11

Passaram-se seis anos de felicidade conjugal – pois que homem não seria feliz sendo rico e casado com uma linda mulher que o amava? No sexto ano, a felicidade de Coração de Ferro atingiu novo auge, pois a princesa descobriu que estava à espera de um filho. Que júbilo invadiu a Cidade Brilhante! As pessoas dançavam nas ruas, e o rei lançou moedas de oiro sobre a populaça na noite em que a princesa deu à luz um filho. Este bebezinho era o herdeiro do trono e, um dia, iria usar na cabeça uma coroa de rei. Nessa noite, Coração de Ferro sorriu ao filho e à mulher, sabendo que em breve poderia dizer os seus nomes em voz alta. Pois esse era o terceiro dia antes do fim dos seus sete anos de silêncio…

Excerto de Coração de Ferro

–Alcaparras – disse Lady Hasselthorpe. Emeline engoliu um pedacinho de ganso e olhou para a anfitriã.

– Como?

– Quer dizer… – Lady Hasselthorpe olhou para os convidados sentados à sua longa e elegante mesa de jantar, os quais tinham, todos, parado para olhar para ela. – De onde é que elas vêm?

– Da cozinheira! Ah! – exclamou um cavalheiro jovem.

Ninguém lhe prestou atenção, exceto a jovem senhora que estava a seu lado e que deu uma risadinha, apreciativamente.

Lorde Boodle, um cavalheiro idoso com um rosto magro e pálido sob uma cabeleira comprida bastante hirsuta, aclarou a voz.

– Creio que são rebentos.

– A sério? – Lady Hasselthorpe abriu muito os seus lindos olhos azuis. – Mas isso parece muito singular. Eu pensava que pudessem ser da família das ervilhas, mas apenas mais amargas, se percebem o que eu quero dizer.

– Completamente, completamente, minha querida – grunhiu Lorde Hasselthorpe à esposa, da outra extremidade da mesa. Às vezes, uma pessoa interrogava-se como era possível Lorde Hasselthorpe, um cavalheiro magro e taciturno sem ponta de sentido de humor, ter casado com Lady Hasselthorpe. Aclarou a voz ameaçadoramente. – Como eu ia dizendo…

– Ervilhas muito, muito amargas – disse Lady Hasselthorpe. Olhava, de sobrolho carregado, para a poça de molho que rodeava a fatia de ganso, no seu prato. Nela nadavam alcaparras dispersas. – Não sei se gosto delas, na realidade, coisinhas amargas. Ali estão elas escondidas num molho perfeitamente simples, e quando mordo uma, assusta-me. Não lhe acontece? – Apelou ao duque de Lister, sentado à sua direita.

O duque era conhecido pela sua oratória no Parlamento, mas nessa altura pestanejou e parecia estar atrapalhado à procura de palavras.

– Ah…

Emeline decidiu salvar a conversa.

– É melhor mandar o criado retirar o seu prato?

– Oh, não! – Lady Hasselthorpe sorriu de uma forma encantadora. Naquela noite, o azul do seu vestido condizia com os seus olhos azuis, e ela usava um colar de pérolas justo à garganta que lhe realçava o pescoço longo e esbelto. Era, na verdade, extraordinariamente bela. – Só tenho de ter cuidado com as alcaparras, não é? – E enfiou na boca um pedaço de ganso.

– Mulher corajosa – resmungou o duque.

A anfitriã lançou-lhe um sorriso fulgurante.

– Sou, não sou? Mais corajosa do que Lorde Vale e Mister Hartley, acho eu. Nem sequer voltaram da aldeia para o jantar. A não ser que… – olhou para Emeline com uma expressão inquiridora – estejam escondidos nos seus aposentos?

Na realidade, este era um assunto em relação ao qual Emeline estava bastante preocupada. Onde é que Samuel e Jasper podiam ter ido? Tinham saído logo depois de almoço e havia horas que estavam fora.

