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Portanto, todas as coisas que o velho feiticeiro prometera vieram a concretizar-se. Coração de Ferro vivia num castelo maravilhoso com a princesa Consolação como sua noiva. Tinha roupas roxas e carmesim para vestir, e havia criados em toda a parte para o servirem. Ainda não podia falar, claro, pois isso quebraria a promessa que fizera ao feiticeiro, mas Coração de Ferro considerava que aquele silêncio não era uma provação assim tão má. Afinal, a um soldado raramente se pede opinião…

Excerto de Coração de Ferro

–Esse semblante carregado não te fica nada bem – murmurou Melisande na manhã seguinte.

Emeline tentou desenrugar a testa, mas teve a sensação de que, mesmo assim, a sua irritação era evidente. Estava a observar Samuel, afinal.

– Quem me dera que tivesses vindo ontem em vez de hoje.

Melisande ergueu ligeiramente uma sobrancelha.

– Se eu tivesse sabido que precisavas muito da minha companhia, teria vindo, querida. É por isso que estás com tão mau humor?

Emeline suspirou e entrelaçou o braço no da amiga.

– Não. O meu humor nada tem que ver contigo, mas tu fazes-me sentir mais calma.

Estavam no longo relvado aparado nas traseiras da Casa Hasselthorpe. Metade do grupo da festa tinha-se juntado ali para fazer tiro ao alvo, tendo a outra metade optado por ir até à cidade mais próxima ver o que lá havia de interessante. Lacaios erguiam alvos de lona pintada no extremo oposto do relvado. Atrás dos alvos havia fardos de palha para apanhar as balas que eram disparadas. Os cavalheiros que tencionavam participar andavam por ali a exibir as suas armas a damas que iriam ser, claro, a assistência.

– A arma de Mister Hartley é horrivelmente comprida – comentou Melisande. – É sem dúvida por isso que estás a fulminá-lo com os olhos de um modo tão feroz.

– Porque tem ele de estar afastado dos outros? – murmurou Emeline. Irritada, agarrou nas saias de riscas rosas e verdes. – É como se o homem fizesse coisas estranhas para ser diferente dos outros cavalheiros. Considero que o faz só para me exasperar.

– Pois, é provavelmente a primeira coisa em que pensa quando acorda de manhã. «Como é que hoje hei de exasperar Lady Emeline?»

Emeline olhou para a amiga, que lhe devolveu o olhar com grandes olhos castanhos inocentes.

– Estou a ser parva, não estou?

– Bem, querida, eu não disse parva…

– Não, mas nem tinhas de dizer. – Emeline suspirou. – Trouxe uma coisa que quero mostrar-te.

Melisande olhou-a, sobrancelhas erguidas.

– Hã?

– É um livro de contos de fadas que a minha velha ama costumava ler-nos. Encontrei-o recentemente, mas acho que está escrito em alemão. És capaz de o traduzir para mim?

– Posso tentar – disse a amiga. – Mas não te prometo nada. O meu alemão não é excecional e há muitas palavras que eu não conheço. Resultado de o ter aprendido com a minha mãe e não com um livro.

Emeline acenou com a cabeça. A mãe de Melisande era uma prussiana que nunca aprendera a falar bem inglês, apesar de se ter casado aos dezassete anos, e Melisande cresceu a falar tanto alemão como inglês.

– Obrigada.

Colocados os alvos, o último criado começou a andar em direção ao grupo dos atiradores. Os cavalheiros baixaram a cabeça em conjunto, de um modo grave, decidindo, evidentemente, por que ordem iriam disparar.

– Não sei porque faz ele desaparecer da minha mente todos os pensamentos inteligentes. – Emeline percebeu que estava de novo a olhar ameaçadoramente para Samuel.

