O cognome de Gately na infância e durante os anos da escola pública era Goi, ou Goizinho, ou Goizonço etc., do acrônimo GOI, “Gigante Otário Indestrutível”. Isso foi na North Shore de Boston, principalmente em Beverly e Salem. A cabeça dele era imensa, desde menininho. Quando ele chegou à puberdade com doze anos a cabeça dele já parecia ter quase um metro de largura. Um capacete de futebol americano normal parecia um gorrinho nele. Seus técnicos precisavam encomendar capacetes especiais. Gately valia o custo. Todos os técnicos depois da 6a série lhe disseram que ele ia parar num time universitário da Primeira Divisão se se esforçasse e mantivesse a meta em mente. Lembranças de meia dúzia de técnicos sem-pescoço, corta-baratos e pré-infartados se condensam todas em torno de uma ênfase enrouquecida em se esforçar e em previsões de um futuro ilimitado para Don G., Goizinho G., bem até ele largar a escola no segundo ano do colegial.
Gately jogava de duas maneiras — de fullback no ataque e de zagueiro lateral na defesa. Ele tinha tamanho para compor a linha de defesa, mas sua velocidade seria desperdiçada ali. Já com 104 quilos e levantando bem mais que isso, Gately tinha marcado 4.4 nas 40 jardas na 7a série, e a lenda dizia que o técnico da Escola Primária Beverly correu ainda mais que isso pra ir se masturbar em cima do cronômetro no vestiário. Sua maior vantagem era a cabeça gigante. Do Gately. A cabeça era indestrutível. Quando precisavam ganhar jardas, eles tentavam isolar Gately em cima de um só zagueiro e lhe passavam a bola pra ele baixar a cabeça e atacar, de olhos cravados na grama. O topo do capacete especial dele era como o saca-boi de uma locomotiva vindo na tua direção. Defensores, ombreiras, capacetes e chuteiras saíam quicando daquela cabeça, muitas vezes em direções diferentes. E a cabeça era destemida. Era como se ela não tivesse terminações nervosas ou receptores de dor ou sei lá o quê. Gately divertia os companheiros de time deixando eles abrirem e fecharem portas de elevador na cabeça. Ele deixava as pessoas quebrarem coisas em cima da cabeça — lancheiras, bandejas de cantina, estojos de violino de nerdzinhos quatro-olhos, tacos de lacrosse. Com treze anos ele nunca tinha que pagar cervejas: ele apostava um engradado com algum carinha que aguentava uma pancada com este ou aquele objeto na cabeça. A orelha esquerda dele ficou permanentemente meio roída por causa dos impactos das portas de elevador, e Gately prefere um corte de cabelo tigelinha, meio Príncipe Valente com os lados mais compridos pra ajudar a cobrir a orelha deformada. Um zigoma ainda tem uma plaquinha violácea e encovada de quando um menino de North Reading numa festa na 10a série apostou um engradado grande com ele numa pancada com uma meia cheia de moedinhas e aí acertou embaixo do olho em vez de na cabeça. Todo o elenco de atacantes de Beverly foi necessário pra arrancar Gately do que sobrou do carinha. A opinião juvenil geral sobre Gately era que ele era totalmente boa-praça, tranquilão e simpático até certo ponto mas que se você passasse desse ponto com ele era melhor você conseguir fazer menos que 4.4 nas 40.
Ele sempre viveu meio que entre os meninos. Ele tinha uma ferocidade animada que assustava as meninas. E ele não fazia ideia de como lidar com as meninas a não ser tentando impressioná-las deixando que olhassem quando alguém fazia alguma coisa com a cabeça dele. Ele nunca foi o que se pudesse chamar de um sucesso feminino. Nas festas ele era sempre o centro de um grupo que bebia em vez de dançar.
Era surpreendente, talvez, dado o tamanho e a situação doméstica de Gately, que ele não fosse um bully. Ele não era bondoso nem heroico nem um defensor dos fracos; não que ele entrasse bondosamente em cena para proteger os nerds e os deslocados das predações dos meninos que eram mesmo bullies. Ele simplesmente não tinha interesse em brutalizar os fracos. Ainda não está claro pra ele se isso era um mérito para ele ou não. As coisas podiam ter sido diferentes se o PN tivesse dado umas pancadas em Gately em vez de concentrar toda a sua atenção numa sra. G. progressivamente mais fraca.
Ele fumou o primeiro charo com nove anos, um baseadinho duro e fino que nem uma agulha, comprado de uns negros do colegial e fumado com três outros jogadores de futebol da escola numa cabana de férias vaga de que um deles tinha a chave, assistindo na TV aberta uns negros surtando numa L.A., CA, em chamas depois de alguém ter feito um vídeo com uns dos Homens sentando o cacete pesado num negão. Aí o primeiro porre de verdade uns meses mais tarde, depois que ele e os jogadores começaram a andar com um cara da Orkin que gostava de deixar os meninos todos tortos de suco de laranja com vodca e que usava camisa marrom e coturno nas horas vagas e lhes dava altas palestras sobre o ZOG e The Turner Diaries enquanto eles bebiam o suquinho alcoólico que ele pagava e olhavam pra ele com uma cara neutra e reviravam os olhos um pro outro. Logo nenhum jogador com quem Gately andava estava interessado em outra coisa que não fosse tentar ficar chapado e fazer concursos de mijo e de air-guitar e falar em termos teóricos sobre dar um X numas minas da North Shore com aqueles cabelões. Todos eles tinham lá as suas situações domésticas também. Gately era o único verdadeiramente dedicado ao futebol, e isso era provavelmente só porque tinham lhe dito repetidamente que ele tinha talento de verdade e futuros ilimitados. Ele foi classificado como portador de Déficit de Atenção e esteve em Educação Especial desde a escolinha, com Déficits particularmente em “Artes da Linguagem”, mas isso era parcialmente porque a sra. G. mal sabia ler e Gately não estava interessado em fazer ela se sentir pior. E mas não rolava Déficit nenhum na atenção que ele prestava na bola, ou num chope gelado, ou nos sucos com vodca, ou nos charos de alto teor de resina, ou especialmente na farmacologia aplicada, não depois de ter tomado o seu primeiro Mandrix362 com treze anos.
Exatamente como toda a memória de Gately da sua entrada no mundo de vodcas e marijuanas tende a confluir para uma única lembrança de mijar suco de laranja no oceano Atlântico (ele, os jogadores e os bullies toscos e cruéis com quem ele festava tomando quase um litro de suco de laranja de uma só vez de deixar a garganta quente e ficando com água até os tornozelos em cima da areia grossa de uma praia da North Shore, de cara para o leste e soltando longos arcos de um xixi amarelo post-it nas ondas velozes que entravam e espumavam em volta dos pés deles escuma quente e tinta de amarelo-mijo — como cuspir contra o vento — Gately no púlpito tinha começado a dizer que estava se mijando desde o começo, com o álcool), bem do mesmo jeito, todos os anos antes dele descobrir os narcóticos orais, todo o período dos treze aos quinze em que ele era um devoto do Mandrix e da cerveja Hefenreffer desmorona e se acumula sob o que ele ainda lembra como “O ataque das calçadas assassinas”. O Mandrix e a Hefenreffer também marcaram a entrada de Gately num grupo social mais sinistro e menos atlético da EPB, um de cujos membros era Trent Kite,363 um nerdzinho informático de quatro costados, sem queixo e com nariz de tapir, e basicamente o último fã fanático do Grateful Dead com menos de quarenta anos na Costa Leste dos EU, cujo lugar de honra no sinistro grupo junky da Escola Primária Beverly se devia inteiramente ao seu talento para transformar a cozinha da casa de quaisquer pais que estivessem de férias num laboratório farmacêutico rudimentar, usar tipo potes de molho de churrasco como balões de Erlenmeyer e fornos de micro-ondas para ciclizar OH e carbono em compostos de três anéis, sintetizar compostos metilenodióxi-psicodélicos364 a partir de noz-moscada e óleo de sassafrás, éter a partir de fluido de acender lareira, metanfetamina a partir de triptofano e l-histidina, às vezes usando apenas um fogão comum e o equipamento culinário parental, capaz até de destilar concentrações usáveis de tetraidrofurano a partir de Limpador de Cano de PVC — que naquela época muito boa sorte pra tentar encomendar tetraidrofurano de qualquer empresa de produtos químicos nos 48 contin./6 províncias sem receber uma visitinha imediata de uns caras do DEA com terninhos de três peças e óculos espelhados — e aí usar o tetraidrofurano e o etanol e qualquer catalisador de ligação proteica pra transformar o bom e simples Difenidrin numa coisa que estava a uma mólecula de H3C de distância de virar a boa e velha metaqualona bifásica, vulgo o intrépido Mandrix. Kite chamava os seus isótopos de Mandrix de “Mandrakes”, e eles eram muito estimados pelo Goizinho G. de 13-15 anos e pelo grupo sinistro, corcovado e de cabelos espetados com quem ele tomava Mandrix e Mandrakes, acompanhados de umas Hefenreffer, o que resultava numa espécie de semiapagão mnemônico em que todo aquele intervalo de dois anos — o mesmo intervalo durante o qual o ex-PN encontrou outra pessoa, uma divorciada de Newburyport que aparentemente resistia mais animadamente às surras do que a sra. G., e levantou acampamento com o seu Ford coberto de adesivos com sua sacola e casaco de marujo — o período todo se tornou na lembrança sóbria de Gately apenas a vaga era do Ataque das calçadas assassinas. Mandrixes e Hefenreffers grandes despertavam Gately e os seus novos drugues para a má vontade normalmente-dormente-mas-aparentemente-sempre-à-espreita de calçadas públicas de aparência inocente em toda parte. Você não tinha que ser o cerebrudo do Trent Kite pra sacar a equação (Mandrix) + (nem tanta cerveja assim) = tomar uma bifa da calçada mais próxima — tipo você andando inocentemente pela calçada e do meio do nada a calçada se levanta pra dar na tua cara: SPOF. Acontecia o tempo todo, caralho. Fazia o pessoalzinho todo reclamar quando tinha que ir a pé pra algum lugar depois dos Mandrakes já que eles ainda não tinham carteira, o que te dá uma ideia do QI total que estava metido nessa questão dos ataques. Uma minúscula plaquinha no olho esquerdo e o que parece um furinho no queixo são as únicas heranças que Gately traz do período que antecedeu a sua passagem para o Percocet, que uma vantagem de se afundar mais nos narcóticos orais era que Percocet + Hefenreffer não te permitiam o grau de mobilidade em posição ereta que te tornava vulnerável à má vontade sempre-à-espreita das calçadas.
Era incrível que nada disso parecesse prejudicar muito a performance de Gately no futebol, mas também ele era tão devoto do futebol quanto de depressivos orais do SNC. Pelo menos por algum tempo. Ele tinha regras pessoais bem disciplinadas naquela época. Absorvia Substâncias só à noite, depois dos treinos. Nem mesmo uma fração de chope entre 0900h e 1800h durante as temporadas de treino e de jogos, e ele se conformava com apenas um charinho nas noites de quinta-feira antes dos jogos propriamente ditos. Durante a temporada de futebol ele se governava com mão de ferro até o pôr do sol e aí se lançava à mercê das calçadas e do zumbido sonolento. Ele usava as aulas para compensar as horas de sono REM. No seu primeiro ano do colegial ele já estava começando no time dos Minutemen da Beverly-Salem e quase sendo expulso academicamente. Quase todos os membros do grupo sinistro com que ele andava antes tinham sido expulsos por vadiagem ou tráfico, ou coisa pior, já no segundo ano. Gately continuou se aguentando ali até os dezessete.
Mas Mandrix, Mandrake e Percocet são umas coisas letais em termos de lição-de-casa, especialmente quando acompanhados de uma Hefenreffer, e extraespecilamente se você é academicamente ambivalente e classificado como vítima de TDA e já está empregando cada partícula da tua autodisciplina pra proteger o futebol das Substâncias. E — infelizmente — o colegial é totalmente nada a ver com a educação superior em termos da influência dos técnicos dos esportes de maior visibilidade sobre os professores, no que se refere a atletas e notas. Kite conseguiu fazer Gately passar pela matemática e pelas aulas de reforço de ciências, e a professora de francês estava sendo comida pelo Coordenador Ofensivo bronzeado e seboso dos Minutemen até os seus olhinhos estrábicos revirarem em nome de Gately e de um beque semirretardado. Mas a porra do inglês simplesmente acabava com ele, Gately. Todos os quatro professores de inglês que o Dep. Esportivo tentou colocar pro Gately tinham lá essa ideia meio sieg-heil de que de alguma maneira seria cruel passar um garoto que não conseguia dar conta da matéria. E o Dep. Esportivo apontar pra eles que Gately tinha uma situação especialmente delicada em casa e que reprovar Gately e torná-lo inselecionável para o futebol eliminaria a sua única razão para pelo menos ficar na escola — isso tudo foi, tipo, em vão. Inglês era uma situação tipo tudo-ou-nada, o que ele então chamou de o seu “Oterlu”. Os exames finais ele mais ou menos tirava de letra; o técnico de futebol tinha vários nerds contratados. Mas os exames feitos em sala e as provas acabavam com Gately, que simplesmente não tinha mais disposição restante depois do pôr do sol para escolher entre o explosivamente cacete Ethan From e o Mandrake com Hefenreffer. Fora que a essa altura autoridades de três escolas diferentes já o tinham convencido de que ele era basicamente burro mesmo. Mas principalmente eram as Substâncias. Teve um nerd tutor de inglês a serviço do Dep. de Esporte da B-S que passou todo um março de tardes do segundo de ano na companhia de Gately, e quando a Páscoa chegou o menino estava pesando quarenta e três quilos, com um piercing no nariz, tremores nas mãos e foi colocado pelos pais desnorteados e funcionais numa instituição de reabilitação tipo intervenção-juvenil, onde a primeira semana inteira da Abstinência do nerd se passou num cantinho recitando o Uivo em inglês chauceriano em altos brados. Gately reprovou em Redação em maio do segundo ano e perdeu a oportunidade de ser selecionado no outono e saiu da escola para preservar a sua temporada no time júnior. E mas aí, sem a única outra coisa a que se devotava, o freio-de-mão psíquico estava solto, e o décimo sexto ano de Gately ainda é basicamente um branco-cinzento, a não ser pelo novo sofá televisivo da mãe, de chintz vermelho, e também por ele ter conhecido um assistente de farmacêutico tolerante na Rite-Aid com um eczema desfigurante e sérias dívidas de jogo. Fora umas lembranças de um terrível prurido retroftálmico e de uma dieta básica de rango de loja de conveniência, fora os vegetais do copo de vodca da mãe, enquanto ela dormia. Quando ele finalmente voltou para o seu segundo ano de aulas e primeiro ano de futebol no colegial com dezessete e pesando 128 quilos, Gately estava enervado, flácido, aparentemente narcoléptico e num ritmo de dependência tão inflexível que precisava de 15 mg do bom e velho cloridrato de oxicodona que tirava do frasco de Tylenol que carregava no bolso de três em três horas para evitar os tremores. Ele era como um gatinho imenso e confuso lá no campo — o técnico fez ele passar por tomografias, com medo de esclerose múltipla ou da doença de Lou Gehrig — e até a versão em quadrinhos de Ethan From agora estava além da sua capacidade; e o bom e velho Kite tinha sumido já naquele último setembro do Tempo Insubsidiado, tendo sido aceito adiantadamente com uma bolsa integral para estudar Ciência da Computação na U. Salem State, o que significava que Gately agora estava por conta própria na matemática e na química de emergência. Para remate dos males, Gately perdeu a posição de titular no terceiro jogo para um calourão grande de olhos límpidos que o técnico disse que tinha um potencial quase ilimitado. Aí a sra. Gately sofreu a sua hemorragia cirrótica e a coisa do sangue cerebral no fim de outubro, logo antes da semana de provas em que Gately estava se preparando para ser reprovado. Uns caras com cara de tédio e roupas brancas de algodão sopraram bolas azuis e a meteram na traseira de uma ambulância bonachona sem sirenes para levá-la primeiro ao hospital e aí para uma ILP365 do Sistema de Saúde lá do outro lado de Yirrell Beach em Pt. Shirley. A parte de trás dos olhos de Gately estava coçando demais até pra ele conseguir ficar parado lá nos degraus pingados de vermelho da varanda e enxergar ou dar adios. O primeiro careta que ele fumou na vida foi naquele dia, um longo de um maço pela metade dos genéricos da mãe, que ela deixou. Ele nunca nem voltou à escola pra esvaziar os armários. Ele nunca mais jogou futebol oficialmente.
