Emeline saiu para o sol da tarde e suspirou de prazer.

– Esta loja era muito boa.

– Mas – ofegou Miss Hartley ao seu lado – eu preciso mesmo de todos aqueles vestidos? Não chegam um ou dois vestidos de baile?

– Ora, Miss Hartley…

– Oh, por favor, não me trata por Rebecca?

Emeline amenizou o seu tom austero. A rapariga era muito doce.

– Sim, claro. Então, Rebecca. É extremamente importante que se vista de forma conveniente…

– Em folha de ouro, se possível. – Uma voz masculina interrompeu o sermão de Emeline.

– Oh, Samuel! – exclamou Rebecca. – O teu queixo está com um aspeto ainda pior do que esta manhã.

Emeline virou-se, fazendo desaparecer a ruga da testa. Não queria que Mr. Hartley visse nem a contrariedade pela interrupção nem o estranho alvoroço de excitação que sentia no fundo do seu íntimo. De facto, uma agitação daquelas não era de modo nenhum própria numa mulher da sua idade.

O queixo de Mr. Hartley tinha, na verdade, um tom de ameixa mais escuro desde a última vez que Emeline o vira. Aparentemente, chocara contra uma porta durante a noite. Um acidente estranho para um homem tão gracioso. Naquele momento, encontrava-se encostado a um poste de iluminação, os pés, calçados com botas, cruzados no tornozelo, parecendo estar ali havia bastante tempo. E estava se tivesse ficado à espera desde que as senhoras entraram no cabeleireiro três horas antes. Aquele homem horrível não podia ter permanecido ali, de pé, o tempo todo, pois não?

Emeline sentiu uma pontada de culpa.

– Mister Hartley, sabe que é aceitável deixar-nos enquanto fazemos as nossas compras?

Ele ergueu as sobrancelhas, e a expressão sardónica dos seus olhos dizia que conhecia perfeitamente as subtilezas de um dia de compras de uma senhora.

– Não sonharia abandoná-la, minha senhora. Peço desculpa se a minha presença é fastidiosa.

A seu lado, tante Cristelle estalou a língua.

– O senhor fala como um cortesão, monsieur. Acho que não combina muito bem consigo.

Mr. Hartley sorriu e baixou a cabeça à tia, não se sentindo nada incomodado.

– Sou repreendido com toda a justiça, minha senhora.

– Sim, bem – interpôs Emeline. – Acho que a seguir é a luvaria. Mesmo aqui ao fundo fica a loja mais maravilhosa…

– Talvez as senhoras queiram tomar um refresco? – perguntou Mr. Hartley. – Nunca me perdoaria se desfalecessem com o esforço das vossas diligências.

Emeline preparava uma resposta adequadamente pesarosa, quando tante Cristelle se antecipou.

– Um chá seria muito bem-vindo.

Assim, Emeline não podia declinar sem parecer grosseira, e o maldito do homem sabia-o. O canto da boca arqueou-se-lhe ao observá-la com os seus quentes olhos castanhos.

Ela franziu os lábios.

– Obrigada, Mister Hartley. O senhor é muito amável.

Ele inclinou a cabeça, afastou-se do poste e estendeu-lhe o braço.

– Vamos?

Porque é que o homem só se lembrava das delicadezas quando lhe convinha? Emeline esboçou um sorriso tenso e colocou as pontas dos dedos na sua manga, apercebendo-se do músculo que estava debaixo do tecido. Ele olhou para a mão dela e depois para ela, erguendo uma sobrancelha de esguelha. Ela baixou o queixo e começou a andar, tante Cristelle e a rapariga seguindo atrás. A tia parecia dar uma lição a Rebecca sobre a importância dos sapatos.

Em torno deles, a multidão de Mayfair fluía e refluía. Rapazes novos demoravam-se em vãos de portas, cavaqueando e olhando para as senhoras sumptuosamente vestidas. Passou um peralta com uma cabeleira empoada de cor-de-rosa, a sua longa bengala utilizada com extravagância.

Emeline ouviu um risinho de tante Cristelle. Inclinou a cabeça para as Misses Stevens quando elas passaram. A rapariga mais velha acenou com a cabeça com toda a correção. A mais nova, uma ruiva bonita embora apatetada, com ancas postiças muito largas, abafou uma risadinha na mão enluvada.

