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Ora, Coração de Ferro foi assim chamado devido a uma coisa muito estranha. Embora os seus membros e rosto, e, na verdade, todo o resto do seu corpo, fossem exatamente como os de todos os outros homens criados por Deus, o seu coração não era. Era feito de ferro e batia-lhe no peito, forte, corajoso, e inabalável…

Excerto de Coração de Ferro

LONDRES, INGLATERRA

SETEMBRO DE 1764

–Dizem que ele fugiu. – Mrs. Conrad inclinou-se um pouco mais para transmitir este mexerico.

Lady Emeline Gordon bebeu um golinho de chá e olhou por cima da borda da chávena para o cavalheiro em questão. Estava tão deslocado como um jaguar numa sala cheia de gatos malhados: rude, vigoroso e não muito civilizado. Decididamente, não era homem que ela associasse a cobardia. Emeline interrogava-se como é que ele se chamaria, enquanto agradecia ao Senhor por ele ter aparecido. O salão de chá de Mrs. Conrad fora paralisantemente enfadonho até ele ter entrado.

– Fugiu do massacre do vigésimo oitavo Regimento nas Colónias – continuou Mrs. Conrad, sem fôlego –, em cinquenta e oito. Uma vergonha, não é?

Emeline virou-se e arqueou uma sobrancelha na direção da sua anfitriã. Captou o olhar de Mrs. Conrad e viu o momento exato em que aquela mulher tola caiu em si. A tez de Mrs. Conrad, já de si rosada, intensificou-se, para um tom de beterraba que na verdade não lhe ficava nada bem.

– Quer dizer… eu… eu – gaguejou a anfitriã.

Isto era o que acontecia quando se recebia o convite de uma senhora que aspirava a estar nos mais altos círculos da sociedade, mas que ainda não tinha entrado neles completamente. Na realidade, a culpa era de Emeline. Suspirou e sentiu pena.

– Então ele está no exército?

Mrs. Conrad percebeu a ajuda, agradecida.

– Oh, não, já não está. Pelo menos, creio que não.

– Ah – disse Emeline e tentou pensar noutra coisa.

A sala era grande e ricamente decorada, com uma pintura no teto que representava Hades perseguindo Perséfone. A deusa era particularmente inexpressiva, sorrindo docemente para a assembleia que se encontrava por baixo. Não tinha hipótese contra o deus do mundo subterrâneo, mesmo tendo ele, naquela representação, faces rosadas e brilhantes.

A atual protegida de Emeline, Jane Greenglove, estava sentada num sofá ali perto, conversando com o jovem Lorde Simmons, uma escolha muito simpática. Emeline acenou com a cabeça, em sinal de aprovação. Lorde Simmons tinha um rendimento de mais de oito mil libras por ano e uma bela casa perto de Oxford. Essa aliança seria muito conveniente, e, uma vez que a irmã mais velha de Jane, Eliza, já aceitara a mão de Mr. Hampton, as coisas compunham-se na perfeição. Compunham-se sempre, claro, quando Emeline consentia em orientar uma jovem na sua entrada na sociedade, mas, mesmo assim, era agradável uma pessoa ver as suas expectativas atingidas.

Ou devia ser. Antes de se dar conta, Emeline torceu uma fita de renda que tinha à cintura e voltou a endireitá-la. Na realidade, sentia-se um pouco aborrecida, o que era ridículo. O seu mundo era perfeito. Absolutamente perfeito.

Emeline olhou casualmente para o estranho e viu que o seu olhar escuro estava fixo nela. Os seus olhos tinham umas ligeiras rugas aos cantos, como se ele estivesse divertido com qualquer coisa – e essa qualquer coisa podia ser ela. De repente, voltou a afastar o olhar. Homem horrível. Estava obviamente consciente de que todas as senhoras que se encontravam na sala haviam reparado nele.

Ao lado dela, Mrs. Conrad começara a tagarelar, nitidamente numa tentativa de disfarçar a sua gafe.

– Ele tem um negócio importante nas Colónias. Creio que está em Londres em trabalho; pelo menos é o que diz Mister Conrad. E é rico como Creso, embora isso não transpareça na roupa que veste.

