O rio

DA MINHA CASA VEJO O RIO. É um rio de águas escuras e pesadas, mas quando lhe toca o sol — quando o sol lhe toca de uma certa maneira — cintila como se fosse de prata. Na época em que se deram os casos que aqui me propus relatar, ocorreu-me, vendo correr o mistério destas águas, que talvez debaixo delas haja um outro rio e que nas suas margens se alongue uma vila como a nossa. Os afogados, era isso o que então pensava, podiam ser habitantes dessa outra vila. Não é uma ideia assim tão louca: há muitos anos apareceu aqui pelo Dondo um espanhol cujo ofício, segundo gostava de explicar, era descobrir cidades ocultas debaixo da terra. Na Grécia, disse-me ele, uma equipa de estudiosos havia já despido dos seus mantos de terra vários conjuntos de habitações ciclópicas, com todos os seus habitantes, e também em Espanha se descobrira e estava desenterrando uma destas cidades.

Para Angelina, os afogados eram quiandas adormecidas, presságio de enorme desgraça. Já na beata opinião de nga Xixiquinha-riá-Cachongo eram, isso sim, anjos anunciadores, mensageiros do Apocalipse. No que o major concordava, discordando: anjos seriam e anunciadores também, talvez até exterminadores, mas haviam chegado ao Dondo atrasados de muitos dias. «O mundo acabou faz tempo», dizia, «mas os anjos morreram todos antes de chegarem aqui!»

O major era no Dondo a única pessoa a quem não parecia preocupar a chegada do século XX e os claríssimos sinais de que o mundo estava, de facto, próximo do fim. Através dos viajantes, dos escassos viajantes arrastados até à vila pelos volúveis, viúvos, ventos do sertão, podíamos seguir a delirante multiplicação desses sinais: eram os filhos que se voltavam contra os pais, as esposas contra os maridos, os pobres contra os ricos e vice-versa; eram os homens que se tinham posto a voar, imitando os pássaros, e a navegar por debaixo das águas, e a profanar montanhas, florestas e desertos, e a capturar em máquinas complexas as forças da Natureza, e a domesticar essas forças.

Albérico Santoni tinha mesmo uma tese que explicava, segundo ele, todo o assombroso pesadelo dos afogados: «Os afogados são simplesmente gentio de Cambambe», afirmava para quem o quisesse ouvir. «Devem ter tentado atravessar o rio numa dessas barcaças de troncos de mafumeira, o que naquela zona e nesta altura do ano é coisa muito difícil. Há demasiados rápidos e com as chuvas o rio é imprevisível. Então a barcaça virou-se e os homens perderam-se nas águas.»

Quipangala troçava da ideia: «Gentio de Cambambe? De facto, gente com aquele aspeto só mesmo de Cambambe. Ninguém ignora que em Cambambe só vivem fantasmas!…»

E nisto tinha razão. Cambambe, a única povoação a montante do Dondo, há muito que estava abandonada. Em 1584, uma expedição comandada por Paulo Dias de Novais galgou pesadamente o Quanza até chegar ali, iludida por uma lenda que dava como certa a existência naquela região de fabulosas minas de prata. Nunca os portugueses encontraram sinais das ditas minas mas, em contrapartida, fundaram um próspero negócio de escravatura e com isso lançaram as bases do que havia de ser Angola, nossa mãe dolorosa e ofendida. Acima da nossa vila grandes quedas de água impedem a navegabilidade do rio, e por isso a feira de Cambambe foi perdendo prestígio em favor do Dondo; no princípio do século já pouco mais persistia nela do que as ruínas de um velho presídio. Quipangala, portanto, estava certo: se os afogados vieram de Cambambe então eram fantasmas. «De resto como nós», acrescentou ainda Quipangala, mas ninguém lhe deu resposta.

Isto aconteceu na loja dos três Bentos, local onde ao fim da tarde nos costumávamos reunir para beber um copo, jogar às cartas ou ao xadrez e conversar sobre o estado provável do mundo. Lembro-me como se fosse agora: estavam todos a olhar o rio e nenhum deles tinha olhos.

Alguém lançou então o nome de Joãozinho Maria; outro falou em Jesus Mussoco, um terceiro murmurou «Feiticeiros. Filhos de feiticeiros». Fez-se maior o silêncio. E sempre os mesmos rostos sem olhos voltados para as águas turvas do rio. «E o que são isto senão feitiçarias?», perguntou uma voz. «Obra de feiticeiros.»