Eu devo ter caído no sono. Mais umas cabeças entraram, esperaram por uma resposta e saíram. Eu posso ter apagado. Me ocorreu que eu não precisava comer se não estava com fome. Isso se apresentou quase como uma revelação. Eu não tinha fome havia mais de uma semana. Eu conseguia lembrar de quando estava sempre com fome, constantemente.
Aí num dado momento a cabeça do Pemulis apareceu na porta, com aquele estranho topete matinal torres-gêmeas balançando no ar enquanto ele olhava pra trás pro corredor por cima de cada ombro. O olho direito dele estava ou trêmulo ou inchado por causa do sono; alguma coisa estava errada com aquele olho.
“Mmmiallou”, ele disse.
Eu fingi proteger meus olhos da luz. “Salve lá, desconhecido.”
Não é o estilo do Pemulis pedir desculpas ou se explicar ou se preocupar que você possa pensar mal dele. Nisso ele me lembrava o Mario. Essa falta de insegurança quase aristocrática não combina direito com o estropiamento neurastênico que ele sofre em quadra.
“Qualé aí?”, ele disse, sem se afastar da porta.
Eu podia antever a minha pergunta de onde ele tinha se metido a semana toda levando a tantas respostas possíveis diferentes e a perguntas adicionais que a perspectiva era quase acachapante, tão enervante que eu mal conseguia dizer que estava só ali deitado no chão.
“Deitado aqui, só isso”, eu lhe disse.
“Foi o que me disseram”, ele disse. “O Petropolitano mencionou certa histeria.”
Era quase impossível dar de ombros deitado em decúbito dorsal no carpete grosso. “Veja você mesmo”, eu disse.
Pemulis entrou de vez. Ele se tornou a única coisa dentro daquele cômodo que se compreendia como algo basicamente vertical. Ele não estava com a melhor cara do mundo; estava com uma cor feia. Não tinha feito a barba, e uma dúzia de cerdinhas negras se projetava da bola do seu queixo. Ele dava a impressão de estar mascando chiclete mesmo quando não estava mascando chiclete.
Ele disse: “Pensando?”.
“O contrário. Profilaxia doxástica.”
“Se sentindo meio mal?”
“Podia estar pior.” Eu revirei os olhos para ele.
Ele soltou uma abrupta oclusão glotal. Ele se moveu para a periferia do meu campo visual e se encaixou na emenda das duas paredes atrás de mim; eu ouvi que ele deslizava para adotar a postura agachada com apoio dorsal de que às vezes gostava.
O Petropolitano era Petropolis Kahn. Eu estava pensando na palestra cinematográfica final de Homens de boa aparência em pequenos cômodos inteligentes… e aí no infortúnio de C.T. no enterro de Sipróprio. A Mães fez enterrarem Sipróprio na sepultura tradicional da família dela na Província de L’Islet. Eu ouvi um gritinho e dois estrondos diretamente acima de mim. As minhas costelas se contraíram e se expandiram.
“Incster?”, Pemulis disse depois de um tempo.
Uma coisa digna de nota foi que o morro de terra em cima de uma sepultura recém-ocupada parece aerado, crescido e macio, que nem um bolo.
“Hal?”, Pemulis disse.
“Jawohl.”
“A gente tem que fazer uma interface tipo superimportante, mano.”
Eu não abri a boca. Havia respostas potenciais em excesso, tanto espirituosas quanto francas. Eu podia ouvir os topetes de Pemulis se esfregando em cada parede enquanto ele olhava para os dois lados, e o tênue som de um zíper pequeno com que alguém brincava.
“Eu estou aqui pensando que a gente podia ir pra algum lugar discreto e tipo interfacear legal.”
“Eu sou um antena horizontal supersintonizada em você bem aqui mesmo.”
“Eu estava dizendo que a gente podia ir alhures.”
“Agora essa pressa toda, então?” Eu estava tentando fazer uma entonação meio judaico-materna, aquele sobe-desce-sobe melódico. “A semana inteira: não liga, não escreve. E agora me vem com essa pressa toda?”
“Andou vendo a tua Mâmis por aí?”
“Não vi ela a semana inteira. Pode apostar que ela está lá ajudando o C.T. a arrumar um lugar pros jogos.” Parei. “Pra dizer a verdade, ele também eu não vi a semana inteira”, eu disse.
“O Eskhaton não vai rolar”, Pemulis disse. “O mapa está todo ferrado lá fora.”
“A gente vai receber algum anúncio sobre os carinhas do Québec daqui a pouquinho, eu estou sentindo”, eu disse. “Eu estou supersintonizado aqui nessa posição.”
“Mas que tal a gente pular o análogo de salsicha e dar um pulinho lá no Steak & e Sundae pra comer.”
Veio uma pausa que era de esperar enquanto eu rodava uma árvore de reações. Pemulis estava zipando e dezipando alguma coisa com um zíper curto. Eu não conseguia decidir. Finalmente tive que escolher quase aleatoriamente. “Eu estou tentando não frequentar lugares com um & comercial no nome.”
“Escuta só.” Eu ouvi os joelhos dele rangerem no que ele se inclinava na direção do alto da minha cabeça. “Sobre o tu-savez-quoi…”
“O Pedê Pemê Pezê. O bacanal sintético. Definitivamente cancelado, Mike. O mapa está mais do que ferrado.”
“Isso é uma parte dos motivos da nossa interface, se você literalmente se mexer daí.”
Eu passei um minuto inteiro vendo o copo da NASA cair e subir. “Nem comece, M.M.”
“Que começo?”
“A gente está num hiato, lembra. A gente está vivendo que nem muçulmanos xiitas nesses trinta dias que você miraculosamente loroteou o cara pra ele dar pra gente.”
“Não foi a lorota que conseguiu isso aí, Inc, aí é que está.”
“E agora, o quê, vinte dias a mais. A gente vai produzir uma urina igual de nenê de mulá, a gente concordou.”
“Não é isso…”, o Pemulis começou.
Eu peidei, mas não produzi muito barulho. Eu estava de saco cheio. Não conseguia lembrar quando o Pemulis tinha me deixado de saco cheio. “E eu não preciso que você me venha com uma retórica-de-tentação”, eu disse.
Keith Freer apareceu na porta, apoiado no batente com os braços nus cruzados. Ele ainda estava usando o estranho macacão com que tinha dormido, que o fazia parecer alguém que rasgava listas telefônicas ao meio num showzinho de circo.
“Será que alguém tem alguma explicação pra ter carne humana na janela do corredor do andar de cima?”, ele disse.
“A gente está conversando aqui”, o Pemulis lhe disse.
Eu meio que sentei. “Carne?”
Freer me olhou lá de cima. “Eu não acho que isso seja motivo pra rir, Hal. Eu juro por Deus caralho que tem uma tripa de carne de testa humana na janela do corredor, e o que parece ser duas sobrancelhas e pedacinhos de nariz. E agora o Vara-Paul disse lá no saguão que viram o Stice saindo da enfermaria usando uma coisa que parecia de um filme do Zorro.”
O Pemulis estava completamente vertical, de pé de novo; deu pra ouvir os joelhos dele no que ele levantou. “É tipo um tête-à-tête aqui, mano. A gente está aqui malocado mano a…”
“O Stice ficou grudado na janela”, eu expliquei, deitando de novo de costas. “O Kenkle e o Brandt iam soltar ele com uma baldada faxineiral de água morna.”
O Pemulis disse: “Como é que alguém fica grudado numa janela?”.
“Bom pelo que parece parece que eles desgrudaram foi metade da cara dele da cabeça”, o Freer disse, passando a mão na própria testa e estremecendo um pouco.
O focinho porcino de Kieran McKenna apareceu numa fresta sob o braço do Freer. Ele ainda estava com aquela faixa de gaze na cabeça toda por causa do crânio supostamente machucado. “Vocês chegaram a ver o Trevas? O Gopnik disse que ele está parecendo uma pizza de mussarela que alguém arrancou o queijo. O Gopnik disse que o Troeltsch está cobrando doisão pra neguinho ver.” Ele saiu correndo na direção da escada sem esperar uma resposta, com o bolso loucamente tilintante. Freer olhou pro Pemulis e abriu a boca, aí aparentemente reconsiderou e saiu atrás do outro pelo corredor. Nós ouvimos alguns assobios sarcásticos pro macacão do Freer.
Pemulis ressurgiu no alto do meu campo de visão; seu olho direito estava definitivamente tremendo. “É disso que eu estou falando com a coisa de ir pra algum lugar discreto. Quando foi que eu te pedi instantemente pra dialogar, Inc?”
“Com certeza não nos últimos dias, Mike, isso é certo.”
Houve uma pausa dilatada. Eu ergui as mãos diante do rosto e fiquei olhando o formato delas contra as luzes indiretas.
O Pemulis finalmente disse: “Bom, o que eu quero é comer antes de ter que ver o Stice sem a porra da testa”.
“Coma uma imitação por mim”, eu disse. “Me avise se rolar alguma coisa sobre o amistoso. Eu vou comer se tiver que jogar.”
O Pemulis lambeu a palma da mão e tentou fazer os seus topetes se comportarem. Do meu ponto de vista ali ele estava bem no alto e de cabeça pra baixo. “Então você vai levantar, subir, se vestir e ficar num pé só com aquela ópera tocando em algum momento? Porque eu podia comer e subir depois. A gente pode dizer pro Mario que precisa de um mano-à-tête.”
Agora eu estava formando uma jaula com as mãos e olhando a luz atravessar aquele objeto enquanto eu o rotacionava. “Cê me faz um favor? Pegue Homens de boa aparência em pequenos cômodos inteligentes que utilizam cada centímetro do espaço disponível com uma eficiência estarrecedora pra mim. É tipo o décimo segundo cartucho da esquerda pra direita na terceira prateleira de cima pra baixo na estante de entretenimento. Põe em coisa de 2300, 2350 de repente? Tipo os últimos cinco minutos mais ou menos.”
“Terceira prateleira de cima pra baixo”, eu disse enquanto ele olhava, batendo um pé. “Eles juntaram todos os de Sipróprio na terceira prateleira.”
Ele ficou procurando. “Fotos de ditadores famosos quando bebês? Diversão mordaz? A fusão anular é nossa inimiga? Eu nem ouvi falar de metade dessas porras do teu pai aqui.”
“É amiga, não inimiga. Ou etiquetaram errado ou borrou. E devia estar em ordem alfabética. Tinha que estar bem do lado de Fluxo na caixa.”
“E eu usando o laboratório do coitado”, o Pemulis disse. Ele botou o cartucho no player e ligou o monitor, com os joelhos estalando de novo quando se agachou pra colocar o filme em 2350. A tela imensa zumbia num tom grave que ascendeu quando ela começou a aquecer, a tela assumindo um aspecto azul leitoso como o do olho de um pássaro morto. Os pés do Pemulis estavam descalços e eu fiquei olhando pros calos dos calcanhares dele. Ele jogou o estojo do cartucho displicentemente num sofá ou poltrona atrás de mim e me olhou de cima. “Que porra que deve ser o tema de Diversão mordaz?”
Eu tentei dar de ombros, lutando contra o atrito do carpete. “Basicamente o que ele diz que é mesmo.” O enterro tinha sido no dia 5 ou 6 de abril em St. Adalbert, uma cidadezinha construída em torno de instalações para armazenagem de tubérculos a menos de cinco km a oeste do Grande Recôncavo. Todo mundo teve que ir de avião via Terra Nova por causa do volume de lançamentos de deslocamento-de-resíduos naquela primavera. E as linhas aéreas comerciais ainda não tinham recebido os dados referentes aos níveis de dioxinas de alta altitude sobre o Recôncavo. As nuvens impediram que a gente visse grandes coisas do litoral de New Brunswick, o que me disseram que foi uma bênção. O que aconteceu no enterro propriamente dito foi simplesmente que uma gaivota circunvolante acertou uma carga branca bem na mosca do ombro do blazer azul do C.T., e que quando ele abriu a boca chocado com a bala no alvo, um grande pássaro de corpo azul entrou na boca dele e foi difícil de extrair. Várias pessoas riram. Não foi nada sério demais ou dramático. A Mães provavelmente riu mais que todo mundo.
O contador do TP pulsava e estalava, e o monitor floresceu. O Pemulis estava usando calça de paraquedista, gorro escocês e óculos sem lentes, mas nada de sapato. O cartucho começou pertinho do que eu queria rever, a palestra climática do protagonista. Paul Anthony Heaven, do alto dos seus cinquenta quilos, agarrado ao púlpito com as duas mãos pra você poder ver que ele não tinha polegares, aquelas meadas tingidas tristemente penteadas pra cima da careca e visíveis porque ele estava com a cabeça abaixada, lendo a palestra no tom monótono e mortiço da academia que Sipróprio adorava de paixão. O tom monótono foi a razão de Sipróprio ter usado Paul Anthony Heaven, um não profissional, oficialmente funcionário de processamento de dados da Ocean Spray, em toda obra que exigisse uma presença mortiça institucional — Paul Anthony Heaven também tinha representado o supervisor ameaçador de Diga adeus ao burocrata, o Comissário Estadual de Praias e Segurança Aquática de Massachusetts de A navegação segura não se dá por acidente e o auditor empresarial parkinsoniano de Civismo de baixa temperatura.
“Assim revela-se que a verdadeira consequência do Dilúvio foi o ressecamento, gerações de hidrofobia em escala pandêmica”, o protagonista lia em voz alta. A jaula, de Peterson, estava passando numa tela grande atrás do púlpito. Diversas tomadas de alunos de graduação com a cabeça em cima da mesa, lendo sua correspondência, fazendo bichinhos de origami, cutucando o rosto com uma concentração vácua, estabeleciam que a palestra climática não estava parecendo tão climática assim para a plateia dentro do filme. “Nós assim nos tornamos, na ausência da morte como fim teleológico, ressecados nós mesmos, privados de certo fluido essencial, aridamente cerebrais, abstratos, conceituais, pouco mais que alucinações de Deus”, o acadêmico lia num rumor mortal, sem que seus olhos jamais saíssem do texto no púlpito. Os críticos de cartuchos-de-arte e os acadêmicos que mencionam a presença frequente de plateias dentro dos filmes de Sipróprio, e argumentam que o fato das plateias serem sempre ou burras ou incapazes de apreciar o que veem ou vítimas de algum macabro revés em termos de entretenimento trai mais do que mera hostilidade de um “auteur” classificado como alguém tecnicamente virtuosístico mas narrativamente chato, desprovido de tramas, estático e não suficientemente interessante — os argumentos desses acadêmicos parecem sólidos até aí, mas eles não explicam o incrível páthos de Paul Anthony Heaven lendo aquela palestra para um grupo de garotos de cara morta que se cutucam e desenham rabiscos à toa, de aviões e genitálias, em seus cadernos universitários pautados, lendo uma merdarada entorpecentemente empolada366 — “Pois ao passo que o clinamen e as tessera se esforçam por reviver ou revisar o ancestral morto, e ao passo que a kenosis e a daemonizatio ajam para reprimir a consciência e a memória do ancestral morto, é, por fim, a askesis artística que representa o embate em si, a batalha-até-a-morte com o morto amado” — num tom monótono tão narcotizante quanto uma voz tumular — e no entanto o tempo todo chorando, Paul Anthony Heaven, enquanto uma sala verticalizada cheia de garotos se ocupa de olhar a correspondência, o professor de estudos cinematográficos não soluçando nem enxugando o nariz na sua manga de tuíde mas silenciosamente chorando, muito inabaladamente, de modo que lágrimas escorrem pelo rosto esquálido de Heaven e se acumulam no seu queixo subapoiado e caem para fora do enquadramento, brilhando leves, abaixo da moldura do púlpito. Aí isso também começou a parecer familiar.