Era impossível não olhar para ele outra vez depois daquela informação. Acima do meio da coxa, a sua roupa era, de facto, simples – casaco preto e colete com um padrão castanho e preto. Afinal, um guarda-roupa conservador, até se chegar às pernas. O homem usava uma espécie de perneiras indígenas. Eram feitas de um estranho couro curtido, muito baço, e estavam presas mesmo abaixo do joelho com faixas às riscas vermelhas, brancas e pretas. As perneiras dividiam-se à frente, por cima dos sapatos, com abas efusivamente bordadas que caíam de cada lado dos pés. E os sapatos eram o mais estranho de tudo, já que não possuíam tacões. Parecia um género de sapato feito do mesmo couro macio, baço, guarnecido com contas ou bordados desde o tornozelo até aos dedos do pé. Contudo, mesmo sem tacões, o forasteiro era muito alto. Tinha cabelo castanho, e tanto quanto ela podia dizer, vendo-o do meio da sala, os seus olhos eram escuros. Seguramente, não eram nem azuis nem verdes. Tinham pestanas espessas e eram inteligentes. Ela reprimiu um arrepio. Era muito difícil lidar com homens inteligentes.

Tinha os braços cruzados, um ombro encostado à parede, e o seu olhar revelava interesse. Como se fossem os outros os exóticos, e não ele. Tinha o nariz comprido, com uma bossa a meio; pele escura, como se tivesse chegado recentemente de alguma terra exótica. Os ossos do rosto eram resolutos e proeminentes: maçãs do rosto, nariz e queixo projetando-se de uma forma agressivamente masculina, que era, todavia, perversamente atraente. A boca, pelo contrário, era larga e quase suave, com uma cova sensual no lábio inferior. Era a boca de um homem que gostava de saborear. De se demorar e saborear. Uma boca perigosa.

Emeline voltou a afastar o olhar.

– Quem é ele?

Mrs. Conrad olhou, espantada.

– Não sabe?

– Não.

A anfitriã estava deliciada.

– Ora, minha querida, é Mister Samuel Hartley! Toda a gente fala dele, embora só esteja em Londres há uma semana, mais ou menos. Não é lá muito bem aceite, por causa do… – Mrs. Conrad cruzou o olhar com o de Emeline e rapidamente interrompeu o que ia dizer. – Bom. Mesmo com toda a sua riqueza, nem toda a gente está na disposição de o conhecer.

Emeline ficou imóvel enquanto sentia um formigueiro na nuca.

Mrs. Conrad continuou, obviamente.

– Na realidade, não devia tê-lo convidado, mas não consegui evitar. Aquela figura, minha querida. Simplesmente delicioso! Bem, se não o tivesse convidado, nunca teria…

A sua torrente de palavras terminou num guincho assustado, pois um homem aclarara a voz mesmo atrás delas.

Emeline não estivera a olhar para ele, por isso não o tinha visto deslocar-se, mas soube de forma instintiva quem se encontrava tão perto delas. Lentamente, virou a cabeça.

Olhos trocistas, castanhos cor de café, encontraram os seus.

– Mistress Conrad, ficaria muito grato se nos apresentasse. – A sua voz tinha um insípido sotaque americano.

A anfitriã engoliu a respiração perante aquela ordem brusca, mas, curiosamente, conseguiu ultrapassar a indignação.

– Lady Emeline, dê-me licença que lhe apresente Mister Samuel Hartley. Mister Hartley, Lady Emeline Gordon.

Emeline inclinou-se numa reverência, mas, ao erguer-se, foi presenteada com uma grande mão bronzeada. Ficou a olhar por um momento, embaraçada. O homem não podia ser, seguramente, tão pouco sofisticado! A risadinha aspirada de Mrs. Conrad resolveu o assunto. Com cautela, Emeline tocou apenas com as pontas dos dedos nas dele.

Sem qualquer sucesso. Ele agarrou-lhe a mão entre as suas, envolvendo-lhe os dedos num calor intenso. As suas narinas alargaram apenas um pouco quando ela se viu obrigada a dar um passo em frente, para o aperto de mão. Estaria ele a farejá-la?

– Como está? – perguntou ele.

– Bem – respondeu Emeline. Tentou soltar a mão, mas, embora aparentemente Mr. Hartley não estivesse a agarrá-la com força, não conseguiu. – Podia agora devolver-me a minha mão?

