O fim do mundo

QUANDO O MAJOR SAIU FUI LAVAR AS MÃOS E O ROSTO, mudei de fato e saí também, tomando o caminho de Cambuze, onde Quipangala tinha a sua casa. Não é que estivesse muito preocupado com as palavras de Albérico, mas pelo sim pelo não, achei que era melhor prevenir o professor. Encontrei-o muito desanimado, às voltas com um par de sapatos novos. Tinha-os mandado vir de Luanda mas, porque lhe apertavam os pés, fizera germinar dentro deles grãozinhos de milho. Sorte madrasta: os sapatos haviam crescido tanto que só para um infeliz com elefantíase poderiam ter ainda alguma serventia. E Quipangala estava tão desgostoso com aquele desastre doméstico que nem me quis ouvir:

— Que se foda o major! — gritou-me. — O senhor faz ideia de quanto me custaram estes sapatos?

Pobre Quipangala! Nessa noite, quando se dirigia para a vila, para se juntar a nós na loja dos três Bentos, foi atacado por um grupo de quifumbes, que se atiraram a ele ao soco e à paulada, o despiram de toda a sua roupa e o deixaram por fim como morto, escondido entre altos tufos de capim.

Pouco depois disto ter acontecido alguém lançou fogo à fábrica de pólvora de Angelina Santoni, um grande clarão iluminou repentinamente o abismo da noite, as estrelas começaram a girar e a cair e uma prolongada explosão sacudiu a vila, como um tremor de guerra, e nós saímos para a rua chorando e gritando, crentes de que chegara finalmente o fim do mundo. Passaram-se, porém, os primeiros segundos de assombro e de terror, e depois os minutos — aflitos — e depois as horas — ansiosas, expectantes — e do fim do mundo nada, nenhum outro sinal nos chegava. «Desconseguiu passar o rio», disseram algumas vozes, já o céu começara a ganhar alguma cor e o recôndito cântico da noite de vago vagar adormecia.

E então entrou correndo pelos lados do Cambuze um monangamba, a quem chamavam Lambuzado, que tinha por função acender e apagar os candeeiros da vila. Vinha perdido de medo, clamando por ajuda aos berros: «Akueti é! Óuo ala u bixila!»

«Acudam! Acudam!», gritava. «Eles estão a chegar! Eles os afogados!» E como era ainda muito de madrugada e a luz do sol rasa e rara, as pessoas deitaram os olhos para o horizonte e o que viram foi uma cacimba baixa e por dentro dela, de facto, sombras semoventes. A brisa agitando palmeiras? Feras? Apenas a rasa luz do sol iluminando por detrás o triste nevoeiro?

Não. Nada disso: afogados. Afogados às centenas, aos milhares, às centenas de milhares, foi o que elas viram. Ou melhor, aquilo que julgaram ver.

Beltrão Pena e José Vinte e Dois, sobrinho do primeiro, saíram para a rua de carabinas na mão, comandando um magote de criados, uns armados de facões, outros de machetes ou de lazarinas, todos fazendo muito barulho para afugentar o medo. Não demoraram a descobrir aquilo que tanto tinha assustado o Lambuzado: meio escondido entre altos tufos de capim, o corpo de arame do infeliz Quipangala, assim despido, roxo e tumefacto, tinha sem dúvida a mesma sólida e desesperada incoerência do de um dos afogados.