Emeline franziu a testa à rapariga, em sinal de reprovação.

– Que acha da nossa capital, Mister Hartley?

– Apinhada de gente.

Aproximou a cabeça da dela quando falou. Ela sentiu um cheiro agradável no seu hálito, mas não conseguiu identificá-lo.

– Está habituado a uma cidade mais pequena?

Levantou a saia quando se aproximaram de uma poça cheia de qualquer coisa repugnante. Mr. Hartley puxou-a mais para si quando a contornaram e, por um momento, ela sentiu o calor do seu corpo através de lã e linho.

– Boston é mais pequena do que Londres – respondeu ele. Separaram-se e ela ficou desgostosa quando percebeu que sentia a falta do calor dele. – Mas também tem muita gente. Não estou nada habituado a cidades.

– Foi criado no campo?

– Mais na natureza em estado selvagem.

Ela virou-se, surpreendida com a sua resposta, exatamente no momento em que ele deve ter-se inclinado de novo para ela. De súbito o seu rosto estava apenas a centímetros do dela. Rugas finas rodeavam-lhe os olhos cor de café, intensificando-se quando lhe sorria. Ela reparou que ele tinha uma cicatriz fina e clara por baixo do olho esquerdo.

Depois, afastou o olhar.

– Então foi criado por lobos, Mister Hartley?

– Não propriamente. – A sua voz era divertida, apesar da aspereza das palavras dela. – O meu pai era caçador de peles na região inexplorada da Pensilvânia. Vivíamos numa cabana que ele construíra com troncos ainda com a casca.

Isto parecia muito primitivo. Na realidade, ela tinha dificuldade em imaginar a casa dele, sendo tão diferente de tudo o que conhecia.

– Como foi educado até ir para a escola de rapazes?

– A minha mãe ensinou-me a ler e a escrever – disse Mr. Hartley. – Aprendi a seguir pegadas, a caçar, e tudo sobre florestas com o meu pai. Ele era um grande homem da floresta.

Passaram por uma livraria com um letreiro vermelho vivo pendurado tão baixo que quase roçou no tricórnio de Mr. Hartley. Emeline aclarou a voz.

– Estou a ver.

– Está? – perguntou ele suavemente. – O meu mundo dessa altura está a uma enorme distância deste. – Indicou com a cabeça a rua barulhenta de Londres. – É capaz de imaginar uma floresta tão silenciosa que se ouvem as folhas a cair? Árvores tão grandes que um homem adulto não consegue rodear-lhe o perímetro com os braços?

Ela abanou a cabeça.

– É difícil imaginar. Os seus bosques são muito estranhos para mim. Mas o senhor deixou esses bosques, não foi?

Ele observava o fluxo da multidão em volta deles enquanto caminhavam, mas naquela altura olhou para ela.

Ela inspirou, fitando os seus olhos escuros.

– Deve ter sido uma grande mudança, deixar a liberdade da floresta e ir para uma escola.

Um canto da boca arqueou-se, e ele afastou o olhar.

– Foi, mas os rapazes adaptam-se bem. Aprendi a seguir as regras e percebi de que rapazes devia manter-me afastado. E já nessa altura era grande. Isso ajudava.

Emeline estremeceu.

– Parecem tão cruéis, os internatos.

– Os rapazes são, em geral, animaizinhos cruéis.

– E os professores?

Ele encolheu os ombros.

– Na sua maioria, são competentes. Alguns são homens infelizes que não gostam de rapazes. Mas há outros que amam verdadeiramente a sua profissão e preocupam-se com as crianças.

Emeline franziu o sobrolho.

– Que infância tão diferente o senhor e a sua irmã devem ter tido. Disse que ela cresceu na cidade de Boston?

– Sim. – Pela primeira vez a sua voz pareceu perturbada. – Às vezes penso que as nossas infâncias foram demasiado diferentes.

– Ah? – Ela observou-lhe o rosto. As suas expressões eram tão subtis, tão efémeras, que ela se sentia uma adivinha quando as captava.

Ele acenou com a cabeça, os olhos quase fechados.