Aquela boca contraiu-se outra vez. Troçaria ele de toda a gente ou apenas dela?

– Claro, minha senhora.

Emeline abriu a boca para apresentar uma desculpa – qualquer desculpa – para deixar aquele homem horrível, mas ele foi demasiado rápido para ela.

– Posso acompanhá-la até ao jardim?

Na realidade, não se tratava de uma pergunta, uma vez que ele já tinha estendido o braço, esperando obviamente o seu consentimento. E, o que era pior, ela deu-lho. Em silêncio, Emeline colocou as pontas dos dedos na manga do seu casaco. Ele baixou a cabeça a Mrs. Conrad e levou Emeline lá para fora numa questão de minutos, comportando-se impecavelmente para um homem tão desajeitado. Emeline olhou de soslaio para o perfil dele, desconfiada.

Ele virou a cabeça e captou o seu olhar. Os olhos franziram-se nos cantos, rindo-se para ela, embora a boca estivesse perfeitamente séria.

– Somos vizinhos, sabe?

– Que quer dizer?

– Arrendei a casa ao lado da sua.

Emeline deu consigo a olhar para ele, vacilante, piscando os olhos, apanhada mais uma vez desprevenida – uma sensação desagradável, tão rara quanto indesejada. Conhecia os ocupantes da casa à direita da sua, mas a do lado esquerdo fora arrendada recentemente. Na semana anterior, tinham andado homens, durante um dia inteiro, a entrar e a sair pelas portas abertas, a bater com os pés, a suar, a gritar e a praguejar. E tinham transportado…

As suas sobrancelhas juntaram-se.

– O sofá verde ervilha.

A boca dele arqueou-se a um canto.

– Como?

– O senhor é o dono daquele atroz sofá verde ervilha, não é?

Ele inclinou a cabeça.

– Confesso que sim.

– Sem qualquer ponta de vergonha, aliás, estou a ver. – Emeline contraiu os lábios em sinal de reprovação. – Tem mesmo mochos dourados esculpidos nas pernas?

– Não tinha reparado.

Eu reparei.

– Então não vou discutir a questão.

– Hum. – Ela voltou a olhar em frente.

– Tenho um favor a pedir-lhe, minha senhora. – A sua voz ressoou algures acima da cabeça dela.

Conduzira-a ao longo de um dos caminhos de gravilha compacta do jardim da residência dos Conrad. Este tinha plantadas, de forma prosaica, rosas e pequenas sebes podadas. Infelizmente, a maior parte das rosas já florira, pelo que o conjunto mostrava um aspeto bastante sem graça e abandonado.

– Gostava de a contratar.

Contratar-me?

Emeline inspirou com azedume e parou, obrigando-o a parar também e a olhá-la de frente. Pensaria aquele homem esquisito que ela era alguma cortesã? O insulto era ultrajante e, na confusão que sentia, percebeu que os seus olhos vagueavam sobre a constituição dele, os ombros largos, uma cintura agradavelmente lisa, e depois desceram para uma parte imprópria da anatomia de Mr. Hartley, que, reparava ela, estava muito bem delineada pelos calções de lã preta que usava debaixo das perneiras. Inspirou de novo, quase se engasgando, e ergueu os olhos apressadamente. Mas, ou o homem não tinha visto a sua indiscrição, ou era muito mais educado do que o seu vestuário ou os seus modos faziam crer.

Ele continuou:

– Preciso de uma tutora para a minha irmã, Rebecca. Alguém que a leve a festas e a bailes.

Emeline inclinou a cabeça quando percebeu que ele queria uma dama de companhia. Bem, porque não dissera logo isso, o tolo do homem para lhe poupar o embaraço?

– Receio que não seja possível.

– Porque não? – As palavras eram suaves, mas havia um tom de ordem por trás delas.

Emeline ficou rígida.

– Só aceito jovens senhoras das classes mais altas da sociedade. Não creio que a sua irmã se enquadre nos meus padrões. Lamento.

Ele observou-a por um momento e depois afastou o olhar. Embora os seus olhos se fixassem num banco que se encontrava no fim do caminho, Emeline duvidava muito de que ele o visse.

– Talvez possa, então, alegar outra razão para a senhora nos aceitar.

Ela parou.

– Que razão é essa?