Ao contrário dos outros cavalheiros, ele não se exibia a fazer pontaria com a arma e essas coisas. Segurava a espingarda com a coronha apoiada no solo, enquanto se mantinha descontraído, uma anca erguida. Viu o olhar dela e acenou com a cabeça, sem sorrir. Emeline afastou rapidamente o olhar, mas continuou a ver, na sua memória, o casaco simples, castanho, as perneiras de couro baço, agora familiares, e o vento a embaraçar-lhe o cabelo na cabeça descoberta. Nada do seu vestuário o recomendava. Mesmo estando os outros cavalheiros vestidos para fazer tiro ao alvo no campo, Samuel podia ter passado por criado, com a sua roupa muito mais simples. E, no entanto, ela tinha de se esforçar muito para se abster de olhar para ele outra vez.

Puxou um pedaço de renda junto ao pescoço.

– Ele beijou-me ontem.

Melisande estacou.

– Mister Hartley?

– Sim.

Sentia os olhos de Samuel a fitá-la, embora não tivesse voltado a olhar para ele.

– E tu devolveste-lhe o beijo? – perguntou a amiga, como se inquirisse o preço de fitas a um vendedor.

– Deus. – Emeline engasgou-se na palavra.

– Deduzo que isso significa sim – murmurou Melisande. – Ele é um homem bem-parecido, de uma forma bastante primitiva, mas nunca me passaria pela cabeça que te atraísse.

– E não atrai!

Mas o seu coração sabia que mentia. Aquilo era tal qual uma febre terrível. Na realidade, ela ficava corada sempre que ele se encontrava por perto. Era absolutamente incapaz de controlar o corpo – ou de se controlar a si própria – quando estava próximo daquele homem horrível. Emeline nunca antes sentira aquela loucura, nem sequer com Danny, e esse pensamento fê-la morder o lábio. Danny era tão jovem, tão alegre, e ela tinha sido jovem e alegre com ele. Não lhe parecia correto ter sentimentos mais fortes por outro homem – um homem que nem sequer era seu marido.

Melisande olhou para ela com ceticismo.

– Então, de futuro vais evitá-lo, sem dúvida.

Emeline virou a cabeça de modo que Samuel ficasse fora do seu ângulo de visão. Em vez de olhar para ele, olhou fixamente um lago ornamental que ficava por trás dos alvos. Parecia estar cheio de canas. Lady Hasselthorpe devia ter mandado limpar o lago antes da festa. Mrs. Fitzwilliam estava sozinha perto da margem, pobre mulher.

– Não sei o que hei de fazer.

– Uma senhora sensata procuraria a companhia do noivo, claro – murmurou Melisande.

Jasper fazia parte do grupo de atiradores, naturalmente. Adorava tudo o que tivesse que ver com exercício físico. Ao contrário de Samuel, porém, estava em constante movimento – num momento acocorado no chão por qualquer motivo, no seguinte dava um salto até junto dos criados para ajudar a endireitar os alvos. Por um momento, Emeline recordou o que Samuel dissera acerca de Jasper: que ele lutava como se não tivesse medo nenhum. Esse não era, certamente, o homem que conhecia. Mas, por outro lado, talvez uma mulher nunca chegasse a conhecer os homens da sua vida.

Emeline abanou a cabeça. Nada disso interessava.

– Isto não tem nada que ver com o Jasper. Tu sabes.

– Tu tens um acordo com ele – recordou-lhe a amiga, com imparcialidade.

– Um acordo, sim. É exatamente disso que se trata. O coração do Jasper não está implicado.

– Não? – Melisande olhou para os pés, franzindo os lábios. – Eu acho que ele tem um fraquinho por ti.

– Vê-me como uma irmã.

– Isso pode ser a base de uma união afetuosa…

– Ele tem outras mulheres.

Melisande não disse nada, e Emeline perguntou a si própria se não teria chocado a amiga. Era de esperar que um cavalheiro aristocrata tivesse casos amorosos, tanto antes como depois do casamento, mas considerava-se falta de tato falar dessas coisas em voz alta.

