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Miúdo Zito entrou a correr no pequeno compartimento que servia de sala e, atravessando no quintal, viu o avô, ao fundo, junto às aduelas, a mijar. Parou, ofegante, e depois chamou:
— Vavô! Vem depressa. Tem preso!
Velho Petelo se virou e interrogou com os olhos pequenos, piscando na luz do sol da manhã coado nas folhas da mandioqueira:
— Menino disse tem preso? Viste com teus olhos?
Arrastando a perna esquerda e seguido por miúdo Zito, atravessou na sala e saiu para o areal vermelho. Rodearam na cubata de sô Miguel e, em frente, onde já se aglomeravam algumas mulheres com seus monas escondidos nos panos, viram o homem que fazia esforços para descer de uma carrinha, debaixo das pancadas de dois cipaios.
O preso era alto e magro, muito magro mesmo. E embora a cara estivesse inchada, tornando-lhe quase irreconhecível, toda gente via era ainda novo. Ao descer da carroçaria, caiu de frente no areal, e as mães chegando mais os filhos, murmuraram só:
— Aiuê!...
Levado na mão do neto, o velho rompera entre o povo e observava o homem preso, com seus olhos pequenitos concentrados, atentos a todos os pormenores da cena. Quando o levantaram, o inchaço na cara mais se acentuou, vermelho da areia agarrada no suor. E mesmo que os cipaios tivessem corrido logo-logo com o povo, curioso naquela hora da manhã, os vizinhos e vizinhas juravam depois que o homem vinha amarrado nos pés e nas mãos na mesma corda e que ainda — juramos mesmo! — a corda dava uma volta ao pescoço. Aiuê! Como ia andar assim? Miúdo Zito descrevia, imitando para vavô Petelo, o andar curvado do preso, a cabeça quase nos joelhos, dando passinhos pequenos a caminho da porta. E jurava mesmo pelo sangue de Cristo, os cipaios lhe bateram enquanto se não abriu a porta chapeada e lhe levaram para trás dos grandes muros.
No musseque a notícia correu com depressa, miúdo Zito transmitindo a mães e filhos, vizinhas comentando de porta em porta. Ninguém lhe conhecia, o pobre era muito alto e magro, ninguém lembrava aquela cara lá em cima. Vavô Petelo recolheu todos os pormenores, sempre cachimbando, e saiu depois com miúdo Zito na mão, arrastando sua perna esquerda, a calça dançando, motivo de troça da miudagem:
— Takudimoxi! Takudimox’ééé!
Verdade que tinha uma nádega só, faltava mesmo do lado esquerdo, passara em 1928: velho Petelo — naquele tempo Pedro Antunes, segundo-marinheiro da canhoeira — apanhara uma injecção para uma febre teimosa e o resultado era aquele. Bem que tinha refilado e lutado, mas nosso primeiro-tenente era assim mesmo: marinheiro com malária, injecção de quinino para cima! A picada tinha agravado, mas Pedro Antunes, medroso de mais injecções, não dissera nada e, quando descobriram, foi um trabalho: lancetamento, raspagem, enfim! Resultado: uma nádega quase comida no malandro do enfermeiro que fez o serviço e os meninos de musseque depois, de geração em geração, a topiar no velho marinheiro reformado:
— Takudimoxi! Takudimox’ééé!
Nessa manhã de sol, velho Petelo não correu os miúdos à pedrada nem lhes disparatou nas famílias. Com o neto pela mão, caminhava, o mais depressa que podia, no meio do povo apressado saindo para os seus trabalhos na Baixa. Miúdo Zito ia distraído com a confusão, olhando meninos como ele, com a caixa de ferramenta de marceneiro ou pedreiro, ao lado dos sô mestres, ou caixa de engraxar sapato, os poucos de bata branca e sacas de escola. E já nem pensava porquê vavô Petelo, mal podendo se arrastar, ia assim tão cedinho na Baixa. Vavô tinha dito:
— Menino, você vê ainda. Quando brincas naquele cajueiro do Posto, se você vê tem preso, vem me avisar, logo-logo.
E quando isso sucedia, miúdo Zito deixava os outros meninos com brincadeira no meio e corria na cubata onde vavô, sempre sentado debaixo da mandioqueira ou na porta, sorria no sol.