Os olhos dele voltaram a fitá-la e não havia neles qualquer indício de divertimento.

– Eu conheci o Reynaud.

O bater do coração de Emeline soou muito alto aos seus próprios ouvidos. Porque, claro, Reynaud era seu irmão. O irmão que tinha sido morto no massacre do 28.º Regimento.

ELA CHEIRAVA a bálsamo de limão. Sam inalava o aroma familiar enquanto esperava pela resposta de Lady Emeline, consciente de que o seu perfume estava a distraí-lo. A distração era um perigo nas negociações com um adversário esperto. Mas era estranho descobrir que aquela senhora sofisticada usava um perfume tão familiar. A mãe dele cultivava bálsamo de limão no seu jardim da floresta da Pensilvânia e o aroma fazia-o recuar no tempo. Recordava-se de estar sentado a uma mesa tosca, era ele rapazito, a ver a mãe deitar água a ferver sobre as folhas verdes. O aroma fresco elevava-se com o vapor da chávena de barro grosso. Bálsamo de limão. Bálsamo para a alma, chamava-lhe a mãe.

– O Reynaud morreu – disse Lady Emeline abruptamente. – Porque acha que eu lhe faria esse favor só porque diz que o conhecia?

Ele examinou-lhe o rosto enquanto ela falava. Era uma mulher bonita; quanto a isso, não havia qualquer dúvida. O cabelo e os olhos dramaticamente escuros, a boca cheia e vermelha. Mas a beleza dela era complicada. Muitos homens seriam dissuadidos pela inteligência daqueles olhos escuros e pelo franzir cético dos lábios vermelhos.

– Porque o amava. – Sam observou os olhos dela ao dizer estas palavras, e viu um ligeiro estremecimento. Tinha, então, acertado; ela fora próxima do irmão. Se fosse bondoso, não duvidaria do seu desgosto. Mas a bondade nunca o marcara muito, nem nos negócios, nem na vida pessoal. – Acho que o fará em sua memória.

– Hum. – Ela não parecia particularmente convencida.

Mas ele sabia. Fora uma das primeiras coisas que aprendera a identificar no negócio da importação: o momento exato em que o oponente vacilava e o equilíbrio da negociação se inclinava a seu favor. O próximo passo era fortalecer a sua posição. Sam voltou a estender o braço, e ela olhou-o por um momento antes de colocar as pontas dos dedos na sua manga. Ele sentiu a emoção da sua aquiescência, embora tivesse o cuidado de não o deixar transparecer.

Conduziu-a mais para o fundo do caminho do jardim.

– Eu e a minha irmã só vamos ficar três meses em Londres. Não espero que faça milagres.

– Então porque se incomoda a obter a minha ajuda?

Ele virou o rosto para o sol do entardecer, contente por estar lá fora, longe das pessoas do salão.

– A Rebecca só tem dezanove anos. Estou muitas vezes ocupado com os negócios e gostava que ela se divertisse; talvez conhecendo senhoras da sua idade. – Tudo verdade, embora não toda a verdade.

– Não tem parentes femininas para essa missão?

Ele baixou os olhos para ela, divertido com a sua pergunta pouco subtil. Lady Emeline era uma mulher pequena; a sua cabeça escura só lhe chegava ao ombro. A baixa estatura devia fazê-la parecer frágil, mas ele sabia que Lady Emeline não era uma peça de porcelana delicada. Observara-a cerca de uns vinte minutos na sala de estar horrivelmente pequena antes de se aproximar dela e de Mrs. Conrad. Durante esse tempo, os olhos dela nunca tinham parado de se mover. Mesmo enquanto falava com a anfitriã, ficara de olho nas suas protegidas, assim como nos movimentos dos outros convidados. Apostaria bom dinheiro em como ela estava inteirada de todas as conversas da sala, de quem falara com quem, de como as discussões progrediam, e de quando os participantes se separaram. No seu mundo requintado, ela tinha tanto sucesso como ele.

O que tornava ainda mais importante que fosse ela a ajudá-lo a entrar na sociedade londrina.

– Não, nem eu nem a minha irmã temos parentes femininas vivas – respondeu ele, então, à sua pergunta. – A nossa mãe morreu no parto da Rebecca e o pai apenas uns meses mais tarde. Felizmente, o irmão do meu pai era empresário em Boston. Ele e a mulher levaram a Rebecca para casa e criaram-na. Morreram ambos, entretanto.

