Com a alba deste dia de Vénus (veneris, venerdi, vendredi) ele ergueu-se, saiu da cama nua caminhando dois passos prà janela, abriu-a e o frio entrou, húmido, áspero, habitado por distantes sons, vozes de madrugada, voltou para o leito na penumbra e sentou-se na borda, em cima dos pés e de mãos nos joelhos, abertos e cruzados, contemplação ioga, enquanto a manhã crescia lá por fora, logo teve um estremecimento e levantou-se, começando a despir o pijama; na casa de banho fez a barba, lembrando-se da primeira vez que a fez, há quatro anos (procurou gilete, lâmina, pincel e sabão, nervoso, logo de início lhe surgiu um problema, não sabia se molhar primeiro a cara e ensaboar depois, se, ao contrário, ensaboava e em seguida fazia com o pincel a espuma necessária; resolveu-se afinal pela primeira e até ali não se deu mal; pior foi depois; agarrou na gilete, a mão tremente, nivelou à patilha e puxou de leve, tão de leve que não deu por cortar um só pelo; de novo a levou acima e a deslizou para baixo com mais força; não conseguiu ainda; a barba fina e fraca; impaciente, o amor-próprio já ferido, premiu forte e feio desta vez, dando um esticão quase violento; resultava, entusiasmou-se, rapidamente raspando a cara toda; reparou que pequenos pontos indecisos de sangue surgiam e iam engrossando; meteu a cara dentro de água mas o sangue continuava em maior quantidade; por fim lá se lembrou do álcool, procurou o frasco no armário, jogou-o na mão e, a medo, o passou pela cara; ardia; soprava sobre as mãos em concha à frente, e o queixo e a face, descobertos no espelho, apresentavam um estado lastimável), em seguida tomou banho; do chuveiro saía uma vaga de frio e o ruído da água sobre a banheira e o corpo, lasso e morno sob a dura água; limpou-se, vestiu-se, saiu; ao fundo do quintal o cordeiro esperava; fez-lhe uma festa na lã grossa e puxou-o para junto do regueiro das canas; pensou que tinha de estudar direito de manhã, e que o tempo era pouco; o tempo; o tempo do direito romano; tempo imóvel e móvel, este contínuo e útil, computado naturalmente ou ad momento a temporum e civilmente ou ad dies (dies cedit, dies venit); dies a quo ou termo inicial ou suspensivo (dies a quo computatur in termino, dies a quo non computatur in termino) e dies ad quem ou termo final ou resolutivo (dies ultimus inceptus pro completo habetur); e contudo sabemos que o nosso tempo não chegou ainda, há uma voz distante, uma reminiscência, eco sem fim, que devora o velho esquecimento, mas, quando vier a hora, havemos de estar preparados, acordados; o nosso reino pobre, a nossa casa triste, os nossos pensamentos estão há muito cerrados, o tempo não consente que sejamos felizes e o morto vela o sono como um mal enforcado; morto cordeiro da páscoa, pendurado, esfolado, assim aberto, as costelas lisas, brilhantes como plástico pintado às tiras alternadas, brancas e encarnadas, desde a espinha, com bolhas de gordura nas pernas e barriga, um cheiro morno intenso um pouco nauseabundo, as vértebras da cauda apontando para o ar, fígado, coração, língua, fressura, bofe, misturados no sangue já escuro do alguidar.