– Preocupo-me, pensando que não lhe dou tudo aquilo de que ela precisa.

Ela olhou em frente, enquanto tentava pensar numa resposta. Algum dos homens que ela conhecia se preocupava daquela maneira com as mulheres da sua vida? O seu próprio irmão alguma vez se preocupara com as suas necessidades? Achava que não.

Mas Mr. Hartley tomou fôlego e voltou a falar.

– O seu filho é um rapaz muito vivo.

Emeline franziu o nariz.

– Demasiado vivo, diriam alguns.

– Que idade tem?

– Faz oito anos este verão.

– Tem um tutor para ele?

– Mister Smythe-Jones. Vai lá a casa todos os dias. – Hesitou, depois disse impulsivamente: – Mas tante Cristelle acha que eu devia inscrevê-lo numa escola como aquela que o senhor frequentou.

Ele olhou-a.

– Parece muito pequeno para sair de casa.

– Oh, mas muitas famílias chiques mandam os filhos para fora, alguns muito mais novos do que o Daniel. – Percebeu que torcia, com a mão livre, uma ponta de fita no pescoço, e parou, alisando com cuidado o pedaço de seda. – A minha tia preocupa-se, temendo que eu esteja a mantê-lo agarrado às minhas saias. Ou que ele não aprenda a ser homem numa casa de mulheres. – Porque estaria ela a contar aqueles pormenores íntimos a um homem praticamente estranho? Devia pensar que ela era uma parva.

Mas ele apenas acenou com a cabeça, pensativo.

– O seu marido morreu.

– Sim. O Daniel… o meu filho tem o nome do pai… faleceu há cinco anos.

– No entanto, a senhora não voltou a casar-se.

Inclinou-se mais, e ela reconheceu o cheiro que notara no seu hálito. Salsa. Estranho que um cheiro tão familiar parecesse nele tão exótico.

Ele falou baixinho.

– Não percebo porque é que uma senhora com os seus atrativos havia de ficar tantos anos sozinha.

A testa dela enrugou-se.

– Na realidade…

– Aqui temos uma sala de chá – gritou tante Cristelle, de trás deles. – Os meus ossos doem-me terrivelmente deste exercício. Podemos descansar aqui?

Mr. Hartley virou-se.

– Desculpe, minha senhora. Sim, na verdade vamos parar aqui.

Bon – disse tante. – Então, vamos recompor-nos um pouco por algum tempo.

Mr. Hartley segurou na linda porta de vidro e madeira, e elas entraram na pequena sala. Mesas pequenas, redondas, estavam colocadas aqui e ali, e as senhoras instalaram-se enquanto Mr. Hartley foi comprar o chá.

Tante Cristelle inclinou-se para a frente, para dar uma palmadinha no joelho de Rebecca.

– O seu irmão é muito atencioso consigo. Seja grata; nem todos os homens são assim. E aqueles que o são muitas vezes não ficam muito tempo neste mundo.

A rapariga franziu o sobrolho perante a última observação de tante, mas decidiu responder à primeira.

– Oh, mas eu sou muito grata. O Samuel era sempre muito bom para mim quando eu o via.

Emeline alisou um folho de renda da saia.

– Mister Hartley disse que foi criada pelo seu tio.

Os olhos de Rebecca baixaram-se.

– Sim. Eu só via o Samuel uma ou duas vezes por ano, quando ele ia visitar-me. Ele parecia sempre tão grande, embora devesse ser mais novo do que eu sou agora. Mais tarde, claro, alistou-se e usava um magnífico uniforme de soldado. Eu tinha uma enorme admiração por ele. Ele caminha como nenhum outro homem que conheço. Dá passos largos com tanta facilidade como se pudesse manter esse ritmo dias a fio. – A rapariga ergueu os olhos e sorriu, envergonhada. – Descrevo-o mal.