Mas Emeline esboçou um sorriso despreocupado à anfitriã.

– Tenho a certeza de que pararam na taberna da aldeia ou algo parecido. Sabe como são os cavalheiros.

Lady Hasselthorpe abriu os olhos como se não estivesse certa de saber, ou não, como são os cavalheiros.

– Na verdade. – De forma inesperada, Lister aclarou a voz. – Creio que Lorde Vale está na estufa.

Lady Hasselthorpe olhou-o fixamente.

– O que está ele lá a fazer? Não sabe que o jantar não é servido na estufa?

– Creio que ele está, ah – o rosto do duque ficou vermelho –, indisposto.

– Disparate – disse a anfitriã, bruscamente. – A estufa é um sítio disparatado para se estar indisposto. Escolheria, com certeza, a biblioteca?

As sobrancelhas bastante peludas do duque ergueram-se perante aquela afirmação, mas Emeline só reparou vagamente. O que estaria Jasper a fazer na estufa, indisposto? Tivera de voltar a casa muito tempo antes para ficar nesse estado, mas ela não o vira. Mais importante, onde se encontrava Samuel?

– Viu Mister Hartley? – perguntou a Sua Graça, interrompendo a sua explicação rebuscada das razões pelas quais um cavalheiro podia optar por se indispor na estufa.

– Lamento, minha senhora, não o vi.

– Bem, terão ambos de ficar sem jantar – disse, alegremente, Lady Hasselthorpe. – E de ir para a cama sem comer.

Emeline tentou sorrir perante semelhante graça, mas achou que o sorriso não chegou a formar-se. O jantar durou quase mais uma hora, e ela não fazia ideia nenhuma de como responder à conversa dos vizinhos. Por fim, depois de um prato de queijo e peras, para o qual mal conseguiu olhar, a refeição terminou. Emeline ficou apenas o tempo suficiente para não parecer indelicada; depois correu em direção à estufa. Atravessou uma série de vestíbulos antes de os saltos soarem levemente no chão de ardósia que anunciava a entrada para a sala. Uma bonita porta de vidro e madeira mantinha o calor húmido lá dentro.

Emeline empurrou a porta.

– Jasper?

Tudo o que ouvia era o pingar de água. Fez um esgar de desespero e fechou a porta atrás de si.

– Jasper?

Ouviu qualquer coisa a estalar mais à frente, e depois um palavrão masculino. Sem dúvida nenhuma, Jasper. A estufa era um edifício comprido, em forma de buraco de fechadura, com os lados e o teto de vidro. Aqui e ali algumas plantas verdes em baldes conferiam à sala o seu objetivo, mas esta era, sobretudo, uma tolice ornamental. Emeline agarrou nas saias para percorrer o corredor de ardósia. Perto do fim, contornou uma estátua de Vénus de pedra e encontrou Jasper recostado num banco. Atrás dele, havia uma fonte no centro do espaço redondo, na extremidade da estufa.

– Cá estás tu! – disse ela.

– Estou?

Jasper tinha os olhos fechados. Estava inclinado para o lado, o cabelo e a roupa em desalinho, e, francamente, ela não compreendia como é que ainda não caíra.

Emeline pôs-lhe uma mão no ombro e abanou-o.

– Onde está o Samuel?

– Para com isso! ’Tás a pôr-me tonto.

Tentou bater-lhe no braço, sem abrir os olhos, e naturalmente falhou por muito.

Senhor! Devia estar bêbado. Emeline franziu a testa. Os cavalheiros gostavam mesmo de beber de mais, e Jasper, em especial, parecia ser excessivamente apreciador de bebidas alcoólicas, mas ela nunca o tinha visto bêbado de verdade. Alegre, sim. Bêbado, não. E em público, muito menos. A sua preocupação aumentou.

– Jasper! O que aconteceu na aldeia? Onde está o Samuel?

– Morreu.

