A primeira morte de Jesus Mussoco

DESMANCHAVA-SE O DIA EM TONS DE VERMELHO quando a praça se começou a encher de muito povo clamando contra Jesus Mussoco. O major apareceu no meio da gritaria e levantando os braços pediu silêncio. O seu rosto estava impassível mas pela forma como levantou ambos os braços percebia-se a sua inquietação. Quando finalmente se fez silêncio, Albérico Santoni ergueu a voz e disse que sim, que sim senhor, que ele próprio iria prender o feiticeiro. E escolhendo uma trintena de homens meteu-se pela noite.

Ao princípio devia estar cheio de dúvidas, mas depois, à medida que caminhava, foi-se enchendo o seu coração de um grande vento de cólera e quando chegou à margem do rio estava capaz de tudo, porque não podia mais com o mistério dos afogados e a loucura que estava devorando o Dondo e sobretudo não podia mais com a ruína dos seus sonhos, com o desdém de Angelina, com a certeza de que a vida não tinha um rumo, nem nunca tivera e de que tudo aquilo por que sempre lutara valia menos que uma tarde de sol.

A partir daqui torna-se difícil saber ao certo como as coisas se passaram. Segundo o major, e os que seguiam com ele, Mussoco atacou-os a tiro antes mesmo de lhe ter sido dada voz de prisão. Há até quem afirme que o rapaz estava acompanhado por um numeroso grupo de macacos, com os quais comunicava numa língua obtusa, e que muitos deles vinham armados de lazarinas e outros de paus e de pedras. Mussoco teria conseguido ferir um dos homens e depois metera-se pela floresta, seguido de perto por uma gritaria imensa.

O major nunca me quis explicar estes casos, mas eu acabei por saber de tudo através do velho Pratas. Foi num desses entardeceres de águas mortas, quando o tempo parece adormecido e a humidade é tanta que os peixes sobem do rio e se põem a espreitar como assombrações prateadas pelas frinchas das janelas, e as almas se deslocam dos corpos, e as palavras saem sozinhas de dentro das bocas fechadas, porque nessas horas atónitas é como se nos víssemos através de um sonho e portanto nada do que digamos parece ter sido dito por nós. Confidenciou-me pois o velho Pratas que o major perdera totalmente o controlo dos homens: «Mussoco meteu-se por dentro da floresta e nós não fomos capazes de o encontrar. Então alguém se lembrou do corpo de José Maria e estávamos todos tão exaltados que assaltámos a casa, pegámos nele e o crucificámos, junto com o de um grande macaco que tínhamos matado durante a primeira troca de tiros.»

Estavam nisto de profanar os corpos quando Mussoco apareceu defronte do horror, desarmado e mudo e olhando os homens como se nada tivesse a temer. O velho Pratas, coitado, vivia com a memória desse instante: «Pôs-se diante de nós com uma cara de anjo, como se tivesse chegado de muito longe e não conhecesse ninguém… O luar dava-lhe em cheio no rosto… E então um de nós gritou qualquer coisa e no momento seguinte enchemos-lhe o peito de chumbo.»

Puseram-lhe tanto chumbo dentro do corpo que quando o quiseram levantar não foram capazes e tiveram de lhe amarrar uma corda aos pés, e de o arrastar pelo chão, como se faz aos troncos das grandes árvores. Mas conseguiram depois prendê-lo a uma cruz e a muito custo ergueram-na entre as outras duas.