infrações que cometem. Neste ambiente do culpado são os outros, todas as desculpas são permitidas e lei alguma foi feita para ser aplicada indistintamente para todos com isenção e justiça.
1 Para uma exposição dessa gramática, veja-se Lívia Barbosa, op. cit.