Ele no começo não tinha roubado, casas, o Gately, como drogado de período integral, embora às vezes afanasse pequenos bens de valor dos apartamentos das enfermeiras doidonas que ele X e com quem descolava amostras. Depois que pulou fora da escola, Gately trabalhou período integral para um corretor de apostas da North Shore, um cara que também tinha vários clubes de striptease pela Rte. 1 em Saugus, Branquinho Sorkin, que tinha meio que por acaso ficado amigo dele quando Gately ainda jogava futebol de alto nível. A sua associação profissional com Branquinho Sorkin continuou em meio período mesmo depois que Gately descobriu sua verdadeira vocação para ladrão de residências, embora ele tendesse cada vez mais à criminalidade não violenta, menos exigente.
Mas entre tipo seus dezoito e vinte e três anos, Gately e o supracitado Gene Fackelmann — um viciado em Dilaudid extremamente alto, de ombros encurvados, quadris largos, barriguinha prematura, esquisitamente priapístico e congenitalmente nervosinho, com um bigode morsento que parecia ter uma vida neurológica própria — os dois serviram como tipo agentes do campo do Branquinho Sorkin, pegando as apostas e ligando para transmiti-las para Saugus, entregando os ganhos e cobrando as dívidas. Nunca ficou claro para Gately por que o Branquinho Sorkin era chamado de Branquinho, porque ele passava um tempo do cacete embaixo de umas lâmpadas ultravioleta como parte de um regime esotérico de tratamento contra dor de cabeça em salvas e portanto tinha a coloração constante de meio que tipo um sabonete escuro, com quase a mesma cor e o perfil clássico tipo moeda-de-imperador do alegre dr. paquistanês que tinha dito a Gately no Hospital Nossa Senhora das Mercês em Beverly o quanto Erra Trriste mas a cirrose e o derrame cirrótico da sra. G. tinham-na deixado basicamente no nível neural de uma couve-de-bruxelas e aí lhe dado instruções para usar o transporte público até a ILP de Point Shirley.
Eugene (“Fax”) Fackelmann, que tinha largado o sistema educacional de Lynn, MA, tipo com dez anos, tinha conhecido o Branquinho Sorkin através do mesmo assistente de farmacêutico eczemático e inclinado ao jogo que tinha de início levado Gately a Sorkin. Ninguém chamava mais Gately de Goizinho ou de Dochka. Ele era Don agora, desapelidadamente. Às vezes Donny. Sorkin se referia a Gately e a Fackelmann como as suas Torres Gêmeas. Eles eram mais ou menos os capangas de Sorkin. Só que nada mesmo a ver com os retratos dos capangas dos figurões do mundo do crime no entretenimento popular. Eles não ficavam impassivamente parados flanqueando Sorkin em reuniões na cena do crime nem acendiam o charuto dele nem o chamavam de “chefe” nem nada disso. Eles não eram guarda-costas. Pra dizer a verdade eles não ficavam assim tanto tempo fisicamente perto dele; normalmente eles contatavam Sorkin e o seu escritório e a secretária em Saugus via bipes e telefones celulares.367
E se eles de fato cobravam as dívidas para Sorkin, inclusive as difíceis (especialmente Gately), não é que Gately saísse por aí quebrando rótulas de devedores. Até a ameaça de violência coercitiva era bem rara. Em parte, só o tamanho de Gately e de Fackelmann já bastava para evitar que essas delinquências escapassem ao controle. E em parte o negócio era que todos os envolvidos normalmente se conheciam — Sorkin, os seus apostadores e devedores, Gately e Fackelmann, outros viciados (que às vezes apostam, ou com mais frequência lidavam com Gately e Fackelmann em nome de caras que jogavam), inclusive os caras do esquadrão Antijogo dos Homens da North Shore, muitos dentre os quais também às vezes apostavam com Sorkin porque ele dava um desconto especial de funcionário público para os policiais na sua comissão. Era tudo tipo a comunidade dele. Normalmente o trabalho de Gately nas dívidas não pagas ou nos juros atrasados era ir atrás do devedor em algum bar onde o cara assistia esportes por satélite e simplesmente informar a ele que a dívida estava ameaçando escapar do controle — fazendo que a própria dívida parecesse o delinquente — e que o Branquinho estava preocupado, e combinar algum acordo ou forma de pagamento com o cara. Aí o jovem Gately ia até o banheiro do bar e celularava para o Sorkin e pegava o o.k. dele para fosse qual fosse o acordo a que tinham chegado. Gately era tranquilo e afável e nunca disse palavras duras a ninguém, praticamente. Nem o Branquinho: boa parte dos devedores dele eram fregueses antigos e estáveis, e as linhas de crédito se estendiam por todo o território. Quase todas as raras situações de dívida que pediam tamanho e coerção física envolviam caras com problemas com o jogo, uns caras furtivos e meio patéticos viciados no barato da aposta, que se enfiavam nuns buracos e aí tentavam suicidamente sair com mais apostas, e que apostavam com vários corretores ao mesmo tempo, que mentiam e concordavam com planos de pagamento que não tinham intenção de cumprir, suicidamente apostando que iam conseguir manter todas as suas dívidas no ar até conseguirem se dar bem com a grande vitória que sempre tinham certeza que estava para chegar. Esses sujeitos eram dolorosos, porque normalmente Gately conhecia os devedores e eles se aproveitavam desse fato, imploravam, choramingavam e apertavam tanto o coração de Gately quanto o do Branquinho com histórias daqueles que amavam e de doenças terríveis. Eles ficavam ali sentados olhando nos olhos de Gately e mentiam e acreditavam nas próprias mentiras, e Gately tinha que ir lá telefonar com as mentiras e os dramalhões dos devedores e obter uma decisão explícita de Sorkin sobre acreditar ou não nelas, e o que fazer. Esses sujeitos foram a primeira exposição de Gately ao conceito do vício real e das coisas em que ele pode transformar uma pessoa; ele ainda não tinha feito a conexão desse conceito com as drogas, mesmo, a não ser os caras da coca e os que se picavam tipo profissionalmente, que naquela altura lhe pareciam tão furtivos e patéticos quanto os viciados em jogo, à sua maneira. Esses carinhas de dramalhões e mais uma chance por favor eram também os sujeitos que faziam o Branquinho passar o diabo em termos de emocionalmente, deixando o Sorkin com dores de cabeça em salvas e uma neuralgia craniofacial horrorosa, e a certa altura o Sorkin começou a acrescentar (à aposta original, juros e comissão do delinquente) taxas extras para cobrir sua ingestão de comprimidos de cafergot,368 a luz UV e as visitas à Fundação Nacional de Dor Craniofacial de Enfield, MA. O uso dos punhos tamanho-pernil-assado de Gately e Fackelmann para efetiva coerção mão-na-massa era necessário apenas quando as mentiras e o buraco de um devedor compulsivo ficavam sérios a ponto do Sorkin se ver disposto a perder o cara como cliente no futuro. Meio que a essa altura, o objetivo comercial do Branquinho passava de alguma maneira a ser induzir o devedor viciado a quitar suas dívidas com Sorkin antes do devedor quitar suas dívidas com quaisquer outros corretores com que estivesse metido, o que significava para Sorkin que ele tinha que demonstrar ao vivo e em cores para o devedor que o buraco do Sorkin era o menos agradável de todos e de onde era mais importante sair. Bem-vindas, Torres Gêmeas. A violência precisava ser muitíssimo bem controlada e gradualmente progressiva tipo em estágios. A primeira rodada de incentivização tipo balde-de-água-fria — uma surrinha leve, de repente um ou outro dígito fraturado — normalmente cabia a Gene Fackelmann, não somente porque ele era a Torre Gêmea mais naturalmente cruel e até gostava bastante de colocar um dedinho na porta do carro, mas também porque ele tinha uma contenção que faltava a Gately: Sorkin descobriu que quando Gately começava a agredir fisicamente alguém era como se uma coisa feroz e descontrolada tomasse um tranco dentro daquele cara enorme e começasse a despencar morro abaixo por conta própria, e às vezes Gately não conseguia se fazer parar antes do devedor estar reduzido a uma condição em que não ia conseguir nem levantar a cabeça, que dirá levantar fundos, quando então não só Sorkin tinha que esquecer a dívida como o gigante do Donny ficava tão cheio de culpa e de remorsos que triplicava a ingestão de drogas e virava um inútil total por uma semana. Sorkin aprendeu a usar as suas Torres de maneira a maximizar o poder delas. Fackelmann ficava com o trabalho coercitivo leve da primeira rodada de cobrança de dívidas, mas Gately era melhor que o Fax para negociar pagamentos com os caras de modo a nem precisar chegar à violência. E havia uns certos casos mais duros, uns casos que deixavam Sorkin de cama com estresse craniofacial por dias a fio porque eram uns viciados tão ferrados que ou eles estavam tão atolados em dívidas ou tão afundados em tantos buracos que a crueldade peso-leve de Fackelmann não resolvia a situação. Num ponto extremo de alguns desses casos Sorkin chegava a ponto de se ver disposto a não contar mais não apenas com as futuras apostas do devedor mas também com o dinheiro devido; a certa altura o objetivo era minimizar futuros outros casos difíceis deixando bem claro que B. Sorkin era um corretor em cujo buraco você não podia flagrantemente ficar deitadão por meses seguidos sem sofrer uma desfiguração do caralho no teu mapa. Aqui de novo, nesse tipo de caso o morro interno da ferocidade descontrolada de Gately era superior ao sadismo fácil mas no limite raso de Fackelmann.369
B. Sorkin, como a maioria dos neuróticos psicossomatizantes, era rancoroso com os inimigos e extrageneroso com os amigos. Gately e Fackelmann recebiam 5% cada um da comissão de 10% que Sorkin cobrava de toda aposta, e Sorkin corretava mais de $200000 em toda a North Shore só numa semana de futebol profissional, e para a maioria dos jovens americanos desdiplomados 1000+ por semana pré-milenar garantiria uma vida bem tranquila, mas para a rígida agenda de necessidades físicas de narcóticos das Torres Gêmeas isso não dava nem 60% por semana. Gately e Fackelmann faziam bicos, e por um tempo separadamente — a carreira paralela de Fackelmann com RGs e cheques pessoais criativos, Gately trabalhando como segurança freelancer para grandes jogos de cartas e pequenas entregas de drogas — mas ainda antes deles serem uma dupla de verdade eles compravam como uma unidade, tipo juntos, as suas drogas, fora que bem de vez em quando tinha também o V. Nucci, cuja corda Gately também ocasionalmente segurava em missões claraboísticas em farmácias no meio da noite, sua introdução ao roubo doméstico propriamente dito. O fato de Gately ser um devoto do Percocet e do Bam-Bam e Fackelmann do Dilaudid, possibilitava que eles tivessem um nível elevado de confiança com as posses um do outro. Gately tomava as azuizinhas, que precisavam ser injetadas, mas só quando não tinha nenhum narcótico oral e ele estava tendo que encarar o princípio da Abstinência. Gately temia e desprezava agulhas e morria de medo do Vírus, que naqueles dias estava derrubando picadores pra tudo quanto era lado. Fackelmann cozinhava o pó para Gately, lhe atava o cinto e deixava Gately olhar atentamente enquanto ele rasgava a embalagem de uma seringa novinha e o cartucho da agulha que Fackelmann conseguia com um RG falso para comprar Iletin370 na saúde pública para diabetes mellitus. A pior coisa do Dilaudid para Gately era que a passagem da hidromorfona pela barreira hematoencefálica criava uma terrível alucinação mnemônica de cinco segundos em que ele era um bebezão pantagruélico dentro de um bercinho Fisher-Price XXG num campo de areia sob um céu com nuvens de tempestade que se inflava e retrocedia como um grande pulmão cinzento. Fackelmann afrouxava o cinto, se afastava e ficava vendo os olhos de Gately revirarem enquanto ele começava a suar malarialmente e encarava o céu respirítico imaginário ao mesmo tempo que suas manzorras esganavam o ar à frente exatamente como um bebê sacode as barras do berço. Aí depois de coisa de cinco segundos o Dilaudid atravessava e batia, e o céu parava de respirar e ficava azul. Um sono de Dilaudid deixava Gately mudo e empapado por três horas.
Além da coceira enlouquecedora atrás dos olhos, Fackelmann não gostava de narcóticos orais porque dizia que eles lhe davam uma vontade horrorosa de comer açúcar que o seu peso imenso, corcovado e molão não tolerava encarar. Não exatamente a nau mais veloz da esquadra de Sua Majestade em termos tipo de miolos e tal, Fackelmann resistia quando Gately apontava que o Dilaudid também deixava Fackelmann com uma vontade horrorosa de comer açúcar, assim como praticamente tudo por aí. A verdade pura e simples era que Fackelmann simplesmente gostava pacas de Dilaudid.
Aí o bom e velho Trent Kite tomou um pé na bunda administrativo da Salem State, que lhe informou que ele nunca ia estudar de novo naquele ramo, e Gately trouxe Kite para o grupo, Kite preparou uns Mandrakes das antigas para uma festinha de boas-vindas, Fackelmann apresentou Kite ao Dilaudid versão farmacêutica e Kite achou um novo amigo pra toda a vida, ele disse; e Kite e Fackelmann logo se meteram no golpe de RGs e histórico-de-crédito-e-apartamentos-mobiliados-de-luxo, em que a essa altura Gately se envolvia basicamente só como um hobby, preferindo o roubo descarado e noturno à fraude, que fraude tendia a envolver falar com as pessoas de quem você roubava, o que Gately achava repugnante e meio constrangedor.
Gately estava na Ala de Trauma com uma dor infeccionada terrível, tentando Aguentar entre as ondas de desejo de alívio lembrando uma tarde atordoantemente branca logo depois do Natal, quando Fackelmann e Kite estavam se livrando de uma parte da mobília de um apartamento mobiliado e Gately estava matando tempo no apartamento plastificando umas carteiras de motorista falsas do estado de MA encomendadas às pressas por uns garotos riquinhos da Academia Philips Andover371 para o que acabou sendo a última Véspera de Ano Novo do Tempo Insubsidiado. Ele estava de pé diante de uma tábua de passar roupa no apartamento àquela altura já basicamente desmobiliado, passando a ferro o plástico de autorizações fajutas, vendo a boa e velha U. Boston jogar contra o Clemson no Ração-K-Nina-Magnavox-Seguros-Kemper Forsythia Bowl num HDV desajeitado de primeira geração da InterLace pendurado na parede nua, sendo o monitor de alta definição agora sempre o último item de luxo a ser passado para a frente. A luz do dia de inverno que atravessava as janelas da cobertura era deslumbrante e caía sobre a grande tela plana do monitor e fazia os jogadores parecerem descorados e fantasmáticos. Do outro lado das janelas, lá longe, estava o O. Atlântico, cinza e fosco de sal. O punter da BU era um carinha aqui de Boston que os locutores não paravam de lembrar que tinha simplesmente aparecido num treino e era uma história inspiradora porque nunca tinha participado de nenhum esporte de prestígio até chegar à universidade e agora já era um dos maiores especialistas em punts da história da NCAA, e tinha potencial para ver garantida uma carreira basicamente ilimitada no futebol profissional se se dedicasse e mantivesse sua meta em mente. O punter da BU era dois anos mais novo que Don Gately. Os grandes dígitos de Gately mal se encaixavam em volta do cabo emborrachado do ferro, e ficar dobrado sobre a tábua de passar lhe dava uma dor na parte de baixo das costas, e ele não tinha comido nada que não fosse frito e tivesse saído de uma embalagem de plástico em tipo uma semana, e o fedor do plástico quente sob o ferro era de doer, e a carona quadrada dele ia se derrubando cada vez mais enquanto ele encarava a fantasmática imagem digital do punter até se ver começando a chorar que nem criancinha. Aquilo veio do meio do nada emocional e totalmente de repente, e ele se viu babando pela perda do futebol organizado, seu único talento e seu único outro amor, pela sua própria estupidez e falta de disciplina, aquela porra daquela merda daquele Ethan From, o Sir Hose da Mãe e aquela vegetabilização e o fato dele não ter ido visitar ainda depois de quatro anos, se sentindo de repente pior que a mosca do cocô do cavalo do bandido, parado na frente de plástico quente, quadradinhos de Polaroid e letrinhas adesivas do Dep. de Trâns. para uns caras ricos e louros, sob a chamejante luz do inverno, chorando entre o fedor fraudulento e o vapor das lágrimas. Foi dois dias depois disso que ele foi preso por atacar um leão-de-chácara com o corpo inconsciente de outro leão de chácara, em Danvers, MA, e três meses depois disso que ele foi para a Segurança Mínima de Billerica.