– Antes, nunca te queixavas disso – disse Melisande. Os cavalheiros começavam a dispor-se de acordo com quem dispararia primeiro. – Anda, vamos ver o tiro ao alvo.

Caminharam na direção dos atiradores.

– Continuo a não ter qualquer razão de queixa em relação aos sentimentos do Jasper por mim – disse Emeline, em voz baixa. – De facto, creio que a amabilidade para com o cônjuge é algo de muito bom no casamento. Muito melhor do que uma paixão desesperada.

Ela sentiu o olhar acre de Melisande, mas a amiga não fez qualquer comentário. Tinham-se, entretanto, aproximado do grupo de atiradores. O duque de Lister deu um passo em frente e exibiu-se a preparar o tiro. Tinham-lhe dado o primeiro lugar, sem dúvida, em função da sua classe social.

– Homem odioso – murmurou Melisande.

Emeline ergueu as sobrancelhas.

– O duque?

– Mmm. Anda com a amante atrás como se fosse um cachorro à trela.

– Ela parece não se importar. – Emeline voltou a lançar um olhar a Mrs. Fitzwilliam. Protegia os olhos para ver o tiro, o cabelo louro a brilhar ao sol. Parecia descontraída.

– Não pode revelar qualquer enfado, pois não, se quiser manter a sua posição? – Melisande franziu-lhe o sobrolho e Emeline sentiu-se de repente uma imbecil. – Mas, mesmo assim, deve ser horrível. Nenhuma das senhoras fala com ela e, no entanto, ele é perfeitamente respeitável.

O duque levou a arma ao ombro.

Melisande tapou os ouvidos com as mãos quando ele disparou e encolheu-se quando o som do tiro ecoou na Casa Hasselthorpe.

– Porque têm as armas de fazer tanto barulho?

– Para nós, senhoras, podermos ficar, como convém, impressionadas, espero – disse Emeline, distraída.

Um criado avançou cerimoniosamente para o alvo e pintou um círculo preto à volta do buraco da bala para que todos pudessem ver onde esta o atingira. O tiro de Lister foi quase na beira do alvo. Ele fez uma careta, mas os espetadores bateram palmas com entusiasmo. Mrs. Fiztwilliams começou a avançar como que para felicitar o seu protetor, mas o homem não reparou nela e virou-se para falar em voz muito alta com Lorde Hasselthorpe. Emeline viu a mulher parar, indecisa, antes de sorrir e voltar para a margem do lago. Melisande tinha razão. Não era fácil ser-se amante.

– Que aspeto viril têm os cavalheiros! – Lady Hasselthorpe esvoaçou na direção delas. Naquele dia, a anfitriã estava vestida de algodão com pintas cor-de-rosa sobre umas anquinhas demasiado largas. Muitas fitas rosa e verdes decoravam as suas saias elaboradamente pregueadas, e ela segurava na mão um bordão branco de pastor. Ao que parecia, imaginava-se uma pastora rústica, embora Emeline duvidasse de que muitas pastoras usassem anquinhas enquanto tomavam conta das ovelhas. – Eu gosto tanto de ver os cavalheiros a exibir as suas proezas.

Foi interrompida por outro enorme estrondo.

Melisande assustou-se com o som.

– Encantador – disse ela, com um sorriso forçado.

– Oh, e a seguir é Mister Hartley com a sua arma esquisita. – Lady Hasselthorpe olhou para os cavalheiros com os olhos semicerrados – via-se que era míope, mas recusava-se a usar óculos. – Acham que vai disparar convenientemente com um cano tão comprido? Se calhar, explode. Seria muito emocionante!

– Absolutamente – disse Emeline.

Samuel avançou para a marca e ficou um instante apenas a olhar para o alvo. Emeline franziu o sobrolho, sem saber o que ele fazia. Então, quase mais depressa do que o seu olhar era capaz de acompanhar, ele levou a espingarda ao ombro, fez pontaria e disparou.