Era sempre assim: pegava miúdo Zito na mão, qualquer que fosse a hora, e lá iam para baixo, até na Companhia onde trabalhava mano Xico, um dos afilhados do velho marinheiro. Zito gostava de ir. Além de ver tudo com os seus olhos curiosos, os carros bonitos que não tinha lá em cima, as casas grandes e limpas, almoçava com mano Xico na quitanda da praia e depois ficava, banzo, a ouvir falar de coisas novas, coisas que, muitas vezes, repetia nos meninos da mesma idade, alguns mesmo meninos de escola que não aceitavam.
Por isso, alegre com o passeio, miúdo Zito e vavô Petelo cruzavam as ruas asfaltadas e desciam no meio do rio negro que desagua na cidade branca. Calçada da Missão abaixo, com árvores velhas chorando seiva nos passeios, o povo, atrasado pela rusga geral dos cipaios e das tropas, caminha depressa para não descontar meio dia, não perder lugar nas camionetas do cimento, ou para apanhar os fregueses da manhã ainda de sapatos sujos.
No musseque, a essa hora, as mulheres, os inválidos, os desempregados, os vadios, se arrastam nas mais diferentes ocupações. A conversa do preso se foi apagando; comprar farinha, azeite-palma ou ir ao Posto em busca de familiar desaparecido, esquecem a surpresa que abrira na manhã: o preso, homem alto e magro que ninguém conhecia lá em cima e a sua chegada assim, na carrinha azul cheia de poeira, com dois cipaios malhando no infeliz.
Só no velho Petelo essa cena, vista no relance que lhe permitiam os olhos gastos por céus e mares, mas bem contada no neto Zito, não lhe abandona. Procura não esquecer, traço por traço, as feições adivinhadas, o jeito do olhar, o corpo magro e alto.
— Menino! Tens a certeza, não lhe conheces?
— Não conhece quem, vavô?
— Aquele irmão, preso.
— Não. Nunca lhe vi, vavô. Nunca lhe vi no musseque.
No cruzamento, onde o povo em torrente se confronta com os automóveis rodando barulhentos, donos do asfalto, avô e neto pararam. E velho Petelo resmunga:
— Menino esqueceu caminho. Não vai mesmo no Quinta?
— É mais perto, vavô. Conheço bem.
Miúdo Zito mente, quer mas é passar naquela casa que tem bolas-de-cotexú, como eles sonham lá em cima. E equipas bonitas como as do Botafogo! Por isso dirige o avô para a esquina da loja, atrasa o passo, mirando com olhos grandes a larga montra.
— Menino, vamos com depressa! Senão não vamos encontrar mano Xico. ‘tá sair logo de manhã.
De mãos dadas, cruzam as ruas no caminho da Companhia. A cara inchada, coberta de areia vermelha, não deixa a cabeça do avô, enquanto miúdo Zito vai pensando em mano Xico. Talvez ia-lhe dar uns rebuçados mesmo! Sorri à lembrança e acelera o passo; a Companhia está lá, na esquina. É uma casa muito grande e alta, com muitos vidros. As paredes parecem é só vidro, por isso Zito sempre tem medo de entrar. Se sente preso quando empurra a porta e se acha em tão grande sala, toda cheia de figuras que não percebe.
— Bom dia, mano. Estou procurar sô Xico, tem o padrinho dele para falar.
O contínuo fardado, sentado na secretária, olha para ele, menino do musseque, roto e sujo, coçando pé descalço no pé descalço.
— Quem é que você falou?
— Sô Xico, mano Xico Kafundanga, aquele que joga no Bota.
— Anh! Esse saiu...
— Ai?! Mas saiu como então? Nove horas ainda, entrou oito e meia, como é saiu? É sô Xico Kafundanga!
Levantando os olhos, olhar superior, ajeitando o colarinho da farda, o contínuo olha o miúdo e torna a dizer, indiferente:
— Já te disse. Esse sô Xico conheço bem. Saiu com o protocolo, foi distribuir as cartas. Vai ‘mbora!