Mas, estranhamente, Emeline sabia o que Rebecca queria dizer. Mr. Hartley deslocava-se com uma confiança graciosa que a levava a pensar que ele conhecia o seu corpo e o modo como funcionava melhor do que outros homens. Nesse momento, virou-se para observar Mr. Hartley. Esperava a sua vez para comprar o chá. À frente dele, um cavalheiro mais velho franzia o sobrolho e batia com o pé no chão, impaciente. Havia outros clientes, também, alguns batendo com os pés no chão, outros mudando de posição, ansiosos. Só Mr. Hartley estava perfeitamente quieto. Não parecia nem impaciente nem aborrecido, como se conseguisse ficar de pé, assim, uma perna dobrada, os braços cruzados sobre o peito, horas a fio. Viu o olhar dela, e as sobrancelhas ergueram-se-lhe lentamente, em jeito de pergunta ou de desafio, ela não sabia. Sentiu o rosto a ficar quente e afastou o olhar.

– A menina e o seu irmão parecem muito próximos – disse ela a Rebecca. – Apesar da vossa infância separada.

A rapariga sorriu, mas os seus olhos pareciam inseguros.

– Espero que sejamos próximos. Acho que somos próximos. Admiro muito o meu irmão.

Emeline observou a rapariga com um ar pensativo. O sentimento era correto, com certeza, mas Rebecca formulava as frases quase como uma pergunta.

– Minha senhora – disse Mr. Hartley, de súbito a seu lado.

Emeline assustou-se e olhou para o homem, exasperada. Deslocara-se até junto dela sem ser notado?

Esboçou aquele seu sorriso desesperantemente críptico e ofereceu um prato com doces de açúcar cor-de-rosa. Atrás dele, uma rapariga levava um tabuleiro com as coisas do chá. Os olhos castanhos cor de café de Mr. Hartley pareciam censurar Emeline pela sua frivolidade.

Ela respirou fundo.

– Obrigada, Mister Hartley.

Ele inclinou a cabeça.

– O prazer é meu, Lady Emeline.

Hum. Ela provou um caramelo e percebeu que era simultaneamente amargo e doce. Todos os pormenores, de facto. Lançou uma olhadela à tia. A senhora idosa tinha a cabeça junto à de Rebecca, falando com toda a atenção.

– Espero que a minha tia não esteja a dar lições à sua irmã – comentou ela enquanto servia o chá.

Mr. Hartley olhou para Rebecca.

– Ela é mais rija do que parece. Acho que sobreviverá, quaisquer que sejam as penas que a sua tia possa infligir-lhe.

Estava encostado à parede, descontraidamente, nem a meio metro dela, pois as cadeiras já estavam todas ocupadas. Emeline bebia o chá quando o seu olhar desceu para o estranho calçado dele.

Sem pensar, expressou os seus pensamentos.

– Onde arranjou esses sapatos?

Mr. Hartley estendeu uma perna, os braços ainda cruzados sobre o peito.

– São mocassins, feitos de pele de veado americano pelas mulheres da tribo índia moicana.

As senhoras da mesa ao lado levantaram-se para sair, mas ele não fez qualquer movimento para se sentar. A campainha tocou por cima da porta da sala de chá quando mais pessoas entraram.

Emeline franziu o sobrolho aos mocassins de Mr. Hartley e às perneiras acima deles. Ele tinha prendido o couro macio mesmo abaixo dos joelhos com uma faixa bordada e as pontas estavam penduradas.

– Todos os homens brancos usam esta roupa nas Colónias?

– Não, nem todos. – Voltou a cruzar as pernas. – A maior parte usa os mesmos sapatos ou botas que os cavalheiros de cá.

– Então, porque usa esse calçado estranho?

Teve consciência de que a sua voz era áspera, mas, por qualquer razão, a insistência dele em roupa pouco convencional era insuportavelmente irritante. Porque o fazia? Se usasse sapatos de fivela e meias como qualquer outro cavalheiro em Londres, ninguém repararia nele. Com a sua riqueza, podia talvez tornar-se um cavalheiro inglês e ser aceite na alta sociedade. Seria respeitável.

Mr. Hartley encolheu os ombros, ignorando manifestamente a sua agitação interior.

– Os caçadores usam-nos nas florestas da América. São muito confortáveis e mais úteis do que os sapatos ingleses. As perneiras protegem-nos de espinhos e galhos. Estou acostumado a eles.