Houve um silêncio atónito na assistência. O criado do pincel avançou para o alvo. Samuel já se tinha virado para o lado, apesar de todas as outras pessoas estarem à espera para ver onde é que a bala acertara. Solenemente, o criado pintou um círculo preto mesmo no centro do alvo.

– Meu Deus, ele acertou em cheio – murmurou por fim um dos cavalheiros.

As senhoras bateram palmas, aglomerando-se os cavalheiros em volta de Samuel, para examinar a sua arma.

– Deus, odeio o som de uma arma a disparar – murmurou Melisande enquanto baixava as mãos.

– Devias ter trazido algodão para os ouvidos – disse, distraída, Emeline.

Samuel não pestanejara quando disparou. Nem quando levou a arma ao ombro, nem com o som do disparo, e nem quando o fumo do fuzil pairou sobre ele. Os outros cavalheiros manejavam as armas com facilidade; talvez fossem à caça ou fazer tiro ao alvo com bastante frequência em festas como aquela. Mas nenhum deles revelara a confiança absoluta que Samuel exibiu. Emeline imaginava que ele disparara aquela arma no escuro, enquanto corria, ou enquanto era atacado. Provavelmente disparara.

– Sim – resmungou Melisande –, a minha aparência melhoraria, decerto, se eu tivesse algodão a sair-me das orelhas como um coelho.

Emeline riu-se perante a imagem da amiga com orelhas de coelho, e Samuel virou-se como se conseguisse ouvir o seu riso. Ela susteve a respiração quando os seus olhos se encontraram. Ele ficou a olhar por momentos, os olhos escuros intensos, mesmo à distância que os separava, e depois virou-se quando Lady Hasselthorpe lhe disse qualquer coisa. Emeline sentiu o sangue pulsar-lhe na cabeça.

– Que hei de eu fazer? – sussurrou.

– BELO TIRO, esse – murmurou Vale atrás dele.

– Obrigado.

Sam viu o anfitrião preparar-se para disparar. Hasselthorpe tinha os pés demasiado juntos e corria o risco de cair ou pelo menos de cambalear quando disparasse.

– Mas, afinal, o senhor sempre foi um bom atirador – continuou Vale. – Lembra-se daquela vez em que apanhou cinco esquilos para o jantar?

Sam encolheu os ombros.

– Não que isso servisse de muito. Mal chegaram para encher metade da panela do estufado. Demasiado magricelas.

Sabia que Lady Emeline estava a menos de seis metros dele, a cabeça junto à da amiga, e perguntava a si próprio de que é que as senhoras falariam. Ela evitava o seu olhar.

– Magricelas ou não, eram carne fresca muito bem-vinda. Bem, o Hasselthorpe vai ao chão, não vai?

– Talvez.

Ficaram calados enquanto o anfitrião espreitou pelo cano, puxou o gatilho e depois, inevitavelmente, não conseguiu impedir que a arma desse um coice quando disparou. O tiro falhou, não acertando sequer no alvo. A amiga de Lady Emeline tapou os ouvidos e encolheu-se.

– Pelo menos não caiu – murmurou Vale. Parecia um pouco desiludido.

Sam virou-se para olhar para ele.

– Já tentou saber alguma coisa a respeito do cabo Craddock?

Vale balançou ociosamente sobre os tacões.

– Tenho a morada que o Thornton nos deu e descobri onde fica Honey Lane – a casa do Craddock é aí.

Sam observou-o por um momento.

– Ótimo. Então amanhã não devemos ter problemas para a encontrar.

– Nenhuns – disse, alegremente, Vale. – Recordo o Craddock como um tipo sensato. Se alguém puder ajudar, tenho a certeza de que é ele.

Sam acenou com a cabeça e voltou a olhar em frente, embora não reparasse quem disparou a seguir. Oxalá Vale tivesse razão e Craddock pudesse ajudá-los.

Estavam a ficar sem sobreviventes para interrogar.