Rumo ao Estoque, com o olho trêmulo e verificando os dois lados atrás de si enquanto vem, dobrando a curva do corredor do Subdormitório B com a sua varinha e o banquinho sólido com forma de frusto, Michael Pemulis vê que pelo menos oito painéis do forro do teto de alguma maneira caíram dos seus vigotes de alumínio e estão no chão, alguns deles quebrados daquele jeito incompleto e tipo dobradiça em que as coisas que contêm tecidos se quebram — inclusive o painel relevante. Não há tênis velho em evidência no piso no que ele empurra os painéis para chantar o banco, com a sua incrivelmente potente lanterninha Bentley-Phelps entre os dentes, olhando para a escuridão por entre a treliça dos givotes.
Dada a histórica propensão do Fac-símile para goles fraudulentos, era impressionante para Gately que ele nunca tivesse ficado sabendo que Fackelmann estava passando fraudulentamente a perna no Branquinho Sorkin de tudo quanto era jeito pequenininho praticamente desde o começo, e nem sequer descobriu também até o golpe nem de longe pequenininho com o Bill Anos-Oitenta e o Bob Anos-Sessenta, que aconteceu durante os três meses em que Gately estava numa condicional que Sorkin tinha generosamente bancado. A essa altura Gately tinha se apaixonado por duas lésbicas viciadas em cocaína farmacêutica que tinha conhecido na academia fazendo abdominais de cabeça pra baixo penduradas na barra (as lésbicas, não Gately, que era estritamente supino, rosca e agachamento). Essas moças vigorosas tinham uma empresa algo intrigante de faxineiras-e-copiadoras-de-chaves-para-roubos-ulteriores em Peabody e Wakefield, e Gately tinha começado a afanar mercadorias pesadas e a passar a mão em veículos 4×4 para elas, roubos de verdade e período-integral, na medida em que o seu gosto até pela ameaça da violência diminuía por conta do remorso dos danos leão-de-chacarais que tinha infligido naquele bar de Danvers depois de apenas sete Hefenreffers e de um comentário inocente sobre a inferioridade dos Minutemen de B-S em relação aos Roughriders de Danvers; e Gately foi deixando uma parcela cada vez maior do trabalho de transferência-e-cobrança de Sorkin para Fackelmann, que a essa altura tinha voltado aos narcóticos orais motivado pelo medo do Vírus e parou de resistir à vontade de comer açúcar que ele associava aos narcóticos orais e ficou tão gordo e tão mole que a frente da camisa dele parecia um acordeão quando ele sentava para comer M&M’s de amendoim e pegava no sono, e agora também para um cara sujeiraça com quem Sorkin recentemente tinha feito amizade e que pôs para trabalhar, um garoto meio punk de cabelo fúcsia lá da Harvard Square com um físico de tronco e uns olhinhos pretos e redondos que não piscavam, um picador de rua à moda antiga conhecido pela alcunha de Bobby C ou simplesmente “C”, e que gostava de machucar os outros, o único viciado em heroína EV que Gately tinha encontrado que realmente preferia a violência, sem nada de lábios, com um cabelo roxo em três grandes torres verticais, uns pedacinhos raspados entre os pelos do antebraço — de viver testando o gume da faca da bota —, uma jaqueta de couro com bem mais zíperes do que jamais seria necessário na vida e um brinco pré-elétrico que pendia comprido e era um crânio que urrava em chamas folheadas a ouro.
Gene Fackelmann estava, afinal, havia anos passando fraudulentamente a perna nas corretagens de apostas do Branquinho de tudo quanto era jeito de que Gately e Kite (segundo o Kite) não sabiam. Normalmente era alguma coisa tipo o Fax pegando as apostas mais tresloucadas com apostadores marginais que o Sorkin não conhecia bem e não passando os dados por telefone para a secretária do Sorkin, e aí, quando o tresloucado perdia, cobrava o grosso e a comissão372 do apostador e mocozava tudo sozinho. Gately tinha achado aquilo depois que descobriu aquilo um risco tipo suicida, já que se algum daqueles tresloucados um dia ganhasse o Fackelmann seria responsável por pagar ao apostador o que ele ganhou do “Branquinho” — o que significava que seria o Sorkin a ouvir as reclamações se o Fackelmann não aparecesse com o $ por conta própria para dar ao apostador — e os custos farmacológicos do grupo todo ali significavam que eles sempre existiam nos limites absolutos da liquidez, pelo menos era o que Gately e Kite (segundo o Kite) sempre acharam. Foi só quando o mapa de Fackelmann tinha sido ao que parecia eliminado de vez e o Kite voltou do seu longo eato e o Gately e o Kite estavam juntando as coisas do falecido Fackelmann para rachar os bens de valor e jogar o resto fora, e Gately encontrou, grudados com durex na parte de baixo do estojo de armazenamento de cartuchos pornográficos de Fackelmann, mais de $22000 em cédulas novinhas da ONAN, só então Gately percebeu que Fackelmann tinha graças a uma férrea determinação mantido guardada uma reserva de pagamento de grosso exatamente para uma possibilidade dessa tipo na-pior-das-hipóteses. Gately rachou esse $ fackelmanniano recém-descoberto com o Trent Kite, e aí mas foi lá e entregou a sua metade ao Sorkin, dizendo que foi tudo que eles encontraram. Não que ele tivesse entregado a sua metade ao Sorkin por algum tipo de medo — Sorkin teria lamentavelmente mandado aquele C e o pessoalzinho homocanadôncio que ele usava desmapearem ele, Gately, também, além de Fackelmann, se suspeitasse que Gately fazia parte do golpe do Fax — mas por uma culpa causada por ter sido tão sem-noção sobre o seu chapa Torre Gêmea ter ferrado o Sorkin depois de o Sorkin ter sido tão neurastenicamente hipergeneroso com os dois, e porque a traição de Fackelmann tinha acabado machucando o Sorkin e lhe causado tanto sofrimento psicossomático que ele tinha passado uma semana inteira de cama em Saugus no escuro com uns oclinhos tipo Cavaleiro Solitário, tomando VO e Cafergot e agarrando o crânio e a face traumatizados, se sentindo traído e abandonado, ele tinha dito, com toda a sua fé abalada no animal humano, ele tinha chorado para Gately no celular, depois que tudo veio à tona. No final das contas, Gately deu a sua metade do $ secreto de Fackelmann a Sorkin basicamente para tentar dar uma animada no Sorkin. Para ele ver que alguém pensava nele. Ele também fez isso pela memória de Fackelmann, que ele estava lamentando a morte horrenda de Fackelmann ao mesmo tempo que o amaldiçoava por ter sido um mentiroso e um rato. Era um período de confusão moral para Don G., e a sua metade do $ post-mortem lhe pareceu o melhor que ele podia fazer em termos de tipo um gesto. Ele não abriu que o Kite estava com toda a outra metade, que o Kite gastou a sua metade do $ em discos piratas do Grateful Dead e numa unidade refrigeradora-semicondutora portátil para a placa mãe do seu DEC 2100 que aumentou a sua capacidade de processamento para 32 mb2 de RAM, praticamente a mesma de uma subestação-disseminadora da InterLace ou de uma Central de telefonia celular da Bell NNI; ainda que não tenha levado dois meses para ele penhorar o DEC e enfiar a grana na veia e virar um viciado em Dilaudid tão morro-íngreme-abaixo que quando assinou contrato como novo parceiro de confiança para os roubos de Gately depois que Gately saiu de Billerica o outrora-portentoso Kite não conseguia nem desativar um alarme ou fazer um shunt num relógio de luz, e Gately se viu na posição de cérebro da equipe, que isso era já uma marca da sua própria decadência em ângulo obtuso ele não ter ficado mais nervoso com isso.
A enfermeira que tinha esguichado no cólon dele enquanto Gately chorava de vergonha agora voltou ao quarto com um dr. que Gately nunca tinha visto na vida. Ele fica ali com os olhos sumidos por causa da dor e dos esforços para Aguentar via memória. Um olho está coberto por uma película borrada tipo meleca-de-sono que não sai nem piscando nem esfregando. O quarto está cheio de uma luz vespertina invernal lamentosa e acobreada. O dr. e a linda enfermeira estão fazendo alguma coisa no outro leito do quarto, prendendo algo metalmente complexo que saiu de um estojo grande não muito diferente de uma caixa de prataria-de-mesa-de-qualidade, com entranhas moldadas de veludo para acomodar varas de metal e dois semicírculos de aço. O intercomunicador faz ding. O dr. está com um bipe no cinto, um objeto com associações ainda menos salutares. Gately não estava exatamente dormindo. O calor da sua febre pós-op. faz com que seu rosto pareça esticado, como se estivesse perto demais de uma fogueira. O lado direito do seu corpo se acomodou numa dor nauseabunda como a de uma virilha que tomou um chute. A frase favorita de Fackelmann era “Isso é uma mentira vil!”. Ele usava a frase em resposta a praticamente qualquer coisa. O bigode dele sempre parecia estar se preparando para sair rastejando do lábio. Gately sempre desprezou barbas em geral. O ex-PN tinha um grande bigodão grisalho-alourado que ele encerava para formar dois chifres pontudos de novilho. O PN era vaidoso com o bigode e passava um tempo imenso aparando, penteando e encerando aquele bigode. Quando o PN apagava, Gately gostava de ir bem quietinho e delicadamente puxar as laterais endurecidas e enceradas do bigode para formar ângulos doidos e tortos. O terceiro e novo agente de campo de Sorkin, C, dizia que colecionava orelhas e tinha uma coleção inteira de orelhas. Bobby C com aqueles olhos sem brilho e a cabeça chata deslabiada, como um réptil. O dr. era um desses Drs. Aprendizes residenciais que parecem ter coisa de doze anos, esterilizados e arrumadinhos até ficarem com um brilho rosa-fraco. Ele irradiava a animação exultante que eles ensinam os drs. a irradiar sobre você. Tinha um corte de cabelo infantil, com pega-rapaz e tudo, e aquele pescocinho magro nadava frouxo no colarinho do jaleco branco de dr., e o protetor de bolso para as canetas do bolso e os óculos corujentos que ele ficava empurrando pra cima, junto com o pescocinho, deram a Gately a súbita sacada de que quase todos os drs., PPAs, DPs, OCs e analistas, as figuras de autoridade mais temidas na vida de um viciado em drogas, que esses caras vinham das fileiras de gente de pescocinho de lápis dos mesmos nerdzinhos sem queixo que os viciados em drogas normalmente desprezavam, humilhavam e agrediam, quando eram crianças. A enfermeira ficava tão atraente naquela luz cinza e com o borrão de meleca que era quase grotesco. Os peitos dela eram de um tal jeito que ela ficava com aquela fendinha de decote mesmo por cima do uniforme de enfermeira, que não era tipo uma coisa decotada e tal. O decote leitoso que sugere peitos que são duas bolas de sorvete de creme que essas meninas tipo-saudável provavelmente todas têm. Gately se vê forçado a confrontar o fato de que nunca, jamais ficou com uma menina saudável de verdade, nem mesmo nem com uma menina com algum grau de sobriedade. E aí quando ela se estica bem para soltar um parafuso em algum tipo de placa meio de aço na parede em cima da cama vazia tipo a barra do uniforme dela se recolhe lá para o norte de modo que as exuberantes curvas violinísticas da meia branca na parte de cima da parte de dentro das pernas dela dentro do algodão LISLE branco ficam visíveis numa silhueta iluminada por trás, e uma ENLEVANTE luz triste da janela brilha por entre as pernas dela. A sexualidade crua e saudável da coisa toda só falta deixar Gately nauseado de desejo e de piedade dele mesmo, e ele quer desviar a cabeça. O jovem dr. também está encarando o alongamento flexível e a barra que recua, sem nem fingir ajudar com o parafuso, errando quando vai empurrar os óculos de modo que acaba se espetando na testa. O dr. e a enfermeira trocam várias amostras de uma linguagem médica técnica pacas. O dr. derruba a prancheta duas vezes. A enfermeira ou não percebe nada da tensão sexual no quarto porque passou a vida toda como o olho de um furacão de tensão sexual, ou simplesmente finge não notar. Gately tem quase certeza que o dr. já tocou umas diante da imagem mental dessa enfermeira e se sente enojado por simpatizar totalmente com o dr. Seria tensão sexual CIRCUM-AMBIENTE, seria a palavra-fantasma. Gately nunca nem deixou uma mulher não saudável tipo doidona entrar no banheiro por pelo menos uma hora depois dele ter dado um cagão ali dentro, de vergonha, e agora essa criatura nauseante e circum-ambiente com aquela seringa de Lacto-Purga e aquelas mãos macias tinha provocado a vinda de um bolo frouxo e patético do ânus do Goizinho Gately, ânus este que ela então tinha visto bem de pertinho, produzindo uma cagada.