Olhou para ela, e nos seus olhos ela viu, de alguma forma, que ele tinha consciência de que ela desejava que ele fosse convencional e mais parecido com os cavalheiros ingleses normais. Ele percebeu, e isso entristeceu-o. Ela olhou para os seus quentes olhos castanhos sem saber o que fazer. Havia ali qualquer coisa, qualquer coisa que eles comunicavam entre si, e de que ela não compreendia as subtilezas.

Nessa altura uma voz masculina falou de detrás dela.

– Cabo Hartley! Que faz em Londres?

SAM FICOU TENSO. O homem que o cumprimentava era esguio e de altura média, talvez um pouco abaixo. Usava um casaco verde-escuro e um colete castanho, perfeitamente respeitáveis e vulgares. De facto, ter-se-ia assemelhado a mil outros cavalheiros londrinos se não fosse o cabelo. Era uma cabeça achatada, vermelha-alaranjada, brilhante. Sam tentou localizar o estranho, mas não conseguiu. No seu regimento havia vários homens de cabelo ruivo.

O homem sorriu e estendeu a mão.

– Thornton. Dick Thornton. Não o via há quê? Seis anos pelo menos. Que faz em Londres?

Sam agarrou a mão oferecida e apertou-a. Claro. Já conseguia, então, localizar o outro homem. Thornton tinha pertencido ao 28.º Regimento.

– Estou cá em negócios, Mister Thornton.

– A sério? Londres fica a uma grande distância para um batedor de florestas das Colónias. – Thornton sorriu como que para retirar o insulto das suas palavras.

Sam encolheu os ombros calmamente.

– O meu tio morreu em sessenta. Desalistei-me do exército e fiquei com o seu negócio de importações, em Boston.

– Ah.

Thornton balançou para trás sobre os tacões e olhou com ar inquiridor para Lady Emeline.

Sam sentiu uma estranha relutância em fazer a apresentação, mas afastou-a.

– Minha senhora, dê-me licença que lhe apresente Mister Richard Thornton, um velho camarada meu. Thornton, esta é Lady Emeline Gordon, irmã do capitão St. Aubyn. Esta é a minha irmã, Rebecca Hartley, e a tia de Lady Emeline, Mademoiselle Molyneux.

Thornton fez uma vénia espalhafatosa.

– Minhas senhoras.

Lady Emeline estendeu a mão.

– Muito prazer, Mister Thornton.

A expressão do outro homem ficou mais sóbria quando se inclinou sobre a mão de Lady Emeline.

– É uma honra conhecê-la, minha senhora. Posso dizer-lhe que todos tivemos um grande desgosto quando soubemos da morte do seu irmão.

O rosto de Lady Emeline não revelou qualquer sofrimento, mas Sam sentiu-a ficar tensa, embora os separasse uma distância razoável. Não conseguia explicar como tal era possível, mas era como se houvesse uma mudança no próprio ar entre os dois.

– Obrigada – disse ela. – Conheceu o Reynaud?

– Claro. Todos nós conhecíamos e gostávamos do capitão St. Aubyn. – Virou-se para Sam, como que a pedir confirmação. – Um cavalheiro galante e um grande líder de homens, não era, Hartley? Sempre pronto a dirigir uma palavra amável, sempre a encorajar-nos enquanto marchávamos através daquelas florestas diabólicas. E, por fim, quando os selvagens atacaram, minha senhora, teria enchido o seu coração de orgulho ver a maneira como ele se manteve firme. Alguns estavam receosos. Outros pensaram em romper fileiras e fugir… – De repente, Thornton parou e tossiu, olhando para Sam com ar de culpa.

Sam devolveu-lhe o olhar friamente. Muitos pensavam que ele fugira em Spinner’s Falls. Sam não se dera ao trabalho de se explicar nessa altura, e não estava na disposição de começar a fazê-lo agora. Sabia que Lady Emeline olhava para ele, mas recusou-se a olhá-la nos olhos. Que o amaldiçoasse como os outros, se era isso que ela queria.

– As suas memórias do meu sobrinho são muito bem-vindas, Mister Thornton – disse Mademoiselle Molyneux, interrompendo o silêncio constrangedor.

– Bem. – Thornton endireitou o colete. – Foi há muito tempo. O capitão St. Aubyn morreu como um herói. É isso que devem recordar.