EMELINE ALISOU a seda cor de coral franzida sobre as anquinhas, ao entrar, nessa noite, no salão de baile dos Hasselthorpe. A sala cavernosa tinha sido redecorada recentemente, segundo Lady Hasselthorpe, e parecia que não tinham olhado a despesas. As paredes eram rosa-pálido, com trepadeiras douradas barrocas a delinear teto, pilastras, janelas, portas e tudo o resto de que os decoradores conseguiram lembrar-se. Ao longo das paredes, também orladas de folhas douradas barrocas, havia medalhões pintados com cenas pastorais de ninfas e sátiros. O conjunto era como uma flor açucarada – avassaladoramente doce.

Naquele preciso momento, contudo, Emeline estava menos preocupada com o grandioso salão de baile dos Hasselthorpe do que com Samuel. Não o via desde a sessão de tiro ao alvo dessa tarde. Tentaria ele dançar, mesmo depois do problema no baile dos Westerton? Ou renunciaria completamente à experiência? Era um disparate, sabia, preocupar-se tanto com um assunto que não lhe dizia respeito, mas não podia deixar de ter esperanças de que Samuel tivesse decidido manter-se nos seus aposentos nessa noite. Seria terrível se ele voltasse a ficar tão afetado ali.

– Lady Emeline!

A voz aguda trinou ali perto, e Emeline virou-se, nada surpreendida, deparando-se-lhe a anfitriã a olhá-la atentamente. Lady Hasselthorpe envergava um vestido cor-de-rosa, dourado e verde cor de maçã, em forma de sino tão extravagantemente largo que tinha de andar de lado para abrir caminho por entre os convidados. O rosa das suas saias condizia na perfeição com o rosa das paredes do salão de baile.

– Lady Emeline! Tenho tanto prazer em vê-la – exclamou Lady Hasselthorpe como se não tivesse visto Emeline menos de duas horas antes. – Que acha de pavões?

Emeline pestanejou.

– São uma ave muito bonita.

– Sim, mas esculpidos em açúcar? – Lady Hasselthorpe tinha chegado ao lado dela e nessa altura aproximou-se mais, os seus lindos olhos azuis genuinamente preocupados. – Quer dizer, o açúcar é todo branco, não é? Enquanto os pavões são o contrário, não são? Não são brancos. Eu acho que é isso que os faz tão encantadores, todas as cores das suas penas. Portanto, se uma pessoa tem um pavão de açúcar, não é o mesmo que ter um pavão verdadeiro, pois não?

– Não. – Emeline afagou o braço da anfitriã. – Mas tenho a certeza de que, apesar disso, os pavões de açúcar serão maravilhosos.

– Mmm. – Lady Hasselthorpe não se mostrou convencida, mas os seus olhos já se tinham desviado para um grupo de senhoras que estavam mais à frente de Emeline.

– Viu Mister Hartley? – perguntou Emeline antes de a anfitriã esvoaçar para longe.

– Vi. A irmã dele é muito bonita e uma boa dançarina. Acho sempre que isso ajuda, não acha?

E Lady Hasselthorpe lá se foi, falando sobre sopa de tartaruga a uma matrona de olhos espantados.

Emeline soprou, frustrada, uma lufada de ar. Nessa altura, viu Rebecca, que acompanhava suavemente o ritmo dos outros dançarinos, mas onde estava Samuel? Emeline começou a contornar os dançarinos, avançando a custo para o lado oposto do salão de baile. Passou por Jasper, que sussurrava qualquer coisa ao ouvido de uma rapariga, que fez a criança corar, e depois foi barrada por uma falange de homens idosos, de costas voltadas para ela enquanto cavaqueavam.

– Vi o livro de contos de fadas que deixaste no meu quarto – disse Melisande, atrás dela.

Emeline virou-se. A amiga usava um tom castanho-acinzentado que a fazia parecer um corvo poeirento. Emeline ergueu as sobrancelhas, mas não comentou. Já haviam tido essa discussão, o que não alterara nada o trajar da amiga.