– E o senhor?

Ele virou-se para olhar para ela.

– Eu, o quê?

Ela franziu-lhe o sobrolho, impaciente.

– Que lhe aconteceu quando os seus pais morreram?

– Mandaram-me para uma escola de rapazes – disse ele, prosaicamente, as palavras a não transmitirem de modo nenhum o choque de deixar uma cabana na floresta e entrar num mundo de livros e disciplina rigorosa.

Tinham chegado a um muro de tijolos do jardim, que marcava o fim do caminho. Ela parou e virou-se para ele.

– Tenho de conhecer a sua irmã antes de decidir seja o que for.

– Claro – murmurou ele, sabendo que a tinha na mão.

Sacudiu as saias bruscamente, os olhos pretos semicerraram-se, a boca vermelha contraiu-se enquanto ela pensava. De súbito, veio à mente de Sam uma imagem do seu irmão morto: os olhos pretos de Reynaud semicerravam-se exatamente da mesma maneira quando ele repreendia um soldado. Por momentos, o rosto masculino sobrepôs-se ao rosto mais pequeno, feminino, da irmã. As sobrancelhas escuras e espessas de Reynaud aproximaram-se, os seus olhos de meia-noite a olharem como se de condenação. Sam estremeceu e afastou o fantasma, concentrando-se no que a mulher viva dizia.

– O senhor e a sua irmã podem visitar-me amanhã. Comunico-lhe a minha decisão depois. Chá, acho eu? Bebe chá, não bebe?

– Sim.

– Excelente. Convém-lhe às duas horas?

Estava tentado a sorrir ante a sua ordem.

– É muito amável, minha senhora.

Ela olhou-o desconfiada por um momento, depois virou-se para voltar para trás, pelo caminho do jardim, restando-lhe, a ele, segui-la. Foi o que fez, devagar, observando aquelas costas elegantes e aquelas saias ondulantes. E, enquanto a seguia, apalpou o bolso, ouvindo o enrugar familiar de papel e pensando: que melhor maneira teria de usar Lady Emeline?

NÃO compreendo – declarou tante Cristelle naquela noite, ao jantar. – Se o cavalheiro desejava na realidade a honra da tua ajuda, porque não procurou abordar-te através dos trâmites habituais? Devia obrigar um amigo a fazer a apresentação.

Tante Cristelle era a irmã mais nova da mãe de Emeline, uma senhora alta, de cabelo branco, costas sempre direitas e olhos azuis cor do céu que deviam ser afáveis, mas não eram. A velha senhora nunca casara, e, secretamente, Emeline pensava, às vezes, que era porque os homens da idade da tia deviam ter tido medo dela. Tante Cristelle vivera com Emeline e o filho, Daniel, nos últimos cinco anos, desde a morte do pai de Daniel.

– Talvez não tivesse consciência do modo adequado de o fazer – disse Emeline enquanto examinava minuciosamente a seleção de carnes no tabuleiro. – Ou talvez não quisesse perder tempo a percorrer as estratégias habituais. Disse que iam ficar em Londres apenas um curto período, afinal de contas. – Indicou uma fatia de carne e sorriu, agradecendo, enquanto o criado lha colocava, com um garfo, no prato.

Mon Dieu, se ele é assim um labrego com tão pouco tato, então não tem o direito de se aventurar nos labirintos da alta sociedade.

A tia bebeu um gole de vinho e depois contraiu os lábios como se o líquido avermelhado fosse amargo.

Emeline emitiu um som evasivo. A análise que tante Cristelle fizera de Mr. Hartley era exata superficialmente – ele tinha, de facto, dado a impressão de ser um labrego. O problema era que os seus olhos haviam contado uma história diferente. Quase parecera rir-se dela, como se fosse ela a ingénua.

– E que vais fazer, pergunto-te eu, se a rapariga for parecida com o irmão que tu descreves? – Tante Cristelle arqueou as sobrancelhas num horror exagerado. – E se ela usar tranças no cabelo a caírem-lhe pelas costas? E se ela rir demasiado alto? E se ela não usar sapatos, e se os pés estiverem sujos?