Um estremecimento de puro horror percorreu Emeline antes de ela perceber que, simplesmente, não podia ser. De certeza saberiam se Samuel tivesse tido um acidente de qualquer espécie? A cabeça de Jasper descaíra-lhe para a frente, o queixo apoiado no peito. Emeline ajoelhou-se aos seus pés, para tentar ver-lhe a cara.

– Jasper, querido, por favor, conta-me o que aconteceu.

Os seus olhos abriram-se de repente, de um intenso azul-turquesa e tão tristes que Emeline arfou.

– Aquele tipo. Matou-se. Oh, Emmie, isto nunca mais tem fim, pois não?

Ela tinha apenas uma vaga ideia do que ele estava a arengar, mas era óbvio que algo terrível sucedera na aldeia.

– E o Samuel? Para onde foi o Samuel?

Jasper esticou um braço com brusquidão e quase caiu para trás, para dentro da fonte. Emeline agarrou-o pela cintura para o equilibrar, embora aparentemente ele não tenha dado nem pela sua queda por pouco, nem pela ajuda dela.

– Por aí, algures. Desapareceu no momento em que largámos os cavalos. A correr. Grande corredor, o Sam, fantástico. Alguma vez o viste correr, Emmie?

– Não, não vi. – Onde quer que Samuel estivesse, pelo menos estava vivo. Emeline suspirou.

– Vamos lá meter-te na cama, meu querido. Não devias ficar aqui fora neste estado.

– Mas eu não estou fora. – O cómico rosto de cão de caça de Jasper contorceu-se de confusão. – Estou contigo.

– Mmm. No entanto, penso que ficarás muito melhor na cama.

Emeline puxou Jasper pela cintura, a experimentar. Para sua surpresa, ele levantou-se com facilidade. Uma vez de pé, ficou muito mais alto do que ela, balançando ligeiramente. Meu Deus, esperava conseguir levá-lo sozinha.

– Como queiras – disse Jasper quase sem se perceber, e colocou uma mão, como uma pata, no ombro dela. – Quem me dera que o Sam aqui estivesse. Podíamos fazer uma festa.

– Isso era uma verdadeira maravilha – ofegou Emeline, enquanto guiava Jasper pelo caminho. Ele cambaleou um pouco e encostou-se a uma laranjeira, partindo um ramo. Oh, que maçada.

– Ele é um tipo fantástico, já te disse?

– Mencionaste isso, sim. – Estavam, então, à porta e Emeline teve um momento de preocupação, tentando deslindar um meio de a abrir sem largar Jasper. Mas ele resolveu o problema, abrindo ele próprio a porta.

– Ele salvou-me – murmurou Jasper quando entraram no vestíbulo. – Trouxe a equipa de salvamento me’mo quando eu já pensava que aqueles selvagens m’iam cortar os meus berloques. Ups! – Parou e olhou para ela, envergonhado. – Não devia dizer isto à tua frente, Emmie. Sabes, acho que se calhar estou bêbado.

– A sério? Nunca teria imaginado – murmurou Emeline. – Não sabia que foi o Samuel quem levou auxílio.

– Correu três dias seguidos – disse Jasper. – Correu, correu, fartou-se de correr, mesmo c’um ferimento de faca de lado. É um grande corredor, é mesmo.

– Já disseste.

Tinham chegado às escadas e Emeline agarrou-o com mais força. Se ele caísse, deitava-a ao chão também; não havia forma de ela conseguir aguentar o seu peso. E era milagre que ninguém os tivesse visto até essa altura.

– Mas isso fê-lo sangrar muito – disse Jasper.

Emeline estivera concentrada nos degraus.

– Como?!

– Correr assim tanto. Os pés dele eram cotos ensanguentados quando chegou ao forte.

Emeline conteve bruscamente a respiração perante a terrível imagem.