– És capaz de o traduzir?

– Acho que sim. – Melisande abriu o leque e abanou-o suavemente. – Só olhei para uma ou duas páginas, mas consegui decifrar algumas das palavras.

– Ah, ótimo.

Mas a sua voz deve ter parecido ausente. Melisande olhou para ela abruptamente.

– Viste-o?

Infelizmente, não havia necessidade de explicar quem ele era.

– Não.

– Acho que o vi sair para o terraço.

Emeline olhou para o sítio onde tinham aberto portas de vidro para deixar entrar a brisa da noite. Tocou no braço da amiga.

– Obrigada.

– Hum. – Melisande fechou o leque com um estalido. – Tem cuidado.

– Vou ter. – Emeline já se virara, afastando-se através da multidão.

Mais uns passos e estava junto às portas que conduziam ao jardim. Deslizou através delas. Apenas para ficar desiludida. Havia vários casais lá fora, passeando no terraço de pedra, mas não viu a silhueta caraterística de Samuel. Relanceava em volta à medida que ia avançando, e depois sentiu-o.

– Está encantadora, esta noite. – A respiração dele roçou-lhe no ombro nu, provocando-lhe pele de galinha.

– Obrigada – murmurou.

Emeline tentou olhá-lo no rosto, mas ele agarrara-lhe a mão e enfiara-a no cotovelo.

– Vamos passear?

A pergunta era retórica, mas, mesmo assim, ela acenou com a cabeça. O ar da noite era um alívio depois do calor do salão de baile. A conversa dos convidados foi-se desvanecendo à medida que eles atravessavam o terraço em direção a uns degraus largos que levavam a um caminho de gravilha. No jardim, havia lanternas minúsculas suspensas dos ramos de árvores de fruto, que cintilavam como pirilampos no lusco-fusco outonal.

Emeline estremeceu.

A mão dele apertou-lhe mais a sua.

– Se tiver frio, podemos voltar para dentro.

– Não, estou bem. – Olhou para o seu perfil cheio de sombras. – E o senhor, tem?

Ele deu uma risadinha abafada.

– Mais ou menos. Deve achar que sou um idiota.

– Não.

Ficaram, então, calados, os seus passos a ranger na gravilha. Emeline pensara que ele podia tentar levá-la para fora do caminho, para a escuridão, mas ele manteve-se nas veredas certas e iluminadas.

– Tem saudades do Daniel? – perguntou ele, e, por um momento, Emeline interpretou-o mal, pensando que se referia ao seu marido falecido.

Depois, compreendeu.

– Sim, passo o tempo preocupada a pensar que pode estar a ter pesadelos. Afligem-no por vezes, como afligiam o pai dele.

Ela sentiu que Samuel olhava para ela.

– Como era o pai dele?

Emeline olhou, às cegas, para o atalho escuro.

– Era jovem. Muito jovem. – Lançou-lhe um olhar rápido. – Deve achar que é um disparate dizer isto, mas é verdade. Não compreendi nessa altura, porque eu também era jovem. Ele não passava de um rapaz quando nos casámos.

– Mas amava-o – disse ele, com serenidade.

– Sim – sussurrou ela. – Desesperadamente. – Era quase um alívio admitir quão apaixonada estivera por Danny. Quão prostrada de desgosto estivera devido à sua morte.

– Ele amava-a?

– Oh, sim. – Nem sequer teve de pensar. O amor de Danny havia sido tranquilo e natural, uma coisa de que ela tinha a certeza. – Dizia que se apaixonara por mim à primeira vista. Foi num baile, como este, e tante Cristelle apresentou-nos. Ela conhecia a mãe do Danny.

Ele acenou com a cabeça, sem falar.