Esta ideia desagradável foi, ao que parece, excessiva para a velha senhora. Fez um sinal insistente ao criado pedindo-lhe mais vinho, enquanto Emeline mordia o lábio para se impedir de sorrir.

– Ele é muito rico. Discretamente, informei-me sobre a sua posição junto das outras senhoras que estavam no salão. Todas confirmaram que Mister Hartley é, de facto, um dos homens mais ricos de Boston. Provavelmente, move-se nos melhores círculos de lá.

– Tcha! – Tante desconsiderava toda a sociedade de Boston.

Emeline cortava a carne com serenidade.

– E mesmo que fossem labregos, tante, decerto nós não deveríamos impedir a garota de ter uma formação adequada?

Non! – exclamou tante Cristelle, fazendo o criado que estava junto dela assustar-se e quase deixar cair o decantador. – E volto a dizer, non! Esta barreira, ela é a base da sociedade. Como vamos distinguir o bem-nascido da canalha se não for pelas suas maneiras?

– Talvez tenha razão.

– Claro que tenho razão – retorquiu a tia.

– Mmm. – Emeline espetou a carne que tinha no prato. Por qualquer razão, já não a queria. – Tante, lembra-se daquele livrinho que a minha ama me lia e ao Reynaud, quando éramos pequenos?

– Livro? Que livro? De que estás a falar?

Emeline puxou o bocadinho da fita franzida da manga.

– Era um livro de contos de fadas e nós gostávamos muito dele. Não sei porquê, pensei hoje nele.

Olhou fixamente o prato, pensativa, recordando. A ama costumava ler para eles lá fora, depois de um piquenique à tarde. Ela e Reynaud ficavam sentados em cima da manta do piquenique enquanto a ama ia virando as páginas do livro de contos de fadas. Mas, à medida que a história evoluía, Reynaud arrastava-se de forma inconsciente para a frente, levado pela excitação do conto, até estar quase ao colo da ama, suspenso de cada palavra, os olhos pretos a cintilar.

Era tão vivo, tão enérgico, já em criança. Emeline engoliu em seco, alisando com cuidado a fita enrodilhada na cintura.

– Gostava só de saber onde o livro possa estar. Acha que está guardado no sótão?

– Quem poderá dizer? – A tia encolheu os ombros de um modo eloquente e muito gaulês, pondo de parte o velho livro de contos de fadas e as memórias que Emeline guardava de Reynaud. Inclinou-se para a frente, para exclamar: – Mas eu volto a perguntar, porquê? Porque admites aceitar esse homem e a irmã que não usa sapatos?

Emeline absteve-se de salientar que, até àquela altura, não tinham qualquer informação quanto aos sapatos de Miss Hartley ou à falta deles. Na realidade, o único Hartley de quem ela sabia alguma coisa era o irmão. Por um momento, lembrou-se do rosto bronzeado e dos olhos castanhos cor de café do homem. Abanou a cabeça devagar.

– Não sei com exatidão, a não ser que ele precisava obviamente da minha ajuda.

– Ah, mas se aceitasses todos os que precisam da tua ajuda, ficaríamos enterradas debaixo de pedintes.

– Ele disse … – Emeline hesitou, observando a luz a brilhar no seu copo de vinho. – Ele disse que conhecia o Reynaud.

Tante Cristelle pousou o copo de vinho com todo o cuidado.

– Mas porque acreditas nisso?

– Não sei. Acredito. – Olhou, desamparada, para a tia. – Deve achar que eu sou uma parva.

Tante Cristelle suspirou, com os lábios a descair aos cantos, acentuando-se ali as rugas da idade.

– Não, ma petite, acho apenas que és uma irmã que amava muito o irmão.

Emeline acenou com a cabeça, observando os dedos a girar o copo na mão. Não olhou a tia nos olhos. Ela amara Reynaud. Ainda o amava. O amor não acaba simplesmente porque o seu objeto morreu. Mas havia outra razão para ela considerar a hipótese de aceitar a menina Hartley. Sentia, por qualquer razão, que Samuel Hartley não lhe contara toda a verdade em relação ao motivo por que precisava da sua ajuda. Ele queria qualquer coisa. Qualquer coisa que tinha que ver com Reynaud.

E isso significava que era preciso observá-lo atentamente.