– Como se agradece a um homem por fazer uma coisa dessas? – perguntou Jasper. – Correu até os pés ficarem cheios de bolhas. Correu até as bolhas rebentarem e sangrarem. E depois continuou a correr.

– Meu Deus – sussurrou Emeline.

Ela não fazia ideia. Estavam, nessa altura, à porta dos aposentos de Jasper, e ela sabia que não era correto entrar, mas não podia pura e simplesmente deixá-lo à entrada. E tratava-se de Jasper, por amor de Deus. Era a coisa mais parecida com um irmão que lhe restava neste mundo.

Emeline estendeu a mão para a maçaneta, mas foi salva pela porta a abrir-se. Pynch, o musculado criado de quarto de Jasper, estava à porta, absolutamente impassível.

– Posso ajudá-la, minha senhora?

– Oh, obrigada, Pynch. – Reconhecida, Emeline entregou-lhe o noivo ébrio. – É capaz de cuidar dele?

– Claro, minha senhora. – Se Pynch deixasse transparecer alguma expressão, seria de afronta, mas, na realidade, era impossível dizer.

– Obrigada. – Emeline sentiu-se aliviada por deixar Jasper ao cuidado de Pynch. Lançou um sorriso ao criado e depois apressou-se a descer as escadas.

Era imperativo encontrar Samuel.

ESTAVA A ANOITECER. O céu adquirira aquele tom plúmbeo que anunciava o fim da luz do dia.

E Sam continuava a correr.

Corria há horas. O tempo suficiente para ter chegado à exaustão. O tempo suficiente para ter ultrapassado a exaustão e ter ganho novas forças. O tempo suficiente para ter perdido essas forças e estar simplesmente a aguentar. O corpo movia-se ao ritmo repetitivo de uma máquina. Exceto que as máquinas não sentiam desespero. Por muito que corresse, não conseguia ultrapassar os seus pensamentos.

Um soldado morto por suicídio. Ter sobrevivido a todas as batalhas, às marchas, à comida podre, ao frio do inverno com roupa inadequada, às doenças que periodicamente varriam o regimento. Ter sobrevivido a tudo isso, são e salvo, quase um milagre, um dos poucos a sobreviver intactos ao massacre. Voltar a casa, a uma bonita casinha de campo, e a uma mulher dedicada. Devia ter ficado tudo por aí. O soldado regressado a casa, a guerra relegada para a história, e histórias contadas à lareira, no inverno. E, no entanto, Craddock pusera-se em pé em cima de um banco, atara uma corda ao pescoço e dera um pontapé ao banco.

Porquê? Era essa a pergunta que Sam não conseguia ultrapassar. Porquê, quando já tinha ludibriado a morte, porquê ir entregar-se de bom grado aos seus braços engelhados? Porquê agora?

Sentiu a respiração difícil ao subir ao cimo de um monte, as pernas a tremer de fadiga, os pés trespassados de dores a cada passo. A escuridão já se tinha instalado sobre os campos por onde corria, e isso não lhe agradava. A cada passada, surgia a possibilidade real de colocar mal o pé. De tropeçar numa toca de coelho ou numa pedra e cair. Mas ele não podia cair. Tinha de continuar a correr porque outros dependiam dele. Se parasse, então o motivo para correr seria, à partida, falso. Seria um cobarde, simplesmente a fugir de um combate. Ele não era cobarde. Sobrevivera ao combate. Matara homens, tanto brancos como índios. Sobrevivera à guerra e tornara-se um cavalheiro, um homem de posses e respeitado. Outros dependiam dele; outros inclinavam a cabeça ante as suas opiniões. Já quase ninguém o acusava de cobardia – pelo menos abertamente.

Sam cambaleou, o pé esquerdo a ficar preso. Mas não se foi abaixo. Não caiu. Deu meia volta, soluçando de dor, as estrelas turvas, lá em cima.

Continua a correr. Não desistas.