Gately nem se liga que está caindo uma nevinha bocó meio cuspida lá fora até se forçar a desviar a cabeça da janela e da enfermeira. O teto está latejando um pouco, como um cachorro com calor. A enfermeira tinha lhe dito, de trás, que o nome dela era Cathy ou Kathy, mas Gately quer pensar nela somente como a enfermeira. Ele pode sentir o próprio cheiro, um cheiro que parece de salame deixado ao sol, e sentir um suor gorduroso que lhe escorre por todo o crânio, o queixo não barbeado contra a garganta, e o tubo grudado na boca está grudento com a gosma do sono. O travesseiro ralo está quente e ele não tem como virá-lo para o lado fresco. É como se seu ombro tivesse criado testículos próprios e cada vez que o coração batesse um cara bem pequenininho desse um chute nos tais testículos. O dr. vê Gately abrir os olhos e diz para a enfermeira que o paciente que levou o tiro está semiconsciente de novo e se ele tem algum remédio agendado para a tarde. A neve está leve; ela soa como alguém jogando punhadinhos de areia na janela bem de longe. A enfermeira fatal, ajudando o dr. a prender algum tipo de coisa esquisitona de aço que parece um aparelho ortopédico com o que parece uma auréola de metal que eles montaram das partes que saíram do estojão, prendendo a coisa toda na cabeceira da cama e numas plaquinhas de aço sob o monitor cardíaco da cama — parece meio que a parte superior de uma cadeira elétrica, ele pensa — a enfermeira olha para baixo em pleno alongamento e diz Oi sr. Gately e diz O sr. Gately é alérgico e não toma remédios a não ser antipiréticos e Toragesic no soro dr. Pressburger não é mesmo sr. Gately seu alergicozinho mais corajosinho. A voz dela é de um jeito que dá pra você imaginar direitinho como ela ia soar sendo X-ada e gostando. Gately sente nojo de si próprio por ter dado um cagão na frente desse tipo de enfermeira. O nome do dr. tinha soado bem tipo “Pressburger” ou “Prissburger”, e Gately agora tem certeza de que o coitado desse mané tomava surras diárias de sinistros futuros viciados em drogas, quando era novo. O dr. está perspirando envolvido pela sexualidade ambiente da enfermeira. Ele diz (o dr.) Mas e ele está entubado por que se está consciente e ventilando sozinho e está no soro. Isso enquanto o dr. está tentando parafusar a própria auréola ao topo da coisa meio aparelho ortopédico com uns parafusos sextavados, com um joelho em cima da cama e se esticando tanto que uma parte da parte superior vermelha e macia da sua bunda aparece por cima do cinto, sem conseguir aparafusar aquilo, sacudindo a auréola de metal como se fosse culpa dela ser teimosa, e até deitado ali Gately consegue ver que o cara está girando os parafusos sextavados para o lado errado. A enfermeira se aproxima e coloca uma mão fresca e macia na testa de Gately de um jeito que faz a testa querer morrer de vergonha. O que Gately pode pegar do que ela diz para o dr. Pressburger é que eles tinham receio de que Gately pudesse estar com um fragmento do projétil desconhecido que o invadiu, atravessado ou perto da sua traqueia alguma-coisa inferior, já que ele tinha sofrido um trauma alguma-coisa-com-sete-sílabas-que-começava-com-Esterno, ela disse que os resultados da radiologia não eram definitivos mas geravam dúvidas e que alguém chamado Pendleton tinha mandado deixarem um vaporizador sifuncular de 16 mm com 4 ml de Fluimucil373 20% de 2/2h só para evitar uma hemorragia ou um corrimento mucoidal, só para garantir. As partes disso tudo que Gately não entende ele simplesmente não liga. Ele não quer nem saber disso do corpo dele ter alguma porra de uma coisa com sete sílabas. A enfermeira horrorizante limpa o rosto de Gately o quanto pode com a mão e diz que vai tentar encaixar um horário para um banho de esponja nele antes de acabar o turno dela às 1600h, possibilidade que trava Gately de pavor. A mão da enfermeira cheira a loção para mãos e corpo marca Beije Meu Rosto, que a Pat Montesian também usa. Ela diz para o coitado do dr. deixar ela dar uma tentada com o suporte craniano, é sempre complicado parafusar essas coisas. O sapato dela é daqueles sapatos subaudíveis de enfermeira que não fazem ruído, de modo que parece que ela desliza para longe da cama de Gately em vez de se afastar andando. Suas pernas não ficam visíveis até ela chegar a uma certa distância de distância. O sapato do dr. faz um rangido úmido no pé esquerdo. O dr. parece que não dorme direito faz coisa de um ano. Tem uma leve aura de drinas de farmácia no cara, do ponto de vista de Gately. Ele caminha rangente ao pé da cama olhando a enfermeira torcer os parafusos da cama e empurra os óculos corujentos para cima e diz que Clifford Pendleton, por mais que seja ás no golfe, é um ontário pós-traumático, que Fluimucil vaporizado é pra (e aqui a voz dele deixa bem claro que ele está recitando de memória, tipo pra se mostrar) muco anormal, viscoso ou espessado, e não pra edema ou hemorragias potenciais, e que a própria entubação sifuncular de 16 mm já foi especificamente desacreditada como profilaxia para edemas intratraqueais na penúltima edição trimestral do Trauma Mórbido como algo tão diametralmente invasivo que tinha mais chances de exacerbar que de aliviar a hemoptise, segundo alguém que ele chama de “Laird” ou “Lerdo”. Gately está ouvindo com a atenção concentrada e não compreensiva de tipo uma criança cujos pais estão discutindo algo adultamente complexo sobre criação de filhos na sua frente. A condescendência com que Prissburger insere que hemoptise significa ter algo chamado “hemorragia pertussiva”, como se Kathy a enfermeira não fosse profissa o suficiente pra ele não ter que ficar inserindo explicaçõezinhas técnicas, deixa Gately triste pelo cara — é óbvio que o carinha pateticamente acha que esse tipo de merda mané e condescendente vai impressionar a enfermeira. Gately é obrigado a admitir que ele ia ter tentado impressionar a enfermeira talvez, se ela não o tivesse conhecido enquanto segurava uma cuba em formato de rim sob o seu ânus ativo. A enfermeira acabou de embalar as partes da coisa tipo suporte que o dr. não conseguia dar jeito de prender, enquanto isso. Ela estava dizendo que o dr. parecia superatualizadão sobre a metodologia de alguma coisa chamada 2R, enquanto eles iam saindo, e Gately percebeu que o dr. não percebeu que ela estava sendo um pouco sarcástica. O dr. estava se virando para tentar carregar o estojo da coisa, que Gately julga que deve pesar pelo menos 30 kg. Lhe ocorre assim diretamente pela primeira vez que o verdadeiro motivo de Stavros L. contratar os caras para a limpeza do abrigo entre os residentes de casas de recuperação era que assim ele não precisava se incomodar em pagar merrecas, e que ele (Don G.) deve certamente em algum nível ter sabido disso o tempo todo mas deve ter estado em algum tipo de Negação quanto a confrontar isso assim diretamente, que ele estava sendo fodido por Stavros o sapatólatra, e que a palavra enlevante tinha certamente sido outra palavra espectral invasiva, e aí agora também que ninguém parece exatamente estar correndo para ir buscar o papel e a caneta que certamente pareceu que a Joelle van D. tinha entendido que Gately estava pedindo com mímica, e que assim de repente a visita de Joelle e a sessão de fotos do álbum tinham sido tão alucinação febril quanto o espectro figurantado, e que tinha parado de cuspir nevinha mas as nuvens lá fora ainda estavam com cara de poucos amigos lá fora sobre Brighton-Allston, e que se a visita íntima de Joelle v.D. com o álbum de fotos era uma alucinação que pelo menos significava que era uma alucinação ela estar usando a porra da calça de universitário do Ken Erdedy, e que a tristeza em contra-plongé da luz matinal vespertina nublada significava que devia ser bem perto de 1600h horário da Costa Leste de forma que de repente Lá Pela Graça ele podia evitar de repente de ficar incontrolavelmente teso tomando banhinho pelado com a esponja da horrendamente atraente K/Cathy e mas ainda podia ganhar um banho de esponja daquela substituta brucutu dela, porque o cheiro azedo de carne que ele estava soltando era uma coisa feia, só de repente escapar do risco de entesamento e levar umas esponjadas da enfermeira grandalhona e com verrugas peludas do turno das 1600-2400h de meia de compressão, para quem o ânus de Gately era um desconhecido. Fora que 1600h da Costa Leste era hora de Disseminação-Espontânea do Sr. Pula-Pula, o apresentador de programa de criancinha totalmente demente que Gately sempre adorou e fazia tudo que podia com Kite e o coitado do Fackelmann para estar em casa e fundamentalmente alerta para ver, e que ninguém jamais se ofereceu para ligar o monitor HD que fica pendurado perto de uma gravura míope imitação de Turner com neblina e um barco na parede diante de Gately e da ex-cama do garoto, e que ele não tinha um controle remoto para ou ativar o TP às 1600 ou pedir para alguém ativar. Que sem algum tipo de caderno e lápis ele não conseguia comunicar nem a mais basiquíssima das questões ou tipo um conceito pra ninguém — era como se ele fosse uma vítima vegetada de um derrame hemorrágico. Sem um lápis e um caderno ele aparentemente não conseguia nem transmitir o pedido de um caderno e lápis; era como se ele estivesse preso dentro da sua imensa cabeça tagarela. A não ser, aponta então sua cabeça, que a visita de Joelle van Dyne tivesse sido real e a compreensão dela do gesto de caneta-e-caderneta tivesse sido real, e mas alguém lá fora de chapéu no corredor ou no escritório do presidente do Hospital ou no posto de enfermagem com os seus brownies M.-Hanley canfescados também tivesse canfescado o pedido de artefatos de escrita, por solicitação dos Homens, pra ele não poder acertar a sua estória com ninguém antes deles virem pegá-lo, que fosse tipo uma coisa para amaciar o sujeito pré-interrogatório, que eles estivessem deixando ele preso em si próprio, figurante, mudo, imóvel e inexpressivo como a senhorinha catatônica da Casa largada úmida e pálida na cadeira ou a irmã do reino vegetal da menina adotada do Grupo Básico Avançado, ou todo aquele pessoalzinho catatônico lá do Depósito da no 5 do HSPME, calados e com uma cara amortecida mesmo tocando uma árvore ou sustentados de pé entre fogos que estouravam no jardim. Ou o filho inexistente do espectro. Tem que ser mais de 1600h, em termos de luz, a não ser que são as nuvens que estão baixando. A visibilidade é de cerca de 0% ou menos do outro lado da janela incrustada de neve fina. A luz da janela que penetra no quarto está escurecendo para aquele tom de Pepto-Bismol que sempre marcou o momento logo-antes-do-pôr-do-sol do dia que Gately (como quase todos os viciados em drogas) sempre mais temeu, e quando ele sempre ou baixava o capacete e atacava extra-homicidamente alguém para bloquear (o pavor do fim do dia), ou tomava Mandrake ou narcóticos orais, ou ligava o Sr. Pula-Pula extra-alto, ou se atarefava com o chapéu bocó de chef na cozinha da Ennet, ou fazia questão de estar numa Reunião sentado bem na frente na região de enxergar poros nasais, para bloquear (o pavor do fim do dia), o pavor fim-de-tarde da luz cinzenta, sempre pior no inverno, o pavor, na luz aguada do inverno — exatamente como o pavor secreto que ele sempre sentiu toda vez que alguém por acaso saía do cômodo e o deixava sozinho num cômodo, um pavor terrível de afundar o estômago, que provavelmente data lá de antigamente quando ele ficava sozinho com o pijama XXG e o bercinho embaixo de Herman o Teto Que Respirava.
Ocorre a Gately que este exato momento agora é bem como quando ele era pequenininho e a Mãe dele e o seu companheiro estavam os dois apagados ou coisa pior: por mais que pudesse ficar com medo ou em pânico ele agora de novo não consegue fazer ninguém vir ou ouvir ou nem sequer saber disso tudo; o tubo desacreditado para prevenir sangramentos viciosos ou empiçados na sua traqueia duvidosa o deixou completamente Só, pior que uma criancinha que pelo menos podia berrar e uivar, sacudindo as barras do cercadinho aterrorizada pelo fato de nenhuma pessoa alta estar em condições de ouvi-la. Fora que essa hora pavorosa de luz fraca e cinza de fim de dia é a hora, foi a hora em que o espectro triste e com roupa de nerd apareceu ontem. Isso se fosse ontem. Isso se fosse um espectro de verdade. Mas o espectro, com a sua Coca chinoca e as suas teorias de velocidade post-mortem, tinha conseguido interfacear com Gately sem auxílio de fala ou de gesto ou de Bic, por isso que mesmo surtado Gately tinha que admitir para si próprio que devia ter sido uma alucinação, um sonho febril. Mas ele tem que admitir que ele meio que tinha gostado. Do diálogo. Do toma-lá-dá-cá. Do jeito que o espectro tinha de ver por dentro dele. O jeito dele ter dito que as melhores ideias de Gately eram na verdade comunicados enviados pelos mortos pacientes que Aguentavam. Gately fica pensando se o seu pai orgânico, o ferreiro, de repente agora não está morto e dando as caras e ficando bem paradinho de vez em quando para um comunicado. Ele se sentiu um pouquinho melhor. O teto do quarto não estava respirando. Ele estava lá plano como uma placa de gesso, ondulando só um tanto com os vapores de petróleo da febre e do cheiro do próprio Gately. Aí borbulhando do meio do nada de novo ele de repente confronta lembranças extremamente nítidas do último fim de Gene Fackelmann e do envolvimento de Gately e de Pamela Hoffman-Jeep no fim de Fackelmann.
Gately, por vários meses antes de puxar a sua cana Estatal por agressão, esteve desastrosamente envolvido com uma certa Pamela Hoffman-Jeep, a sua primeira mulher com um hífen, uma espécie de moça de Danvers chique mas sem rumo e não muito saudável e pálida e incrivelmente passiva que trabalhava no Dep. de Aquisições de uma cia. de equipamentos hospitalares em Swampscott e era bem definitivamente alcoólica e tomava coquetéis coloridos com guarda-chuvinhas em clubes da Rte. 1 no fim da tarde até desvanecer e apagar com um baque forte. Era assim que ela dizia — “desvaneci”. Os desvanecimentos e os desmaios com um baque forte de quando a cabeça dela batia na mesa eram coisa praticamente de toda noite, e Pamela Hoffman-Jeep se apaixonava automaticamente por qualquer homem que ela definisse como “cavalheiresco”374 o bastante para carregá-la até o estacionamento e levá-la para casa sem estuprá-la, estupro este de uma mulher inconsciente e de cabeça pendente que ela definia como “Se Aproveitar”. Gately foi apresentado a ela por Fackelmann, que uma vez enquanto ele atravessava para chegar ao estacionamento de um bar que transmitia partidas esportivas chamado Copo e Espada para dialogar com um devedor do Sorkin Gately viu o Fackelmann cambaleante carregando uma menina inconsciente até o seu possante, com uma mãozona enorme um tanto mais enfiada no vestido dela de tafetá com cara de roupa de formatura do que seria de fato necessário para carregá-la, e Fackelmann disse a Gately que se o Don desse uma carona pra aquela mina ele ficava e cobrava a dívida, que o coração de Gately não estava mais nas cobranças e ele aceitou sem pestanejar, desde que o Fackelmann jurasse pra ele que ela conseguia controlar os seus vários fluidos no 4×4 que ele estava dirigindo. Então foi o Facklemann quem disse a ele, enquanto colocava o corpo minúsculo e largado mas ainda continente nos braços dele no estacionamento do Copo e Espada, pra ficar de olho vivo, o Gately, e não dar uma violadinha na moça, porque essa moça aqui era uma dessas moças culturadas dos Mares do Sul que se o Gately levasse ela pra casa e ela acordasse não violada ela ia ser do Gately pra toda a vida. Mas Gately obviamente não tinha intenção de estuprar uma pessoa inconsciente, muito menos de pôr a mão dentro do vestido de uma menina que podia perder o controle dos fluidos a qualquer momento, e isso o deixou preso nessa situação. Pamela Hoffman-Jeep chamava Gately de seu “Cavalheiro da Tábula Redonda” e se apaixonou passivamente pela recusa dele de Se Aproveitar. Gene Fackelmann, ela confidenciou, não era o cavalheiro que Gately era.
O que ajudou a deixar o envolvimento desastroso foi que Pamela Hoffman-Jeep estava sempre ou tão tronchamente bêbada ou tão passivamente ressacada o tempo todo que qualquer espécie de sexo em qualquer momento com ela teria sido classificado como Se Aproveitar.