Miúdo Zito olhou irritado o vaidoso contínuo e, esquecendo as paredes de vidro, as janelas de vidro, sentiu vontade mesmo de fazer lhe uma partida. Ai, mano, se fosse no musseque!
— Mas então saiu pra onde? Você sabe?
Sem responder, o contínuo se levantou virando-lhe as costas, empurrou uma pesada porta de madeira e desapareceu. Miúdo Zito muxoxou aborrecido e se dirigiu na saída. Velho Petelo, encostado nas arcadas, olhava o mar e se banhava de sol.
— Vavô, mano Xico saiu, não vai voltar. Só na hora do meio-dia. Vamos embora.
— Não, menino. Se você quer, você vai. Tenho de lhe esperar mesmo. Melhor você dizes naquele homem se mano Xico chega, a gente está lhe esperar na muralha.
— Ai, vavô, vou pescar mesmo. Sim, vavô? Vou com depressa!
O contínuo, mais sorridente, prometeu a miúdo Zito que não ia esquecer do recado para sô Xico, Francisco João como ele falou, emendando o menino e tomando nota num caderninho.
Dez horas eram quase e sol de Dezembro se abria amarelo em cima da cidade. Apenas uma ligeira brisa vinha ondular o azul quieto da Baía e dava requebros às folhas das palmeiras. Depois de sentar vavô Petelo na muralha, deixando-lhe saudoso a olhar a água sem fim, miúdo Zito atravessou nas corridas a larga avenida e no Catonho-Tonho comprou fio e anzol de dois e quinhentos, dinheiro que vavô lhe dera. Depois, no cais de cabotagem, arranjou, numa mana peixeira, duas sardinhas. O avô estava quieto no seu lado, deixando as moscas pousar nas pernas estendidas ao sol, o olhar perdido no mar, e miúdo Zito lançou a linha na água. Esperou, esperou, mas nada, não picava. E quando picava, euê, nada!, nem isca ficava.
— Olha só, menino! Estou te ver. A isca, se você põe assim, está dar matabicho nos peixes. Quer ver? Tem tripa aí? Então dá ainda, que eu te mostro!
— Ai!? Tripa para quê então?
— Dá ainda! Olha: primeiro espeta-lhe assim, até em baixo. Isso! Agora, vira e espeta por cima, esconde bico do anzol. Se peixe pica aí, não sai mais.
Miúdo Zito riu alto, satisfeito, e atirou para o canal o pequeno anzol com fio de pesca. Velho Petelo, sorrindo os olhos pelo mar fora, ia falando:
— Quando não tinha o porto, era só deixar anzol, garoupa nas pedras era muito, pargo mulato nem se fala. Matona, mariquita, quê? Quando a gente pescava deitava fora!
Zito dividia a atenção no avô e no fio e quando picou deu um puxão não muito forte, como avô ensinara, e começou a puxar.
— ‘tá ver, menino, não te dizia? Bonita matona, sim senhor! Pronto, agora tira só o anzol. Usa só a mesma isca, você vai ver, vais caçar outro. Peixe é burro!
O sol subia no céu azul sem nuvens. Velho Petelo olhava com saudade a mancha nebulosa na ponta da Ilha — a ponte do carvão, com certeza, já não via bem, mas jurava mesmo — onde tantas vezes atracara e carregara carvão para as caldeiras. E, mais no meio, a sombra branca da Igreja de Nossa Senhora do Cabo. Sorriu, abrindo as gengivas ao sol, recordou suas velhas bebedeiras nas grandes festas de Novembro. Agora já não tem festa assim, não, brancos não deixam. Um «gasolina» passou, barulhento, enchendo de fumo do velho dísel o mar quieto. Quantas vezes, Pedro Antunes, quantas vezes, farda branca, com teu boné azul, de pé, no leme, quantas vezes não cruzaste a tua Baía. Mas isso foi no antigamente. Agora...
Com quatro matonas e um roncador pescados, velho Petelo enchendo de sol suas recordações do mar, Francisco João, meio-dia batido no relógio da Sé, apareceu a procurar-lhes.
— Bessá, padrinho! Ená, miúdo Zito, você está crescido!
— Bom dia, mano Xico. Estou te procurar logo de manhã, mas você já tinha saído. Fiquei com o menino, pescar, esperar hora de te falar.