Craddock desistira. Craddock sucumbira ao negrume que se lhe infiltrava no espírito em certas alturas, aos pesadelos que lhe despedaçavam o sono, aos pensamentos que não conseguia afastar. Craddock dormia, agora. Em paz. Sem pesadelos nem temor pela sua própria alma. Craddock estava em descanso.

Não desistas.

EMELINE NÃO sabia o que a acordara já tarde naquela noite. Era certo que Samuel se movia sem um som, silencioso e discreto como um gato que regressa a casa de uma caçada. Mas, mesmo assim, ela acordou quando ele entrou no quarto.

Endireitou-se na cadeira junto à lareira.

– Onde tem andado?

Não pareceu surpreendido por ver Emeline no seu quarto. Tinha o rosto pálido e indecifrável à luz da vela enquanto caminhava para ela, estranhamente hirto. Ela olhou para baixo. Manchas escuras na carpete seguiam-lhe os passos. Quase o repreendeu por não tirar a lama dos pés, mas depois compreendeu. E, nesse momento, ficou completamente desperta.

– Oh, Deus do Céu, o que fez? – Levantou-se e agarrou-lhe o braço, atirando-o, desesperada, para a cadeira que tinha ocupado. – Que homem estúpido, estúpido! – Virou-se para pôr mais carvão no lume, depois aproximou uma vela. – O que fez? Que diabo lhe passou pela cabeça?

Fechou a boca porque o que viu à luz da vela quase a pôs doente. Sam continuara a correr mesmo depois de romper os mocassins. Estes não passavam de tiras de couro esfarrapadas em volta dos seus pés. E os seus pés, meu Deus, os seus pés. Não eram mais do que trapos ensanguentados, os cotos de que Jasper lhe falara apenas umas horas atrás. Mas agora eram reais e estavam à sua frente. Ela olhou, impetuosamente, em volta do quarto. Havia água, mas não estava quente, e onde é poderia encontrar panos para utilizar como ligaduras? Dirigiu-se à porta, mas ele estendeu a mão para lhe agarrar o braço.

– Fique.

A sua voz era gutural, áspera da exaustão, mas os olhos estavam focados nela.

– Fique.

Quantos quilómetros teria corrido?

– Tenho de ir buscar água e ligaduras.

Ele abanou a cabeça.

– Quero que fique.

Ela libertou-se dele bruscamente.

– E eu não quero que morra de infeção.

Emeline estava a franzir-lhe o sobrolho e sabia que o medo lhe transparecia nos olhos. Mas, apesar do tom áspero e do rosto pouco simpático, ele sorriu.

– Então, volte para mim.

– Não seja tolo – resmungou ela, enquanto se dirigia à porta. – Claro que volto.

Não esperou por resposta, mas pegou na vela e quase correu para o vestíbulo. Aí, deteve-se apenas o tempo suficiente para verificar que não havia ali ninguém; então, dirigiu-se às cozinhas tão depressa e tão silenciosamente quanto possível. As festas deste género tinham a má-fama de proporcionarem encontros clandestinos. A maioria dos convidados faria vista grossa se a visse a correr pela casa nas primeiras horas da madrugada, mas para quê dar azo a mexericos? Sobretudo porque ela estava inocente.

As cozinhas da Casa Hasselthorpe eram enormes, com uma grande sala principal abobadada, que devia remontar aos tempos medievais. Emeline estava satisfeita por reparar que a cozinheira era, obviamente, uma mulher competente: mantinha o lume coberto durante a noite. Emeline atravessou a sala a correr até ao grande fogão de pedra e quase tropeçou num rapazito que ali dormia.

Ele desenrolou-se de um ninho de cobertores como um rato.

– Minha senhora?

– Desculpa – sussurrou Emeline. – Não queria acordar-te.

Havia um enorme cântaro de barro ao canto, e ela levantou a tampa para espreitar lá para dentro. Acenou com a cabeça, satisfeita. Continha água. Enquanto despejava água para dentro da chaleira de ferro, ouviu o rapaz mexer-se atrás dela.