– E ele mandava-me flores e levava-me a passear e fazia tudo e mais alguma coisa. Acho que as nossas famílias quase ficaram surpreendidas quando anunciámos o nosso noivado. Tinham-se esquecido de que ainda não estávamos noivos.

Esses haviam sido dias de ouro, mas estavam já um pouco turvos. Alguma vez fora tão jovem?

– Era um bom marido?

– Sim. – Ela sorriu. – Bebia e jogava, às vezes, mas todos os homens o fazem. E dava-me presentes, dirigia-me os elogios mais amorosos.

– Parece o casamento ideal. – A sua voz era inexpressiva.

– E era. – Estaria ele com ciúmes?

Ele parou e olhou-a, e ela viu que não havia qualquer ciúme nos seus olhos.

– Então, porque, depois de um primeiro casamento ideal, cheio de amor, quer um segundo sem amor?

Ela arfou, sentindo-se como se ele lhe tivesse batido. Levantou a mão, quase sem se aperceber, ou como defesa ou para lhe bater também, mas ele agarrou-lhe o pulso e puxou-o para o lado, deixando-a desprotegida.

– Porquê, Emeline?

– Não é da sua conta.

A voz dela tremia, por muito que ela se esforçasse por controlá-la.

– Acho que é, minha senhora.

– Vem aí alguém – silvou ela. O atalho estava deserto, à exceção deles, mas ela sabia que não ia ficar assim durante muito tempo. – Largue-me.

– Mentiu-me. – Ele ignorou o pedido, chegando o rosto, com os seus olhos analíticos, para junto dela. – Afinal, amava-o.

– Sim! Amava-o, e ele morreu e deixou-me. – A respiração tropeçou nas palavras traiçoeiras. – Deixou-me completamente sozinha.

Ele continuou a olhá-la como se pudesse ver-lhe o interior da cabeça para lhe arrancar a própria alma.

– Emeline…

– Não. – Libertou-se dele e largou a correr.

Correu pelo atalho acima para longe de Samuel como se fugisse de demónios.

O DIA FICARA cinzento na altura em que Sam e Lorde Vale saíram, ao início da tarde seguinte. Sam, montado no cavalo emprestado, sentiu um arrepio e desejou que não chovesse no caminho de regresso a casa. Não tinha conseguido falar com Emeline durante toda a manhã. Sempre que a via, ela estava, intencionalmente, na companhia de alguém. A sua recusa em deixá-lo falar sobre os seus problemas incomodava-o. Na noite anterior tocara num ponto sensível, no jardim, sabia-o. Ela amara o primeiro marido. De facto, Sam tinha a sensação de que Emeline era capaz de um amor profundo, inabalável.

E talvez fosse esse o problema. Quantas vezes poderia ela dar esse género de amor e perdê-lo sem sequer sentir o efeito? Imaginou-a um fogo que se cobria a si mesmo, ardendo devagar para conservar as brasas, a fim de não se apagar completamente. Seria preciso um homem determinado para voltar a avivar essas chamas.

O cavalo de Sam abanou a cabeça, agitando a rédea, e ele fez regressar os seus pensamentos ao presente. Ele e Vale dirigiam-se à cidade vizinha de Dryer’s Green, onde vivia o cabo Craddock. Vale estivera incaracteristicamente calado enquanto prepararam os cavalos e trotearam pelo longo caminho até à estrada principal.

Quando chegaram ao portão de ferro forjado que ficava no fim desse caminho, Vale falou.

– A sua pontaria foi espantosa durante todo o dia de ontem. Acho que acertou sempre no centro do alvo em todos os disparos.

Sam olhou para o outro homem, admirado com a escolha do assunto. Talvez Vale estivesse apenas a tagarelar.

– Obrigado. O senhor não disparou, eu reparei.

No maxilar de Vale moveu-se um pequeno músculo.

– Fiquei farto de armas e de tiros, na guerra.

Sam acenou com a cabeça. Isso, compreendia ele. Aristocrata ou soldado raso, tinha havido na guerra demasiadas experiências que não se suportava repetir.