– Sabe se há outros veteranos do vigésimo oitavo Regimento aqui em Londres? – perguntou Sam em voz baixa ao outro homem.

Thornton lançou um sopro enquanto pensava.

– Não muitos, não muitos. Claro, para começar, há poucos sobreviventes. Há o lugar-tenente Horn e o capitão Renshaw… Lorde Vale, agora, mas eu não frequento os mesmos círculos importantes que eles. – Sorriu a Lady Emeline como que para reconhecer a posição social dela. – Há o Wimbley e o Ford, e o sargento Allen, pobre peste. Terrível no que ele se tornou. Nunca se restabeleceu da perda daquela perna.

Sam já tinha interrogado Wimbley e Ford. O sargento Allen era mais difícil de encontrar. Mentalmente passou o seu nome para o princípio da lista de pessoas com quem precisava de falar.

– E os seus camaradas de regimento? – perguntou. – Lembro-me de que havia cinco ou seis que costumavam partilhar a mesma fogueira, à noite. Parece que tinham um líder, outro homem ruivo, o soldado…

– MacDonald. Andy MacDonald. Sim, as pessoas tinham dificuldade em distinguir-nos. O cabelo, sabe. Engraçado, é a única coisa de que algumas pessoas se lembram em relação a mim. – Thornton abanou a cabeça. – O pobre MacDonald apanhou com uma bala na cabeça em Spinner’s Falls. Caiu mesmo ao meu lado, é verdade.

Sam manteve o olhar firme, mas sentiu uma gota de suor a escorrer-lhe pela espinha. Não gostava de se lembrar desse dia, e as ruas de Londres, apinhadas de gente, já o tinham perturbado.

– E os outros?

– Morreram, morreram todos, acho. Muitos tombaram em Spinner’s Falls, embora o Ridley sobrevivesse ainda uns meses, até que a gangrena acabou por o levar. – Sorriu, pesaroso, e piscou os olhos.

Sam franziu o sobrolho.

– O senhor…

– Mister Hartley, creio que ainda temos de ir à sapataria – interrompeu Mademoiselle Molyneux.

Sam quebrou o contacto visual com Thornton para olhar para as senhoras. Rebecca observava-o com olhos confusos, o rosto de Lady Emeline estava inexpressivo, e a senhora idosa apenas aparentava impaciência.

– As minhas desculpas, minhas senhoras. Não queria aborrecê-las com as reminiscências de acontecimentos há muito passados.

– Eu também peço desculpa. – Thornton fez outra linda vénia. – Tive muito prazer em conhecê-las…

– Posso ficar com a sua morada? – perguntou Sam apressadamente. – Gostaria de voltar a falar consigo. Poucos recordam os acontecimentos desse dia.

Thornton ficou radiante.

– Sim, claro. Eu também gosto de relembrar velhas histórias. Pode encontrar-me no meu local de trabalho. Não é muito longe daqui. Basta continuar por Piccadilly até Dover Street e encontra-me aí. George Thornton e Filho, Sapateiros. Fundado pelo meu pai, sabe.

– Obrigado.

Sam apertou-lhe a mão mais uma vez e observou Thornton a apresentar as suas despedidas às senhoras e a sair. O seu cabelo ruivo distinguiu-se no meio da multidão ainda algum tempo antes de ele desaparecer.

Virou-se para Lady Emeline e ofereceu-lhe o braço.

– Vamos?

E depois cometeu o erro de a olhar nos olhos. Não havia possibilidade de ela não ter compreendido. Era uma mulher inteligente e tinha ouvido a conversa toda. Mas ele ainda sentia um aperto no coração.

Ela sabia.

MR. HARTLEY ESTAVA em Londres por causa do massacre de Spinner’s Falls. As suas perguntas a Mr. Thornton tinham sido demasiado diretas, a sua atenção às respostas demasiado intensa. Algo relacionado com o massacre do 28.º Regimento o incomodava.

E Reynaud morrera em Spinner’s Falls.

Emeline colocou as pontas dos dedos no seu braço, mas depois não conseguiu dominar-se.

– Porque não disse nada?