– Precisa de ajuda, minha senhora?

Ela olhou para ele enquanto colocava a chaleira ao lume e remexia as brasas. Estava sentado em cima dos cobertores com o cabelo preto todo espetado. Provavelmente não tinha mais do que a idade de Daniel.

– A cozinheira tem algum unguento para queimaduras e golpes?

– Tem.

O rapaz levantou-se, dirigiu-se a um armário alto e puxou uma gaveta.

Remexeu lá dentro e tirou um frasquinho, que lhe entregou.

Emeline levantou a tampa e olhou lá para dentro. O frasco estava meio cheio de uma substância escura e gordurosa. Cheirou-a e identificou os odores de ervas e mel.

– Sim, isto serve. Obrigada. – Voltou a tapar o frasco e sorriu ao rapaz. – Agora, volta para a cama.

– Sim, senhora.

Instalou-se na sua enxerga e, sonolento, observou-a enquanto ela esperava que a água fervesse e depois a deitava num jarro de metal.

Num cesto em cima do armário, havia um monte de panos muito bem dobrados. Emeline pegou em vários e agarrou o jarro com um deles. Sorriu ao rapaz.

– Boa noite.

– ’Noite, senhora.

Os olhos já se lhe fechavam quando ela saiu da cozinha. Apressou-se a deixar as cozinhas e a subir as escadas, com o jarro pesado numa mão, o frasco de unguento na outra e os panos sobre o braço. A vela ficou para trás. De qualquer modo, agora sabia o caminho, mesmo às escuras.

Pensou que Samuel poderia estar a dormir, mas a cabeça dele virou-se prontamente quando ela entrou, embora ele não dissesse nada quando ela atravessou o quarto. Deitou a água quente para uma bacia, acrescentou apenas um pouco da água fria do jarro que estava no toucador, e levou a bacia até ele.

Emeline ajoelhou-se aos seus pés e franziu o sobrolho.

– Tem uma faca?

Como resposta, ele puxou de uma pequena lâmina que tinha no bolso do colete. Ela pegou-lhe e cortou, com todo o cuidado, o que restava dos seus mocassins. Uma parte do couro estava agarrada ao sangue meio seco e, embora ela tivesse muito cuidado, alguns pedacinhos foram arrancados e começaram a sangrar de novo. Deve ter-lhe doído e, no entanto, ele não emitiu um som.

Enrolou para cima as orlas bordadas das suas perneiras e colocou a bacia debaixo dele.

– Meta aqui os pés.

Ele obedeceu e silvou baixinho quando os pés entraram na água quente. Ela ergueu os olhos, mas o rosto dele apenas revelava fadiga enquanto a olhava.

– Quanto tempo correu? – perguntou Emeline.

Quase esperava que ele se recusasse a responder, mas tal não aconteceu.

– Não sei.

Ela acenou com a cabeça e franziu a testa observando a bacia de água. Estava a ficar escura do sangue.

– O Vale disse-lhe? – perguntou Sam.

– O Jasper disse qualquer coisa sobre o facto de o homem que foram visitar ter morrido – murmurou ela, distraída.

Se ele correra descalço, depois de as solas dos mocassins estarem rotas, haveria terra e sujidade nas feridas. Teria de as limpar muito bem, se não, poderiam infetar. Iria ser terrivelmente doloroso.

– Onde está o Vale? – perguntou ele, interrompendo os seus pensamentos.

Ela ergueu os olhos.

– Nos seus aposentos, aos cuidados do criado. Bebeu até ficar inconsciente.

Samuel acenou com a cabeça, mas não fez qualquer comentário.

Ela pôs um pano sobre o colo e tocou-lhe na perna esquerda.

– Levante.