Francisco João, vestindo a habitual farda de caqui, ajudou o velho marinheiro a levantar, enquanto miúdo Zito, um pouco triste, enrolava o fio e pendurava os cinco peixes numa mateba.
— Vavô! Agora vou vir pescar todos os dias.
— Cala t’a boca, miúdo. A gente veio aqui falar conversas sérias.
— Melhor vamos almoçar. Aí conversamos, ‘tá bem?
O convite habitual e esperado de mano Xico sofreu ainda a recusa estudada de velho Petelo, mas depois, sem insistir mais, foram os três no caminho da quitanda. O almoço era simples: sopa e um prato de feijão com carne. Mano Xico mandou vir dois copos de vinho e velho Petelo pediu uma gasosa para o menino. Comeram devagar, saboreando o vinho e falando conversas da vida. Só no fim, com miúdo Zito muito atento, vavô Petelo disse baixinho para o afilhado:
— Chegou preso. De manhã. Não lhe conhecemos. Lhe vi mal, mas o candengue viu tudo.
Mano Xico ficou de repente mais sério. Se viram os músculos da cara a contrair, e depois, devagar, enquanto pensava, tirou papel e lápis e começou a escrever. Miúdo Zito ia contando em voz baixa:
— Era mesmo uma «Chivro» azul. Muita poeira, parece vem no mato mesmo.
— Mas menino tem a certeza?
— Juro sangue de Cristo!
Mano Xico tomou nota da licença que o miúdo dissera, se inclinou para a frente, chegando perto da cara do menino:
— Menino diz ele era alto e magro? Todo cheio de porrada, amarrado até no pescoço?
— Verdade, sô Xico! Não podia andar mesmo. Mas era muito alto e a cabeça dele estava sempre direita. Não tinha medo, não, mano Xico.
O afilhado de sô Petelo murmurava, longe:
— Alto... magro... cabeça sempre direita. Menino tem a certeza era uma «Chivro» azul?
— Tem, mano Xico!
— Não tinha homem de farda branca a guiar?
— Sim, mano Xico! Quem estava guiar era um branco, cambuta, a farda branca.
Francisco João tomava nota, velho Petelo ainda descarnava um osso deixado. Miúdo Zito, calado agora, olhava os frascos de rebuçados e sacudia inconscientemente as moscas.
— Não ouviu-lhe chamar?
— Sim, sô Xico! Os ximbas chamavam é mesmo «sô aspirante», na hora que ele mandou dar berrida na gente estava espreitar.
Com sua caligrafia redonda, bem legível, Xico continuou escrever no papel. No fim disse:
— ‘brigado, padrinho. E você, miúdo Zito. Vocês voltam no musseque. Já sabe, padrinho: quando tem preso, você vê tudo e escusa mesmo vir: manda este menino. Sim senhor, Zito! Menino esperto, você precisa ir na escola. Não esquece: se sabe mais coisas desse irmão preso, avisa.
Se levantaram os três. Xico Kafundanga pagou no balcão e pediu ao branco para lhe voltar troco em rebuçados. Miúdo Zito sorriu, satisfeito, enquanto a mão de mano Xico lhe acariciava a cabeça, sempre a repetir baixinho, para si mesmo:
— Menino esperto, menino esperto...
Xico deixou-os, padrinho e neto, no meio da rua banhada de sol. Duas e um quarto eram quase e tinha de correr, queria pedir para sair mais cedo.
Com velho Petelo pela mão, miúdo Zito, feliz, agarrando orgulhoso na mateba com suas quatro matonas e um roncador, caminha chupando os rebuçados oferecidos por sô Xico, seu amigo, esse sô Xico Kafundanga, jogador do Botafogo. E enquanto o preso, sua figura alta e magra, se instala no pensa-mento do avô, miúdo Zito pensa que vai deixar de fazer claque no Académico. Um clube que tem Xico, seu amigo, é que ele faz claque!
E nessa tarde, cinco horas, o contínuo Francisco João, da secção de contabilidade, pediu licença ao chefe e saiu da Companhia mais cedo, dirigindo-se para o largo dos Correios, onde apanhou o maximbombo da Samba.