A moça era simplesmente a pessoa mais passivíssima que Gately já tinha visto. Ele nunca chegou a ver P. H.-J. de fato ir de um ponto a outro com suas próprias forças. Ela precisava que alguém cavalheiresco a catasse, a carregasse e a deitasse de novo 24 horas por dia, 7 dias por semana, o ano todo, parecia. Ela era meio que um bebezão sexual. Passava quase a vida toda apagada e dormindo. Dormia de um jeito lindo, como um gatinho, serena, sem nunca babar. Ela fazia a passividade e a inconsciência ficarem até bonitas. Fackelmann chamava ela de Garota-Propaganda da Morte. Até no trabalho dela, na cia. de equipamento hospitalar, Gately a imaginava horizontal, enroscada fetalmente sobre algo macio, com toda a intensidade facial quente e frouxa de um bebê adormecido. Ele imaginava os chefes e os colegas dela todos andando na pontinha dos pés por ali Aquisitando e sussurrando uns pros outros pra não acordá-la. Ela em nenhuma ocasião chegou a ir no banco da frente de qualquer um dos carros em que ele a levou pra casa. Mas também nunca vomitou ou se mijou nem reclamou, só sorria e soltava um bocejinho lácteo de bebê e se enroscava mais em fosse qual fosse a coisa em que Gately tinha embrulhado seu corpo. Gately começou a fazer aquela coisa de gritar que eles tinham sido assaltados quando entrava carregando a moça em qualquer apê de luxo depenado em que eles se enfiassem. P. H.-J. não era o que se podia chamar de linda, mas era incrivelmente sexy, Gately achava, porque sempre dava um jeito de estar com cara de quem você tinha acabado de X até cair num estado de total desvanecimento prostrado, deitada ali inconsciente. Trent Kite disse a Fackelmann que ele achava que Gately tinha perdido a porra do juízo. Fax observou que o próprio Kite não era exatamente um W. T. Sherman com o sexo frágil nem com cocaditas e estudantes de enfermagem chapadaças e megeras dipsoides cujos rostos maquiados lhes pendiam frouxos do crânio. Fackelmann dizia que tinha começado um registro das tentativas de cantadas de Kite — umas frases de efeito certeiro como p. ex. “Você é a segunda mulher mais linda que eu já vi, sendo que a primeira mulher mais linda que eu já vi é a ex-primeira ministra britânica Margaret Thatcher” e “Se você fosse pra casa comigo eu estou estranhamente botando fé que eu ia conseguir uma ereção”, e disse que se Kite ainda não era cabaço com vinte e três anos e meio isso era a prova da existência de algum tipo de graça divina.
Às vezes Gately saía de um sono de Demerol e olhava para uma pálida e passiva Pamela deitada ali dormindo lindamente e passava por uma coisa clarividente de tempo acelerado em que conseguia quase visivelmente ver ela perder a boa aparência ao chegar aos trinta e seu rosto começar a escorregar pelo crânio até cair no travesseiro que ela segurava como um bichinho de pelúcia, virando uma megera bem diante dos olhos dele. A visão despertava mais compaixão que horror, o que Gately nunca nem chegou a considerar que podia qualificá-lo como uma pessoa decente.
As duas coisas preferidas de Gately em Pamela Hoffman-Jeep eram: o jeito que ela tinha de sair do seu estupor e apoiar o rosto na mão e rir histericamente toda vez que Gately a carregava pela porta de algum apartamento depenado e berrava que tinham levado tudo; e o jeito que ela tinha de sempre usar longas luvas brancas de linho e tomara-que-caias de tafetá que a faziam parecer uma debutante chique da North Shore que tipo tomou umas conchadas a mais de ponche no Country Club e está simplesmente pedindo que algum sujeitinho pé-rapado e de tatuagem Se Aproveite dela — ela fazia um tipo de gesto lânguido em câmera-muito-lenta de quem chicoteava um boi com a mão dentro da longa luva branca enquanto se estendia onde quer que Gately a tivesse depositado e gemia com uma inflexão elegante “Don meu Anjo traz um drinque pra Mamãe” (ela chamava as bebidas de drinques), que no fim era uma imitação mortal da Mãe dela própria, que no fim acabava que essa senhora fazia a Mãe do Gately parecer uma senhorinha da TFP em comparação, em termos de goró: as únicas quatro vezes em que Gately viu a sra. H.-J. foram todas em PSs e sanatórios.
Gately fica ali deitado de olhão esbugalhado de culpa e de angústia acompanhado pelo silvo e pelos estalos da nevinha que voltou, no quarto crepuscular do St. E., ao lado da coisa reluzente tipo suporte-ortopédico-com-auréola-para-crânio presa exoesqueleticamente à cama ao lado, vazia, e cintilando devidamente em pontos seletos de solda, Gately tentando Aguentar, lembrando. Tinha sido Pamela Hoffman-Jeep quem finalmente deu o bisu pra Gately das pequenas maneiras com que Gene Fackelmann vinha historicamente passando a perna no Branquinho Sorkin, e quem o alertou para o desfiladeiro suicida em que Fackelmann tinha se metido com um certo golpe aposta-errada que tinha dado chabu bem no mapa dele. Até o Gately conseguiu sacar que alguma coisa estava errada: nas últimas duas semanas Fackelmann tinha ficado agachado todo suarento num cantinho da sala de estar depenada, logo na frente do quartinho de luxo em que estavam Gately e Pamela, lá fora agachado na frente do fogareirinho Sterno e de fantásticos morros gêmeos de Dilaudid azul-celeste e variegados M&M’s, sem muito abrir a boca ou reagir ou se mexer e sem até dar pinta de cair no sono, só ali sentado corcovado, roliço e brilhando que nem um sapo acuado, com o bigode se debatendo em cima da boca. As coisas tinham que estar mesmo mal para Gately chegar a ponto de tentar obter informações coerentes de P. H.-J. Aparentemente o negócio era que um dos apostadores que apostavam com Sorkin via Fackelmann era um cara que Gately e Fackelmann conheciam só como Bill Anos-Oitenta, um cara impecavelmente elegante que usava suspensórios vermelhos sob roupas superfinas da Zegna, oclinhos de casco-de-tartaruga e docksiders, um executivo das antigas, assumidor-de-controle-acionário e saqueador-de-ativos, talvez com uns cinquentinha, com escritório no Exchange Place e um adesivo antigo LIBERDADE P/ MILKEN no para-choque do seu beeme — foi uma noite de drinques abundantes e de muita carregação de corpos largados, e Gately tinha que ficar dando uns petelecos no alto do crânio de P. H.-J. para mantê-la consciente o tempo que bastasse para ela ir seguindo à base de associações livres até chegar aos detalhes — que estava no seu quarto casamento com a sua terceira professora de aeróbica, que gostava de apostar só em basquete universitário tipo Ivy League, mas quando fazia — apostar — apostava umas quantias tão imensas que o Fackelmann sempre tinha que pegar uma pré-aprovação com o Sorkin pra aposta e aí ligar de volta pro Bill Anos-Oitenta, e assim por diante.
Mas então — segundo Pamela Hoffman-Jeep — esse Bill Anos-Oitenta, que é ex-aluno de Yale e via de regra descaradamente sentimental quanto ao que Pamela H.-J. rindo diz que Fackelmann chamou de sua “al-mamata” — bom, naquela vez específica parece que um passarinho impecavelmente elegante tinha sussurrado na orelha peluda de Bill Anos-Oitenta, porque só naquela vez o Bill Anos-Oitenta quer casar $125K na U. Brown contra a U. Yale, ou seja, apostar contra a almamata, só que ele quer (–2) pontos em vez da aposta limpa que Sorkin e o resto dos corretores de Boston estão pegando do pessoal de Atlantic City para o jogo. E Fackelmann tem que ligar de celular lá pra Saugus pra conferir isso com o Sorkin, só que o Sorkin está lá na cidade em Enfield na Fundação Nacional de Dor craniofacial levando o seu bombardeio semanal de UV e pegando uma dose nova de Cafergot com o dr. Robert (“Bob Anos-Sessenta”) Monroe — o especialista em tratamento ergótico-vascular de cefaleia da FNDC-F, septuagenário de óculos escuros cor-de-rosa e paletozinho Nehru, um sujeito que nos tempos de outrora estagiou na Sandoz e foi um dos membros originais do círculo de tomadores de ácido de pote de maionese na hoje lendária casa de T. Leary em West Newton, MA, e é hoje (o B. A.-60) um conhecido íntimo de Kite, porque Bob Anos-Sessenta é um fã ainda mais fanático do Grateful Dead talvez até que o Kite, e às vezes se juntava ao Kite e a vários outros devotos do Dead (cuja maioria hoje andava de bengalas e tanques de O2) e ficava trocando olhos-de-tigre tipo suvenir histórico, jaquetinhas com estampa de caxemira, roupas de batik, abajures de lava, bandanas, esferas de plasma e pôsteres multicoloridos pra luz-negra com convolutos padrões geométricos, e discutindo quais shows do Dead e quais piratas de shows do Dead eram os maiores de todos os tempos segundo diferentes pontos de vista, e básica e simplesmente eles se divertiam pacas. O B. Anos 60, um colecionador inveterado e trocador pechincheiro de coisas várias, às vezes levava o Kite com ele em pequenas expedições por lojinhas ecléticas e ensebadas em busca de parafernália relacionada com o Dead, às vezes até informalmente receptando umas coisas pro Kite (e assim indiretamente pro Gately), cobrindo o Kite de $ quando a rígida agenda de picos do Kite não permitia uma negociação mais formal e arrastada, com o Bob Anos-Sessenta então trocando as mercadorias em vários pontos sebosos da cidade por uma tralha anos 60 que ninguém mais normalmente ia querer. Algumas vezes o Gately teve que chegar de fato a catar com o dedo um cubo de gelo de um drinque para jogar pelo decote tomara-que-caia do vestido de formatura de P. H.-J. e tentar manter a mulher minimamente na linha. Como a maioria das pessoas incrivelmente passivas, a menina tinha extrema dificuldade para separar detalhes do que era realmente importante numa história, por isso raramente lhe perguntavam alguma coisa. Mas então a questão é que a pessoa que recebeu a ligação de Fackelmann sobre a aposta-monstro do Bill Anos-Oitenta no jogo Yale-Brown não foi de fato o Sorkin mas na verdade a secretária do Sorkin, uma certa Gwendine O’Shay, a ex garota-do-IRA sem green card e com peitos de howitzer que tinha apanhado meio que excessivamente com os cassetetes dos policiais de Belfast na cabeça lá na Terrinha e cujo crânio agora era (na terminologia do próprio Fackelmann) mais mole que cocô de filhotinho molhado de chuva, mas que tinha exatamente o tipo de ar avozal-distraído e cafona que a deixava perfeita pra estalar as mãozonas de juntas vermelhas nas bochechas e dar pios agudos quando reclamava seus ganhos lotéricos na Loteria de Massachusetts toda vez que o Branquinho Sorkin e os seus chapinhas comprados no governo de MA combinavam de fazer um sorkinita comprar um bilhete misteriosamente vencedor da Loteria de Massachusetts de uma das incontáveis lojas de conveniência que Sorkin & chapinhas controlam através de corporações de fachada por toda a North Shore, e que, não só porque ela sabia fazer o que Sorkin dizia ser a única massagem cervical adequada a oeste do Centro de Fontes Termais Alpinas de Berna mas também conseguia meter no processador de texto a quantidade bisonha de 110 ppm e manejar um shillelagh como poucos — fora que ela tinha sido parceira de joguinhos de tabuleiro da querida e falecida mãe garota-do-IRA do Sorkin em Belfast, na Terrinha — servia como principal auxiliar administrativa do Branquinho, atendendo os celulares quando Sorkin não estava ou estava indisposto.
E então mas a questão central do que P. H.-J. queria dizer, que Gately já estava quase a ponto de lhe rachar o crânio de tanto peteleco pra conseguir arrancar: Gwendine O’Shay, familiarizada com Bill Anos-Oitenta e a sua sentimentalidade para com os Bulldogs da UY, fora o fato de ser cranialmente mais mole que uma porra de uma uva podre, a O’Shay anotou errado o recado de Fackelmann, achou que o Fackelmann tinha dito que o Bill Anos-Oitenta queria 125K com (–2) pontos em Yale em vez de (–2) na Brown, mandou o Fackelmann esperar na linha e fez ele ficar ouvindo Muzak irlandês enquanto dava uma ligada para um infiltrado no Dep. Esportivo de YaleCMS
retirado da base de dados criptografada INFILTRADOS de Sorkin e ficou sabendo que o ala-pivô que era o grande astro dos Bulldogs de Yale tinha recebido um diagnóstico de um transtorno neurológico extremamente raro chamado Vestibulite Pós-Coital375 em que por várias horas depois do intercurso o ala-pivô tendia a sofrer de uma perda tão terrível de propriocepção que sem exagero não conseguia diferenciar a bunda do cotovelo, que dirá fazer um arremesso competente para a cesta. Fora que aí a segunda ligação da O’Shay, para o infiltrado do Sorkin no atletismo da Brown (um zelador do vestiário que todo mundo acha que é surdo), revela que várias das alunas héteros mais sereias e dotadas de espírito cívico da U. Brown tinham sido recrutadas, passado por audições, instruções e ensaios (i. e., “sem-saias”, com uma risadinha de Pamela Hoffman-Jeep, cuja risadinha envolve o tipo de ondulações contorcidas dos ombros de alguém que sente cócegas, típico de uma menina bem mais nova que está recebendo cócegas de uma figura de autoridade e fingindo não gostar), e dispostas em pontos estratégicos — postos de parada na I-95, no compartimento do estepe na traseira do ônibus fretado pelos Bulldogs, nos arbustos de sempre-viva na frente da entrada especial das equipes para o Centro Esportivo Pizzitola em Providence, em recônditos côncavos ao longo dos túneis de Pizzitola entre a entrada especial e o vestiário dos visitantes, até num armário especialmente ampliado e sensualmente decorado perto do armário do ala-pivô no VV, todas preparadas — como as cheerleaders da Brown e as animadoras, que tinham sido induzidas a ir ao jogo descalcinhadas, eletrolisadas e dispostas a espacatos para ajudar a fornecer uma atmosfera pirotecnicamente glandular a todo o ambiente de jogo do ala-pivô — preparadas para fazer o penúltimo sacrifício pela equipe, pela escola e pelos membros influentes da Assoc. de Ex-Alunos da Brown. De modo que Gwendine O’Shay aí volta a falar com Fackelmann e libera a aposta-monstro e a diferença de pontos, assim tipo quem não liberaria, com esse tipo de informação privilegiada por trás de tudo. Só que é claro que ela anotou a aposta ao contrário, i. e. O’Shay pensa que o Bill Anos-Oitenta agora botou 125K que Yale está perdendo por pelo menos dois pontos, enquanto o Bill Anos-Oitenta — que no final das contas meio que está dando uma de Cavaleiro Salvador ao fazer uma oferta pelo controle acionário da Empresa Federada de Cones e Funis de Providence, a principal manufatura de receptáculos conoides da ONAN, sendo a EFC&F presidida por um destacado ex-aluno da Brown que é tão rabidamente devotado aos esportes universitários que chega até a usar uma cabeça oca e furiosa de urso nos jogos da sua equipe, cujo saco o Bill Anos-Oitenta está dedicado a puxar como o mais devoto sineiro da paróquia, P. H.-J. encaixa, insinuando que foi o Bill Anos-Oitenta que tinha dado à equipe da Brown o bisu sobre o canal-deferente-de-aquiles do ala-pivô — O B. A.-O. mais do que razoavelmente acha que apostou em dois pontos de vantagem da Brown as suas 125 quilo-patacas.
O acidente geográfico no sapato de todo mundo, com que ninguém de Providence contava, foi o surgimento, com faixas e socos-ingleses, das dworkinitas da Falange de Prevenção e Protesto contra a Objetificação Feminina da Universidade de Brown na frente dos portões principais do Centro Esp. Pizzitola bem na hora do jogo, duas FaPPOFs em cada moto, que atravessam os portões com filigranas de metal como se fossem meros lencinhos molhados e invadem a arena, fora uma divisão das mais robustas feministas do programa de graduação que executa um movimento de pinça descendo das cadeiras mais baratas lá em cima durante o primeiro pedido de tempo, no exato momento em que a primeira manobra de pirâmide das cheerleaders da Brown termina num espacato em pleno ar que faz com que o controlador do placar do Pizzitola caia em cima dos controles e apague os zeros tanto da equipe da CASA quanto dos VISITANTES, no placar, bem quando as motocas sem silenciador das FaPPOFs chegam rosnando malévolas pelos túneis do térreo e entram na quadra de jogo; e no imbróglio que se segue não apenas cheerleaders, animadoras e belas sereias da Brown são todas ou derrubadas com placas de protesto usadas como tacapes ou arremessadas aos gritos e esperneios sobre os robustos ombros de FaPPOFs militantes e carregadas para longe de lá nas estrondosas motos, deixando o delicado sistema nervoso do ala-pivô de Yale intacto conquanto hiperaquecido; mas dois titulares da equipe da Brown, um pivô e um ala-armador — ambos fissurados demais e perturbados por uma semana duríssima de audições e ensaios com belas sereias para terem o bom senso de sair correndo que nem uns demônios quando o imbróglio transborda para a madeira da quadra — são vitimados, por um soco-inglês da FaPPOF e um árbitro desorientado com formação em artes marciais, respectivamente; e aí quando a quadra é finalmente liberada, as macas retiradas e o jogo recomeça, a U. de Yale detona a U. de Brown com mais de 20 pontos de vantagem.