Ele obedeceu, estendendo um pé a pingar. Ela guiou-o até o fazer pousar no colo, para poder examinar a planta do pé. Estava em carne viva, vermelha e esfolada, mas em melhor estado do que ela imaginara. Havia várias bolhas rebentadas, mas só um golpe. Também se apercebeu de que era um pé bastante elegante para um homem, o que era um pensamento parvo. Os pés dele eram grandes e angulosos, mas com um arco alto e dedos compridos.

– Ele enforcou-se – murmurou Samuel.

Emeline olhou para ele. Tinha os olhos fechados, a cabeça apoiada nas costas da cadeira. A luz bruxuleante do lume moldava-lhe os planos do rosto em linhas duras e sombras que brilhavam um pouco do suor antigo. Devia sentir-se completamente exausto. Era de espantar ainda estar acordado.

Ela inspirou e voltou a olhar para o pé.

– O soldado que o senhor e o Jasper foram visitar?

– Sim. A mulher estava lá em casa. Disse que ele voltara para casa depois da guerra e, durante um tempo, pareceu bem.

– E depois?

Pegara noutro pano e rasgara-o até ter um pedaço do tamanho da palma da mão. Em seguida, mergulhou-o no unguento e começou a lavar-lhe a parte de baixo do pé. Emeline franziu o sobrolho, aborrecida consigo mesma. Devia ter levado da cozinha uma escova de esfregar.

Ouviu-o suspirar.

– Deixou de viver.

Ela ergueu os olhos para ele. Devia estar com dores – ela tratava-lhe do pé fazendo bastante força para tirar a areia –, mas tinha o rosto suave e calmo.

– Que quer dizer?

– O Craddock começou a sair cada vez menos até chegar ao ponto de se manter sempre em casa. Muito antes disso, perdera o emprego; fora caixeiro na mercearia da aldeia. Depois disso, deixou de falar. A mulher disse que ele se sentava junto ao lume, limitando-se a olhar como que hipnotizado.

Emeline pôs o pé esquerdo sobre um pano limpo ao lado dela e tocou-lhe no direito.

– Este, se faz favor.

Viu-o levantar o pé a pingar e colocá-lo no seu colo. Não queria ouvir aquilo. Não queria ouvir falar de antigos soldados que não puderam regressar a casa e viver normalmente. Se tivesse sobrevivido, seria Reynaud como Mr. Craddock? Teria ela de o ver consumir-se, lentamente, em vida? E Samuel?

Aclarou a voz e pegou num pano limpo.

– E?

– E depois deixou de dormir.

Ela franziu o sobrolho e levantou rapidamente os olhos para ele.

– Como pode ser? Toda a gente tem de dormir; isso não se controla.

Ele abriu os olhos e olhou para ela com tal mágoa no rosto que ela desejou desviar o olhar. Desejou fugir do quarto e nunca mais precisar de pensar em guerras e nos homens que nelas tinham lutado.

– Sofria de pesadelos – disse Samuel.

O fogo crepitava atrás dela. Ele susteve-lhe o olhar. Ela olhou-o nos olhos, escurecidos pela luz do fogo, e sentiu os seios empurrarem o espartilho quando inspirou, enchendo o peito de ar. Ela não queria saber; na verdade, não queria. Algumas coisas eram demasiado horríveis para ela imaginar, demasiado horríveis para ter na alma o resto da vida. Estivera bem todos aqueles anos desde a morte de Reynaud. Sofrera e vociferara contra o destino, e depois aceitara, pois não havia outra opção. Descobrir agora o que a guerra tinha sido, o que continuava a ser para os homens que regressaram, vivos mas não incólumes… era de mais para ela.

Samuel susteve-lhe o olhar. Emeline voltou a inspirar para ter coragem, e perguntou:

– O senhor tem pesadelos?

– Tenho.

– Com que… – Teve de parar e aclarar a voz. – Com que sonha?

As rugas em volta da boca dele ficaram mais vincadas, mais sombrias.