Tinham começado a andar, e o rosto dele estava de perfil. Um músculo da sua face moveu-se.

– Minha senhora?

– Não! – sussurrou-lhe ela. Tante e Rebecca iam mesmo atrás, e ela não queria que elas ouvissem. – Não finja que não percebe. Eu não sou parva.

Ele olhou-a.

– Nunca a tomaria por parva.

– Então não me trate como tal. Serviu no mesmo regimento do Reynaud. Conheceu o meu irmão. O que está a investigar?

– Eu… – Hesitou. Que é que ele pensava? Que estava a esconder-lhe? – Não quero falar de recordações desagradáveis. Não quero fazer-lhe lembrar…

Fazer-me lembrar! Mon Dieu, acredita que eu esqueci a morte do meu único irmão? Que seria precisa uma palavra sua para me fazer pensar nele? Ele está comigo todos os dias. Todos os dias, digo-lhe eu.

Parou porque a sua respiração estava demasiado irregular e a voz começava a tremer. Que idiotas eram os homens!

– Desculpe – disse ele baixinho. – Eu não queria menosprezar a sua perda…

Ela resfolegou.

Ele continuou apesar da sua interrupção.

– Mas reconheça-me alguma sensibilidade. Não sabia como falar sobre o seu irmão. Sobre aquele dia. O meu pecado é de estupidez, não de maldade deliberada. Perdoe-me, por favor.

Que belo discurso. Ela mordeu o lábio e viu dois jovens aristocratas a passear por ali, vestidos à última moda. Transbordava-lhes renda dos punhos, os casacos eram de veludo e as cabeleiras extravagantemente encaracoladas. Talvez ainda não tivessem vinte anos e caminhavam com toda a arrogância do dinheiro e dos privilégios, confiantes no seu lugar na sociedade, confiantes em que as desgraças das classes mais baixas nunca os afetariam. Reynaud caminhara assim, outrora.

Ela afastou o olhar, recordando olhos pretos, risonhos.

– Ele escreveu sobre si.

Ele olhou para ela, as sobrancelhas ergueram-se-lhe.

– O Reynaud – esclareceu ela, embora dificilmente pudesse estar a falar de outra pessoa. – Nas cartas que me escreveu, falou de si.

Mr. Hartley olhou em frente. Ela viu a sua maçã de Adão baixar quando ele engoliu.

– Que disse ele?

Ela encolheu os ombros, fingindo interesse na montra de uma loja de rendas quando passaram. Tinham decorrido anos desde que se debruçara sobre as cartas de Reynaud, mas sabia de cor o conteúdo de todas elas.

– Disse que um cabo americano fora destacado para o seu regimento, que admirava a sua destreza a seguir pistas. Disse que confiava em si acima de todos os outros batedores, mesmo dos índios nativos. Disse que o senhor lhe ensinara a reconhecer a diferença entre as tribos indígenas. Que os moicanos usavam o cabelo numa crista no cimo da cabeça e que os wy wy…

Wyandots – disse ele em voz baixa.

– Os wyandots gostavam das cores vermelha e preta e usavam um pedaço de pano comprido à frente e atrás…

– Uma tanga.

– Exatamente. – Baixou os olhos. – Disse que gostava de si.

Ela sentiu o movimento do peito de Mr. Hartley contra as costas da mão quando ele inspirou.

– Obrigado.

Ela acenou com a cabeça. Não havia necessidade de perguntar o que ele lhe agradecia.

– Quanto tempo passou com ele?

– Não muito – disse ele. – Depois da batalha do Quebeque, fui incorporado informalmente no vigésimo oitavo Regimento. Só tinha de marchar com eles até chegarem a Fort Edward, para ajudar a fazer o reconhecimento do caminho. Estive com o seu irmão uns dois meses, talvez um pouco mais. Nessa altura, claro, chegámos a Spinner’s Falls.

Não precisava de dizer mais nada. Spinner’s Falls foi o sítio onde eles tinham morrido todos, apanhados no fogo cruzado de dois grupos de índios wyandots. Ela lera os relatos dos jornais. Poucos sobreviventes do massacre queriam realmente falar no assunto. Estavam ainda menos dispostos a discuti-lo com uma mulher.

Emeline inspirou.