Vale olhou para ele.

– Acho que me considera um cobarde.

– Longe disso.

– Amabilidade da sua parte. – O cavalo do outro homem espantou-se com uma folhagem e, por um momento, ele ocupou-se das rédeas. Depois, disse: – É estranho; não me importo de ouvir tiros ou de sentir o cheiro do fumo. O problema é segurar uma arma nas mãos. O peso e a sensação. De alguma forma, traz tudo de novo à memória e a guerra torna-se outra vez real. Demasiado real.

Sam não respondeu. Como é que uma pessoa podia responder a uma observação daquelas? Às vezes, a guerra também era demasiado real para ele. Talvez a guerra continuasse a viver para todos os soldados que haviam regressado a casa – os feridos e os que apenas pareciam incólumes.

Tinham então virado para a estrada, seguindo uma sebe antiga ao longo de um dos lados, sendo o outro delimitado por um muro de pedra solta. Para lá destas barreiras, os campos castanhos e dourados estendiam-se a perder de vista. Um grupo de ceifeiros trabalhava num campo, as mulheres com as saias apanhadas nos joelhos, os homens em camisa.

– Sabia que o Hasselthorpe também andou na guerra? – perguntou Vale, de súbito.

Sam lançou-lhe um olhar rápido.

– A sério?

Hasselthorpe não tinha uma postura particularmente militar.

– Foi ajudante de campo de um dos generais – disse Vale. – Agora não me lembro de qual.

– Ele esteve no Quebeque?

– Não. Não tenho a certeza se ele chegou a ver algum combate. Acho que ele não esteve muito tempo na guerra, de qualquer modo, antes da herança.

Sam acenou com a cabeça. Muitos aristocratas procuravam comissões leves no exército de Sua Majestade. Se eram ou não talhados para a vida militar tinha muito pouco que ver com a escolha da sua carreira.

A conversa parou até entrarem nos arredores de Dryer’s Green, uns minutos mais tarde. Era uma cidadezinha movimentada, das que têm um mercado muito animado todas as semanas. Passaram a oficina do ferreiro e a loja de um sapateiro, e avistaram uma hospedaria.

– Disseram-me que Honey Lane é mesmo aqui. – Vale indicou uma pequena rua logo a seguir à hospedaria.

Sam acenou com a cabeça e virou o cavalo para o beco. Havia ali apenas uma casa – uma casita de campo humilde, o colmo escurecido pela idade. Sam olhou para Vale, de sobrancelhas erguidas. O visconde encolheu os ombros. Ambos desmontaram e prenderam os cavalos a ramos baixos perto do muro de pedra que separava a casa da rua. Vale destrancou o portão de madeira e depois subiram o caminho de tijolo. Em tempos, aquele sítio devia ter sido bonito. Havia sinais de um jardim, há muito negligenciado, e a casa, embora pequena, era bem proporcionada. Era evidente que Craddock ficara numa situação difícil. Ou tinha deixado de ser capaz de cuidar da casa.

Com esse pensamento desagradável, Sam bateu à porta baixa.

Não apareceu ninguém. Sam esperou um momento e voltou a bater, desta vez com mais força.

– Se calhar, não está em casa – disse Vale.

– Descobriu onde é que ele trabalha? – perguntou Sam.

– Não, eu…

Mas a porta abriu-se a ranger, interrompendo Vale. Uma mulher de meia-idade olhou-os fixamente através de uma fresta de um palmo. Tinha uma touca branca, mas, de resto, estava toda vestida de preto, com um xaile cruzado no peito e preso à cintura.

– Sim?

– Desculpe, minha senhora – disse Sam. – Mas nós estamos à procura de Mister Craddock. Disseram-nos que vive aqui.

A mulher arfou um pouco e Sam ficou tenso.

– Realmente vivia aqui – disse ela. – Mas já não vive. Morreu. Enforcou-se há um mês.