Aí então o Fackelmann liga pro Bill Anos-Oitenta e combina de pegar o grosso, que é $137500 com a comissão, que o B. A.-O. lhe dá em cédulas grandes pré-ONAN numa sacola de ginástica com os dizeres VAI BROWN que ele tinha levado pro jogo pra ficar sentado ao lado do presidente de cabeça ursina com ela e agora serve pra menos que nada, mas aí o Fackelmann recebe o grosso no centro e dispara pela Route 1 rumo a Saugus para entregar o grosso e pegar a sua comissão da comissão (U$625) imediatamente, com uma necessidade que está começando a ficar pesada de descolar umas azuizinhas etc. Fora que o Fackelmann está pensando que de repente ainda rola um bônus ou pelo menos alguma validação emocional do Sorkin por ele ter trazido uma aposta tão monstro e tão prontamente paga. Mas, quando ele chega ao bar de striptease da Rte. 1 nos fundos do qual o Sorkin tem o seu escritório administrativo atrás de uma porta corta-fogo não identificada e todo papel-de-paredado com uma coisa que pretende ser uma imitação de painéis de madeira, Gwendine O’Shay mudamente aponta de trás da sua mesa para a porta do escritório pessoal de Sorkin com um gesto ríspido que Fackelmann não acha que combine com a saltitância merecida pela situação, nem a pau. A porta tem um grande pôster de R. Limbaugh, de antes do assassinato. Sorkin está lá dentro trabalhando numas planilhas com seus óculos especiais com filtros-de-luz-de-monitor. As lentes dos óculos com aquelas molduras longas que protuberam parecem olhos de lagosta na ponta de umas antenas. Gately, Fackelmann e Bobby C nunca falam com Sorkin antes dele se dirigir a eles, não por alguma deferência capanguística mas porque eles nunca sabiam dizer qual era a condição craniofacial de Sorkin ou se ele estava conseguindo tolerar sons até verificavelmente ouvirem-no tolerar o seu próprio. (Som.)
Então G. Fackelmann espera mudamente para entregar o grosso do Bill Anos-Oitenta, parado ali alto e mole e palidamente suarento, com a cor e o formato gerais de um ovo cozido descascado. Quando Sorkin ergue uma sobrancelha ao ver a sacola VAI BROWN e diz que não está sacando a grande graça da piada, o bigode de Fackelmann positivamente ocupa todo o seu lábio superior, e ele se prepara para dizer o que sempre diz quando está desconcertado, que seja lá o que se está dizendo com o devido respeito é uma mentira vil. Sorkin salva o documento e empurra a cadeira para trás para poder alcançar bem no fundo da gaveta à prova de fogo. Os óculos são usados com frequência para processamento-de-dados-escravo e custam doisão. Sorkin solta um gemido enquanto ergue uma imensa caixa de bilhetes da Loteria de Mass com cartões pré-marcados e a lança sobre a mesa, onde ela fica obscenamente volumosa, cheia de 112,5K EU — tem 112,5 mil patacas ali, tudo em notas de um, 125 menos a comissão, o que Sorkin via O’Shay acredita ser o que o Bill Anos-Oitenta ganhou, tudo em notas pequenas, porque Sorkin está puto e não consegue resistir a essa sacanagenzinha. Fackelmann não abre a boca. O bigode dele fica frouxo enquanto o seu maquinário mental começa a acelerar. Sorkin, massageando as têmporas, encarando Fackelmann com aqueles óculos como se fosse um siri num aquário, diz que provavelmente não tem como culpar o Fax ou a O’Shay, que ele mesmo teria liberado a aposta, ainda com aquele bisu neurológico que eles tinham quanto ao ala de Yale. Quem é que teria previsto aqueles brucutus feminazis empedrando o sapato de todo mundo. Ele pronuncia alguma coisa em gaélico que Fackelmann não entende mas deduz que seja fatalista. Ele saca seis notas de cenzinho e uma de 25 da ONAN de um bolo do tamanho de um obus e empurra as notas pela mesa de metal para Fackelmann, a comissão da comissão dele. Ele diz Fazer o quê, caralho (o Sorkin), esse garoto, esse Bill Anos-Oitenta é um sentimentalista irracional pela Yale e cedo ou tarde a gente fica quites com ele. Corretores veteranos tendem a ser estatisticamente filosóficos e pacientes. Fackelmann nem se dá ao trabalho de imaginar por que Sorkin se refere ao Bill Anos-Oitenta como “garoto” quando os dois têm mais ou menos a mesma idade. Mas uma lâmpada de alta potência está lentamente começando a incandescer sobre a cabeça úmida de Fackelmann. Tipo porque o Fac-símile está começando a conceitualizar o conceito geral do que deve ter acontecido. Ele ainda não abriu a boca, Pamela Hoffman-Jeep enfatiza. Sorkin dá uma olhada geral no Fackelmann e pergunta se ele andou ganhando algum peso meio assimétrico ali. O peitinho esquerdo do Fackelmann de fato parece perceptivelmente maior que o direito, sob o blazer, por causa do envelope com 137 de mil e uma de 500, o grosso de um Bill Anos-Oitenta que achava que tinha perdido. Exatamente como o Sorkin achava que O B. A.-O. tinha ganhado. O leve zumbidinho agudo ali dentro que Sorkin acha que é o seu drive Infernatron na verdade é o zumbido de Fackelmann mentando em alta velocidade. O bigode dele vibra como um chicote estalado enquanto ele lida com a sua própria planilha mental interna. 250K de uma cacetada só representavam tipo 375 gramas azul-celeste de cloridrato de hidromorfona376 ou tipo 37500 comprimidos solúveis de 10 mg, disponíveis graças a um certo trafica de opiáceos rapace mas discreto em Chinatown que só vendia narcóticos sintéticos na base de 100 gramas — o que no fundo se traduzia, supondo que Kite pudesse ser convencido a catar o seu DEC 2100 e se mudar pra uma galáxia distante com Fackelmann pra ajudar ele a preparar uma matriz de distribuição de varejo em algum mercado urbano de uma galáxia distante, em coisa de vamos ver sobe um 1,9 milhão em valor de revenda, soma esta que significava que Fackelmann e em medida menor de sócio-jr. Kite ficariam com o queixão cravado no peito pelo resto da vida sem ter que depenar mais nenhum apê, forjar mais nenhum passaporte, quebrar mais nenhum dedão. Tudo se Fackelmann simplesmente ficasse com o mapinha fechado sobre a confabulação Yale/Brown//Brown/Yale da O’Shay, resmungasse alguma coisa sobre algum adulterante EV ter causado um súbito e temporário gigantismo de um peitinho e zarpasse dali direto pela Rte. 1 para esse tal Dr. Wo e Sócios, no Empório de Chá Frio Hung Toy, Chinatown.
A essa altura Pamela Hoffman-Jeep tinha sucumbido aos drinques e ao seu próprio calorzinho aninhado e estava irreversivelmente desvanecida, com ou sem gelo ou piparotes, com leves espasmos sinápticos e murmurando para alguém chamado Monty que ele certamente não era o que ela chamava de um cavalheiro. Mas Gately podia retraçar o resto da trajetória de Fackelmann rumo ao fundo da merda sozinho. Quando abordado por Fackelmann com uma sacola de ginástica VAI BROWN cheia do melhor Dilaudid por atacado do dr. Wo e convidado a levantar acampamento com ele e montar uma matriz de distribuição para um império de drogas próprio numa galáxia distante, Kite teria dado passos trêmulos para trás horrorizado com o fato de Fackelmann obviamente não saber que o apostador Bill Anos-Oitenta era na verdade ninguém menos que o filho do Bob Anos-Sessenta, ou seja, o enxaquecólogo pessoal do Branquinho, em quem o Sorkin confiava e com quem trocava confidências daquele jeito que apenas uma dose EV maciça de Cafergot possibilita, em termos de confiança e confidências, e pra quem o Sorkin indubitavelmente contaria tudinho sobre os ganhos gigantes do filho do cara com Yale, e que não era exatamente cu-e-cueca com o filho, esse Bob Anos-Sessenta, mas naturalmente ficava meio com um olho paterno distante no cara, e certamente teria ficado sabendo que o B. A.-O. na verdade tinha apostado em Brown numa tentativa de amansar o presidente cônico, e assim ia agora ficar sabendo que tinha rolado alguma confusão; e também que (Kite ainda estaria recuando trêmulo enquanto todas essas fichas caíam) fora isso, mesmo que o Sorkin de alguma maneira não ficasse sabendo da perda do Bill Anos-Oitenta e do golpe do Fackelmann graças ao Bill Anos-Sessenta, o fato era que o mais recente e mais selvagem dos curimbabas americanos do Sorkin, Bobby (“C”) C, viciado numa marrom à moda antiga, comprava sempre uma heroína burnesa orgânica com esse dr. Wo tipo sempre, e não tinha como não ficar sabendo de uma venda no atacado de mais de 300 gramas de Dilaudid comprada por um Fackelmann sabidamente coempregado de Sorkin com C… e assim que o Fackelmann, que quando chegou ao Kite com a proposta já estava de posse de uma sacola da Brown cheia de 37500 Dilaudids de 10 mg e sem os 250K de Sorkin — fora que ele como o Gately depois ficou sabendo tinha só 22K de capital para seguro contra golpes suicidas que saíssem pela culatra —, já estava morto: Fackelmann estava morto, Kite teria dito, recuando apavorado com a idiotice do Fax; Kite teria dito que já estava sentindo o cheiro da biodegradação do Fackelmann daqui. Mortinho da silva, ele teria dito ao Fackelmann, já preocupado por estar sendo visto sentado ali com ele em sei lá que bar de strip em que eles estavam quando o Fax veio com essa proposta pro Kite. E Gately, vendo P. H.-J. dormir, conseguia não só imaginar mas se Identificar plenamente com como o Fackelmann, ao ouvir o Kite dizer que já estava sentindo o cheiro dele morto e por quê, com como o Fackelmann, em vez de pegar aquela sacolada de azuizinhas e colar um cavanhaque e imediatamente voar para climas que nunca tinham nem ouvido falar da porra da North Shore da Grande Boston — que o Fac-símile tinha feito o que qualquer viciado de posse da sua Substância preferencial faria diante de notícias fatais e do terror delas decorrente: o Fackelmann tinha ido direto pra casa depenada de luxo deles, o seu lar familiar e com cara de seguro, tinha se largado num canto, imediatamente acendido aquele fogareiro, cozinhado o pó, atado o cinto, se picado, cravado o queixo no peito e se mantido ali com quantidades assombrosas de Dilaudid, tentando mentalmente apagar a realidade de que seria desmapeado se não tomasse alguma providência paliativa imediatamente. Porque, Gately já então percebia, era essa a maneira básica de um viciado em drogas lidar com os problemas, era usar a boa e velha Substância para apagar o problema. Também provavelmente medicando esse pavor se entupindo de M&M’s de amendoim, o que explicaria aquele monte de embalagens jogado no chão do cantinho de onde ele não tinha saído. Que portanto é assim que Fackelmann se vê agachado úmido e calado num canto da sala de estar bem na frente deste preciso quarto aqui por dias a fio; era por isso a aparente contradição daquela quantidade bizarra de Substâncias que Fackelmann tinha na sacola de ginástica ao seu lado junto com a cara de sapo acuado de um cara amedrontadíssimo que a gente associa à Abstinência. Maquinando e pensando, batucando distraído no crânio inconsciente de P. H.-J., Gately percebeu que podia mais do que se solidarizar com a fuga de Fackelmann para o Dilaudid com M&M’s, mas ele agora percebe que essa foi a primeira vez que realmente lhe caiu com força a ficha de que um viciado em drogas era no fundo uma criatura pusilânime e patética: uma coisa que basicamente se esconde.
A coisa mais sexual que Gately chegou a fazer com Pamela Hoffman-Jeep era que ele gostava de desembrulhar aquele casulo de cobertores dela e entrar ali com ela e ficar agarradinho bem com força, encaixando o corpanzil bem contra os lugares macios e côncavos dela, e aí pegar no sono com o rosto na nuca da moça. Gately ficava incomodado por conseguir se identificar com o desejo de Fackelmann de se esconder e apagar tudo, mas olhando pra trás agora ele fica mais incomodado por não ter conseguido ficar ali ao lado da moça comatosa ficando incomodado por mais de uns poucos minutos antes de sentir o conhecido desejo que apaga todos os incômodos, e por naquela noite ele ter desembrulhado o casulo de roupa de cama e se erguido tão automaticamente a serviço do seu desejo. E lamenta acima de tudo ter saído sonolento do quarto só de calça jeans e cinto para o lusco-fusco da sala de estar onde Fackelmann estava encolhido úmido e com a boca borrada no cantinho ao lado de uma montanha de Dilaudids de 10 mg e da sua tigelinha de água destilada e das suas tralhas de seringa e fogareiro, que Gately tenha ido sonolento tão automaticamente até Fackelmann com o pretexto — para ele próprio, também, o pretexto, isso é que era pior — o pretexto de que só ia dar uma olhadinha no coitado do Fackelmann, pra de repente tentar convencer o cara a fazer alguma coisa, ir todo penitente falar com o Sorkin ou desaparecer destes climas em vez de só ficar ali no cantinho com a cabeça em ponto morto e o queixo no peito e uma estalactite de baba achocolatada pendendo do lábio inferior, e crescendo. Porque ele sabia que a primeira coisa que o Fackelmann faria quando Gately abandonasse P. H.-J. e saísse sonolento para a sala de estar desmobiliada seria fuçar no seu estojinho de GoreTex em busca de uma seringa nova ainda na embalagem de fábrica e convidar Gately a se encolher ali com ele e ficar na boa com o planeta. I. e. ingerir um pouco daquela montanha de Dilaudid, para fazer companhia ao Fackelmann. O que para vergonha de Gately ele fez, tinha feito, e parte alguma da realidade da merda toda em volta de Fackelmann e da necessidade de agir nem sequer foi mencionada, de tão aplicados que eles estavam em curtir o barato letárgico das azuizinhas, apagando tudo, enquanto Pamela Hoffman-Jeep ficava ali bem embrulhadinha no quarto ao lado sonhando com donzelas e torres — Gately fez mesmo, ele lembra nitidamente, ele deixou Fackelmann dar um jeito legal em tudo, e se disse que estava fazendo isso pra fazer companhia ao Fackelmann, tipo ficar acordado com um amigo doente, e (o que pode até ser pior) acreditou que era verdade.