– Viu-o morrer?

Sentiu-o virar-se para olhar para ela.

– Minha senhora…

Emeline torceu um folho na cintura até sentir a seda a rasgar-se.

– Viu-o morrer?

Ele respirou fundo e, quando falou, a sua voz era tensa.

– Não.

Ela largou o pedaço de tecido. Foi alívio o que sentiu?

– Porque pergunta? Certamente, não ajuda saber…

– Porque eu quero, não, preciso, saber como foram para ele os últimos momentos. – Olhou para o rosto de Mr. Hartley e percebeu, pela ligeira ruga que tinha entre as sobrancelhas, que estava desconcertado. Ela olhou em frente, sem ver, enquanto tentava encontrar as palavras para os seus pensamentos. – Se eu conseguir compreender, talvez sentir, nem que seja um pouco do que ele passou, posso estar mais perto dele.

Nesse momento ele franziu ainda mais o sobrolho.

– Ele morreu. Duvido que o seu irmão quisesse que cismasse assim na sua morte.

Ela deu uma risadinha, mas esta saiu como uma exalação seca de ar.

– Mas, como o senhor diz, ele morreu. O que ele queria ou deixava de querer já não interessa.

Ah, agora chocara-o. Os homens tinham a certeza de que as senhoras precisavam de ser protegidas das realidades desagradáveis da vida. Os homens, pobres queridos, eram tão ingénuos. Pensariam que o parto era um passeio antes de almoço?

Mas ele restabeleceu-se depressa, aquele estranho colono.

– Por favor, explique.

– Faço isto por mim, não pelo Reynaud. – Ela respirou fundo. Porque havia ele de se importar? Ele não entenderia. – O meu irmão era tão novo quando morreu, com apenas vinte e oito anos, e houve tantas coisas que ficaram por fazer na vida dele. Tenho apenas um número limitado de memórias dele. Não haverá mais.

Parou, ainda a olhar, sem ver, para a rua à sua frente. Ele não falou. Aquele era um assunto pessoal. Não devia falar sobre isso com uma pessoa relativamente estranha. Mas ele tinha estado lá, nesse local exótico, onde Reynaud fora morto. Ainda que em pequena medida, fazia parte de Reynaud.

Suspirou.

– Havia um livro de contos de fadas que costumávamos ver juntos quando éramos pequenos. Reynaud adorava essas histórias. Não me lembro exatamente sobre o que eram, mas passo o tempo a pensar que, se eu ao menos conseguisse lê-lo outra vez…

De repente teve consciência de que a sua conversa divagava. Levantou os olhos para ele.

Mr. Hartley devolveu o olhar, a cabeça inclinada para ela, cheio de interesse.

Acenou com a mão, impaciente.

– Mas o livro não está em parte nenhuma. Se eu conseguir saber como foram as suas últimas horas, então ele viverá um pouco mais na minha memória. Não importa que tenham sido momentos terríveis, percebe? São os momentos do Reynaud, e portanto preciosos. Aproximam-me dele.

Ele baixou a cabeça enquanto o sobrolho se franzia mais.

– Acho que compreendo.

– Compreende? Compreende mesmo?

Se isso acontecesse, seria o primeiro a entendê-la. Nem sequer tante Cristelle conseguia perceber a sua necessidade de descobrir tudo o que acontecera a Reynaud nos seus últimos dias. Observou-o, maravilhada, e com apreço a despontar. Talvez ele fosse realmente diferente dos outros homens. Que estranho.

Ergueu os olhos e viu o seu olhar. Aquele lábio inferior tão sensual arqueou.

– A senhora é uma mulher assustadora.

E Emeline percebeu, para seu horror, que podia vir a gostar de Samuel Hartley. Vir a gostar dele de mais. Apressadamente olhou em frente e respirou fundo.

– Conte-me.

Ele já não fingiu que não sabia o que ela pedia.

– Estou a tentar descobrir porque é que Spinner’s Falls aconteceu. Os wyandots não encontraram o nosso regimento por acaso. – Virou-se para olhar para ela, e ela viu que os seus olhos tinham endurecido, tornando-se de ferro – fortes, determinados e resolutos. – Acho que fomos traídos.