– Sonho com o fedor do suor dos homens. Com corpos… corpos mortos… a esmagar-me, com feridas ainda abertas, ainda a escorrer sangue vermelho e brilhante, apesar de estarem mortos. Sonho que já estou morto. Que morri há seis anos sem nunca o saber. Que apenas penso que estou vivo e, quando olho para baixo, a carne está a apodrecer, caindo-me das mãos. Os ossos ficam à vista.

– Oh, meu Deus. – Ela não suportava ouvir falar naquela dor horrível.

– Isso não é o pior – sussurrou ele, tão baixo que ela quase não o ouviu.

– O que é o pior?

Ele fechou os olhos como que a ganhar forças, depois disse:

– Que falhei aos soldados meus companheiros. Que ando a correr pelas florestas da América do Norte, mas que não corro para ir buscar ajuda. Estou apenas a fugir. Que sou o cobarde que eles me chamam.

Era horrivelmente inconveniente, de mau gosto, na verdade, mas ela não conseguiu evitá-lo. Riu-se. Emeline levou a mão à boca aberta, como uma criancinha, tentando abafar o som, mas, mesmo assim, o riso irrompeu bem alto, no quarto.

– Desculpe – arfou ela. – Desculpe.

Mas um dos lados da boca de Sam arqueou-se, como se ele quase sorrisse. Estendeu a mão e puxou Emeline para o seu colo, as saias a arrastar-se pela bacia cheia de água ensanguentada. Ela não se importou. Tudo o que a preocupava era aquele homem e os seus pesadelos infernais.

– Desculpe – voltou ela a murmurar, deixando cair o trapo ensanguentado. Pôs-lhe a mão na face. Se ela pudesse, ao menos, absorver e acolher aquela dor em si própria, fá-lo-ia. – Oh, Samuel, desculpe.

Ele afagou-lhe o cabelo.

– Eu sei. Porque se riu?

Prendeu-se-lhe a respiração ante a ternura na voz dele.

– É tão absurda a ideia de o senhor poder ser, alguma vez, um cobarde.

– Não é – murmurou ele, enquanto o seu rosto se aproximava do dela. – A Emeline não me conhece.

– Conheço. Eu…

Tencionava dizer que o conhecia melhor do que a qualquer outro homem, mesmo Jasper, mas os lábios dele cobriram os seus.

Beijou-a com toda a ternura, a boca suave, e ela engoliu a mágoa do seu beijo. Porquê aquele homem? Porque não qualquer outro homem da sua classe social, do seu país? Emeline segurou-lhe o rosto entre as mãos e empurrou a boca para a dele, e a boca não era suave nem delicada. O que ela queria dele não era uma coisa delicada. Lambeu-lhe os lábios, que sabiam a sal, depois introduziu-lhe a língua na boca. Virou o corpo e encostou-se a ele sem qualquer artifício, uma mulher devassa. Nessa altura, ele sucumbiu. Os seus braços envolveram-lhe as costas, e ele puxou-a completamente contra o peito, apertando-a com força, enquanto a sua língua deslizava contra a dela. Emeline sentiu as lágrimas a secarem no seu rosto, sentiu a elevação do seu órgão, mesmo através das roupas, e sentiu uma excitação feminina a responder-lhe.

E depois sentiu-o a empurrá-la.

Agarrou-se aos ombros dele para não cair na bacia de água.

– Que…?

– Vá-se embora.

O seu rosto estava sombrio, a debater-se com alguma emoção. Teria ela interpretado mal o seu interesse? Mas, não, olhando para o colo dele, era evidente que estivera completamente envolvido no seu beijo.

– Então, porque…?

– Vá-se embora!

Levantou-a, pô-la em pé, e empurrou-a, sem cerimónias, para a porta.

– Vá.

E Emeline deu consigo à porta do quarto de Samuel. Correu pelo vestíbulo, as saias a pingar água ensanguentada e o coração a transbordar de dor.