Na aula, ao fundo, à direita, sozinho na carteira de dois, longe de tudo, abandonado, Jó estava olhando para o tampo, desatento, farto; era o melhor aluno, punham-no no canto a fim de que nenhum (os cábulas, adiante) copiasse por ele e ele não pudesse, como vinha sendo hábito, soprar a ninguém nada; fazia depressa os pontos e por isso gostava de os passar se os outros precisassem (e sempre precisavam), mas agora, isolado assim e sem utilidade, sentia-se irado como num castigo e uma impressão obscura na barriga fazia-lhe calor e enervava-o; puxou uma revista da pasta com cuidado, dissimuladamente, e desatou a lê-la, já de tudo esquecido; mas logo após um breve ou longo tempo, a mão grande pousou-lhe sobre o ombro e ele nem teve necessidade de virar-se para saber; o professor tirou lentamente a revista, com dois dedos apenas, no asco de quem toca em coisa suja e por outro lado gozando com delícia a descoberta de um enigma, talvez de um crime, violação ou assassínio (peça de roupa interior de mulher, esquecida debaixo do colchão da vítima, ou cabelo louro sobre o travesseiro, importante como na terrina da sopa, filmimagens dos livros policiais que lê serões inteiros, enquanto os outros estudam); não disse nada, o tipo, mas mostrou a revista à turma, sorrindo, e levou-a para diante consigo, calmo, cínico, como quem transporta um troféu ou um filho; pô-la na secretária; aí o sol entrava com força pela janela, iluminando a jarra verde cheia de flores secas de papel já velho, azuis, cinzentas; sobre a mesa o livro de ponto e a pauta abertos, junto ao globo terrestre com asas de metal amarelo; para lá da janela, no pátio de recreio, sobre o telhado das traseiras de um prédio velho formando ângulo reto com a sala de aula (esse prédio que ele olha quando não quer ouvir, pondo-se a imaginar o que se passa por detrás das janelas, umas estreitas, com vidros pintados, são casas de banho certamente, aí onde se encontra, diante de si mesma, a maior nudez, a máxima miséria, a mais dura verdade, as outras apresentam cortinas e portadas, quase sempre fechadas, há algumas com escritos em losango por dentro das vidraças, deixando adivinhar um interior deserto com pó e ratos pelos cantos, cotão e papelada, o eco cavo de fora subindo pelos corredores e escuras escadas), dois pequenos pardais, de penas eriçadas, gritavam e galavam-se repetidas vezes, o macho de grande mancha preta ao peito (em casa, Jó conserva, de criança, um livro com fábulas de pardais, e recorda-se de uma, ou inventou-a a partir daí, o pai pardal em casa, a mancha preta de cabelos a ver-se entre a camisa aberta, as asas à cabeça, aflitas e eriçadas ou tristes e zangadas, diante de qualquer desgraça, a seguir no tribunal, direito e digno, com gravata preta ou plastrão, é livro antigo, desses que têm um cheiro acre usado, do tempo dos pais, o pardal, respondendo ao juiz, em sentido, de pé, entre dois pardais guardas que o agarram com raiva, por fim talvez na legião estrangeira, fardado de bivaque igual ao que ele é obrigado a usar na Mocidade, contudo sempre de luto, de gravata grave), e Jó, olhando-os no telhado, distraiu-se da sua grande pena, logo viu o professor folheando a revista por alto, a rir com escárnio, como se (revista boa, de viagens) se tratasse de coisa pornográfica, e em seguida fazer uma data de números no quadro, do género 0962 2690 9602 6920 2096 9620 0296 6290 2609 9260 0629 6029, o que parecia ser os anos do seu futuro exílio; houve riso; entretanto a sineta tocou e no espaço vazio não existiu mais nada; despertou de todo e já de vez; era o leiteiro tocando ao portão do quintal; deviam ser nove horas; saiu de novo para a casa de banho, livre agora.