Pequenos entreatos de sonhos febris pontuam lembranças e estados de consciência, tipo assim. Ele sonha que está seguindo exatamente rumo norte num ônibus da mesma cor da fumaça do seu próprio escapamento, passando repetidamente pelas mesmas cabanas de praia estripadas e por um trecho de um mar pulsante, chorando. O sonho se repete indefinidamente, sem nenhuma espécie de resolução ou chegada, e ele chora e sua enquanto resta ali deitado, travado. Gately acorda abruptamente quando sente a linguinha áspera na sua testa — não muito diferente da língua hesitante de Nimitz, a gatinha de estimação do PN, quando o PN ainda tinha a gatinha, antes do misterioso período em que a gatinha desapareceu e o triturador de lixo não funcionou direito vários dias seguidos e o PN ficou sentado de ressaca com o seu caderninho na mesa da cozinha com a cabeça loura nas mãos, só ficou ali sentado vários dias, e a Mãe de Gately ficava andando por ali pálida como o diabo e se recusou a chegar perto da pia da cozinha por dias a fio, e foi correndo para o banheiro quando Gately finalmente perguntou o que estava acontecendo com o triturador de lixo e cadê a Nimitz. Quando Gately consegue desgrudar as pálpebras, no entanto, a língua não passa nem perto de ser a de Nimitz. O espectro está de volta, vestido como antes e borrado nas bordas sob a luz que vaza do corredor com seu recorte em formato de chapéu, e só que agora ele está com outro espectro, mais jovem e bem mais fisicamente em forma, com uma bermudinha de ciclismo meio boiola e uma regata EUA que está bem inclinado por sobre a gradinha de Gately e… lambendo a porra da testa de Gately com uma linguinha áspera, e quando Gately por reflexo solta a mão em cima do mapa do cara — homem nenhum põe a língua em D. W. Gately e sobrevive — ele mal tem tempo de perceber que a respiração do espectro não tem calor nem cheiro, antes dos dois espectros sumirem e de um relâmpago azul e forcado de dor daquele golpe repentino devolvê-lo ao travesseiro quente com a coluna arqueada e um grito travado no tubo, olhos revirando para trás sob a luz cor de pombo do que quer que não seja exatamente sono.
A febre dele está bem pior, e esses retalhinhos de sonhos têm um aspecto desmantelado e cubista que ele associa na memória a gripe infantil. Ele sonha que está olhando num espelho e não vê nada e fica tentando limpar o espelho com a manga. Um sonho consiste apenas da cor azul, vívida demais, como o azul de uma piscina. Um cheiro desagradável fica lhe subindo pela garganta. Ele está ao mesmo tempo dentro de um saco e segurando um saco. Visitantes surgem e somem em piscares, mas nunca o Francis Furibundo ou a Joelle van D. Ele sonha que tem gente ali no quarto mas ele não está entre eles. Sonha que está com um garoto muito triste e que eles estão num cemitério desenterrando a cabeça de um cara e é superimportante, tipo Emergência-Continental mesmo, e Gately é o melhor desenterrador mas está com uma puta fome, tipo uma fome irresistível, e está comendo com as duas mãos uns salgadinhos industriais de uns sacões tamanho-família e aí ele não consegue cavar direito, enquanto vai ficando cada vez mais tarde e o garoto triste está tentando gritar com Gately que a coisa importante foi enterrada na cabeça do cara e pra desviar a Emergência-Continental pra começar a desenterrar a cabeça do cara antes que seja tarde demais, mas o garoto mexe a boca mas não sai nada, e Joelle van D. aparece com asas e sem-roupa-de-baixo e pergunta se eles conheciam o cara, o cara morto ali da cabeça, e Gately começa a falar que conhecia apesar de no fundo ele estar em pânico por não ter a menor ideia de quem eles estão falando, enquanto o garoto triste segura alguma coisa horrível pelos cabelos e faz cara de quem está gritando em pânico: Tarde Demais.
Ela tinha cruzado as portas do St. E. e virado à direita para a rápida caminhada de volta à Ennet e uma mulher grotescamente imensa com a meia-calça calombuda de pelos que nasciam e cujos rosto e cabeça eram quatro vezes maiores que a maior mulher que Joelle já tinha visto lhe agarrou o braço pelo cotovelo e disse que lamentava ser ela a lhe dizer mas que sem saber disso ela estava correndo um risco horroroso.
Demorou algum tempo para Joelle dar uma boa olhada geral nela. “E isso por acaso é novidade?”
Aí e mas a manhã seguinte daquela noite tinha encontrado Gately e Fackelmann ainda ali no cantinho de Fackelmann, cintos presos aos braços, braços e narizes vermelhos de tanto eles coçarem, ainda ali, na ingestão, numa draga ferrada, cozinhando, curtindo e comendo M&M’s quando ainda conseguiam achar a boca com a mão, se movendo como homens no fundo do fundo do mar, cabeças balouçantes sobre pescoços sem-força, o teto da sala vazia de azul-celeste e inflado e sob ele pendente da parede no alto à direita deles o monitor chique de TP do apartamento num loop recursivo em câmera lenta de alguma coisa medonha de que Fackelmann gostava que era só uma série de tomadas de chamas de isqueiros de metal, fósforos de cozinha, luzes piloto, velas de aniversário, velas votivas, velas de sete dias, aparas de bétula, bicos de Bunsen etc., que o Fackelmann tinha pegado com o Kite, que logo antes do sol nascer tinha aparecido vestido e declinado de se chapar com eles e tossido de um jeito nervoso e anunciado que precisava se mandar por uns dias ou mais pra uma feira de software “superchave” e imperdível num CEP diferente, sem saber que Gately agora sabia que ele sabia que Fackelmann já estava morto, c/ o Kite então tentando se mandar discretamente com todo e qualquer hardware que possuía nos braços, inclusive o DEC não portátil, arrastando os cabos atrás de si. Aí um pouco depois, enquanto a luz matinal se intensificava amarela e fazia tanto Gately quanto Fackelmann amaldiçoarem que as cortinas tivessem sido depenadas e penhoradas, enquanto eles continuavam encolhidos cozinhando e se picando, tipo às 0830h Pamela Hoffman-Jeep estava de pé vomitando apressada e passando uma musse pra garantir o dia de preto pela frente, chamando Gately de Querido e de seu Cavaleiro da Tábula Redonda e perguntando se ela tinha feito alguma coisa ontem à noite que ia ter que explicar hoje pra alguém — meio que uma rotina matinal na relação deles —, aplicando blush, tomando o seu café da manhã antirressaca-padrão377 e vendo os queixos de Gately e de Fackelmann caírem e subirem com ritmos subaquáticos ligeiramente diferentes. O cheiro do perfume dela e das balinhas retsinadas cobria a sala nua muito depois que ela tinha lhes dado Ciao Bello. Enquanto o sol matinal ficava mais alto e mais intolerável, em vez de fazerem alguma coisa e pregarem um cobertor ou alguma coisa em cima da janela eles decidiram na verdade obliterar a realidade da luz que lhes cozia os olhos e começaram a se fartar deveras com as azuis, flertando com uma overdose. Eles estavam escalando o Monte Dilaudid de Fackelmann a uma velocidade terrível. Fackelmann era por natureza um pé-na-jaca. Gately era tipicamente mais tipo um usuário de manutenção. Ele raramente entrava num clássico pé-na-jaca, que significava sentar o bundão com uma quantidade enorme de drogas e se chapar repetidamente por longos períodos sem se mexer. Mas quando começava mesmo a se fartar ele bem podia estar era atado no bico de um míssil de tanto controle que tinha da duração daquilo ou da inércia. Fackelmann estava saqueando a montanha de 10 mg como se nada mais importasse. Toda vez que Gately meramente começava a abordar a questão de como era que o Fac-símile tinha conseguido uma carga tão monstruosamente azul da Substância — tentando quem sabe levar Fackelmann a confrontar a realidade do seu problema ao descrevê-lo, tipo assim — Fackelmann o cortava com um suave “Isso é uma mentira vil”. Isso era basicamente a única coisa que Fackelmann dizia, quando chapado, até em resposta a coisas tipo perguntas. Você tem que imaginar todos os intercâmbios verbais do momento pé-na-jaca como coisas que ocorriam muito lentamente, estranhamente distendidas, como se o tempo fosse mel:
“Caralho, mas que puta montoeira de azul que cê topou aqui, Fa…”
“Isso é uma mentira vil.”
“Puta que pariu. Eu só tou torcendo pra Gwendine ou pro C estar lá com o telefone hoje, cara. Em vez do Branquinho. Nem vale a pena sair daqui hoje eu nem…”
“… ’ma mentira vil.”
“Pode crer, Fax.”
“… ’ma mentira vil.”
“Fax. O Fac-símile. O conde Fácula.”
“Mentira vil.”
Depois de um tempo com a distensão toda a coisa virava meio que uma piada. Gately içava a cabeçona e tentava alegar a rotundidade do planeta, a tridimensionalidade do mundo fenomenológico, a pretidão de todos os cachorros pretos…—
“… ’ma mentira vil.”
Eles achavam cada vez mais engraçado. Depois de cada tiradinha dessas eles ficavam rindo sem parar. Cada exalação de riso parecia durar vários minutos. O teto e a luz das janelas retrocediam. Fackelmann mijou na calça; isso foi mais engraçado ainda. Eles ficaram olhando a poça de urina se espalhar pelo piso de madeira, mudar de forma, brotar em braços curvos, explorar o belo piso de carvalho. Os picos, vales e emendinhas. Pode ter ficado mais tarde e aí mais cedo de novo de manhã. A pletora de chamas pequenas do cartucho de entretenimento se refletia na poça que se alastrava, de modo que logo Gately assistia sem tirar o queixo do peito.
Quando o telefone tocou foi só um detalhe. O toque era como um ambiente, não um sinal. O fato dele tocar foi ficando cada vez mais abstrato. Tudo que um telefone que toca podia significar foi tipo totalmente obliterado pelo fato obliterante do toque. Gately apontou isso para Fackelmann. Fackelmann negou com veemência.
Num dado momento Gately tentou ficar de pé e foi violentamente atacado pelo chão, e mijou na calça.
O telefone tocava sem parar.
Num outro momento eles ficaram interessados em rolar cores diferentes de M&M’s para as poças de urina e ficar olhando o pigmento colorido escorrer e deixar uma bola de futebol americano de M&M’s branco-cadavérico num nimbo de pigmento colorido.
A campainha do intercomunicador que ficava na porta de vidro do complexo de apartamentos de luxo no térreo tocou, obliterando os dois com seu toque. Ela tocou e tocou. Eles discutiram que queriam que ela parasse como a gente discute que quer que pare de chover.
Aquilo virou o míssil intercontinenal da pé-na-jaquice. A Substância parecia inexaurível; o Monte Dilaudid mudava de formato mas nunca encolhia muito, que eles pudessem ver. Foi a primeira e a única vez na vida em que Gately tinha EV-zado narcóticos tantas vezes num braço só que ficou sem veias e teve que trocar pro outro braço. Fackelmann não tinha mais coordenação para ajudá-lo a atar o cinto e se picar. Fackelmann ficava fazendo um fio de baba achocolatada surgir e se distender até quase o chão. A acidez da urina deles estava corroendo o acabamento de madeira do piso do apê de maneira visível. A poça tinha brotado em muitos braços, como um deus hindu. Gately não conseguia saber direito se a urina tinha voltado explorando até quase os pés deles de novo ou se eles já estavam sentados na urina. Fackelmann ficava vendo até onde conseguia aproximar a pontinha do fio de cuspe da poça da urina misturada dos dois antes de chupar de volta pra dentro. O joguinho tinha uma aura inebriante de perigo. A percepção de que a maioria das pessoas gosta de riscos-de-brincadeira mas não gosta de perigo-de-verdade apareceu para Gately como uma epifania. Ele levou galões de tempo viscoso tentando articular essa sacada para Fackelmann para Fackelmann lhe dar o imprimatur de uma negação.
Uma hora a campainha parou.
A expressão “mais tattoos que dentes” também ficava passando pela cabeça de Gately enquanto se balançava (a cabeça), apesar de ele não ter a menor ideia de onde vinha a expressão ou a quem supostamente se referia. Ele ainda não tinha estado na Mínima de Billerica; ele estava numa condicional afiançada pelo Branquinho Sorkin.
O gosto de M&M’s não conseguia cortar o gosto médico e esquisitamente adocicado da hidromorfona na boca de Gately. Ele estava olhando a coroa de chama azul de um velho queimador de fogão reluzir no brilho da urina.
Durante um período carmesim de luz crespuscular Fackelmann tinha tido uma pequena convulsão e evacuado na calça e Gately não tinha tido a coordenação de ir ficar ao lado de Fackelmann durante a convulsão, pra ajudar e só pra estar ali com ele. Ele teve a pesadeleante sensação de que havia algo crucial que precisava fazer mas que tinha esquecido o que era. Injeções de 10 mg de Lagoa Azul evitavam a sensação por períodos cada vez menores. Ele nunca tinha ouvido falar de alguém ter convulsão por overdose, e o Fackelmann realmente parecia ter voltado à sua versão normal.
O sol do outro lado das janelonas parecia subir e descer como um iô-iô.
Eles acabaram com a água destilada que Fackelmann tinha na tigelinha, e Fackelmann pegou um algodão, empapou com a urina tinta de confeito do chão e cozinhou o pó com a urina. Gately achou que achou aquilo nojento. Mas nem a pau que ele ia tentar levantar pra ir até a cozinha depenada buscar a garrafa de água destilada. Gately garroteava o braço direito com os dentes, agora, de tão inútil que estava o esquerdo.
Fackelmann estava com um cheiro péssimo.
Gately apagou e entrou num sonho em que estava num ônibus da linha Beverly-Needham cujas laterais diziam ÔNIBUS MODELO: A LINHA CINZA. Na sua memória letárgica mais de quatro anos depois no St. E. ele percebe que esse ônibus é o ônibus do sonho que não acabava e não ia a lugar nenhum, mas tem a revoltante noção de que a conexão entre os dois ônibus é também um sonho, ou está num sonho, e é agora que a febre dele retorna a novas altitudes e a linha no monitor cardíaco fica com um dentinho esquisito como uma serrilha no primeiro e no terceiro vértices, o que faz uma luz âmbar piscar no posto de enfermagem lá do corredor.
Quando a campainha tocou de novo eles estavam assistindo o filme das chamas tarde da noite. Agora a voz da coitadinha da Pamela Hoffman-Jeep chegou a eles pelo interfone. O interfone e o botão que abria as portas da frente do complexo de apês ficavam os dois lá do outro lado da sala de estar, perto da porta do apartamento. O teto inflava e retrocedia. Fackelmann tinha posto a mão numa forma de garra e estava examinando a garra à luz das chamas do TP. O Monte Dilaudid tinha um grande desmoronamento numa encosta; uma avalanche desastrosa rumo ao Lago Urina não era impossível. P. H.-J. soava bêbada como um canadôncio. Ela disse pra deixarem ela entrar. Ela disse que sabia que eles estavam ali. Ela usou o verbo festar várias vezes. Fackelmann cochichava que era mentira. Gately lembra que tinha que se cutucar na bexiga pra poder saber se precisava ir ao banheiro. A Unidade dele parecia pequena e gelada contra a perna, dentro do jeans molhado. O cheiro de amoníaco da urina, o teto que respirava, a voz feminina bêbada e distante… Gately esticou as mãos no escuro procurando as grades do cercadinho, se agarrou a elas com as mãos gorduchas, se pôs de pé. Ele se levantar foi mais questão do chão se abaixar. Ele oscilava como um bebezão. O piso do apê abaixo dele fintava para a direita, para a esquerda, cercando e procurando uma brecha para atacar. As janelas de luxo enfeitadas de estrelas. Fackelmann tinha feito a garra ganhar vida em forma de aranha e estava deixando a aranha escalar lentamente a região do seu peito. A luz das estrelas era enodoada; não havia estrelas distintas. Tudo fora da linha de fogo do monitor de cartuchos estava escuro como a noite. A campainha soava enfurecida e a voz, patética. Gately esticou um pé na direção da campainha. Ele ouviu Fackelmann dizer pra aranha da garra da mão que ela estava presenciando o nascimento de um império. Aí quando Gately pôs o pé no chão não tinha nada lá. O chão se esquivou do pé dele e veio correndo ao seu encontro. Ele viu num relance o teto inflado e aí o chão o pegou na têmpora. Seus ouvidos badalaram. O impacto do chão contra ele sacudiu a sala toda. Uma caixa de plásticos de carteira se desequilibrou, caiu e abriu um leque de plásticos por todo o piso molhado. O monitor caiu da parede e projetou chamas carmesins no teto. O chão se apertou contra Gately, pressionando tudo, e ele caiu num cinza com o rosto esmagado virado para Fackelmann e para as janelas mais adiante, com Fackelmann estendendo a aranha em pleno ar pra ele poder inspecionar.