Acordo e tudo é exatamente como se tivesse chegado da mais longínqua morte; a noite terminou, deusa das trevas, filha de céu e terra, toda feita de mamas, esposa-fêmea dos infernos, e ainda me parece, fechado neste quarto, no cavo desta cama, que a noite continua, que o dia é tão-só noite e fora há negridão; hora do príncipe das trevas, eis que acordo em sexta-feira de Paixão, demasiado tarde, o carnaval passou, tenho o espírito opaco, a alma obscurecida e a noite não me larga e desta vez para sempre; vou morrer como um porco e ninguém terá pena; o carnaval passou, carnaval da cidade, os dias de Lisboa que passaram; juntávamo-nos no Império, vendo correr o céu e o trânsito de automóveis, táxis verdes em baixo, contínuos como insetos pelos caneiros do asfalto; alguém chegou e sugeriu que fôssemos nessa noite a um clube de jazz; havia apenas dois, era a um deles, não me recordo qual; sem jantar seguimos para lá, de carro, alguns a pé, pois a chuva parara; as ruas mornas alagadas, grossos pingos das janelas e beirais caíam-nos na cara; a cave, brancazul de humidade e fumo, funda, completamente à cunha; era o último dia de carnaval, terça-feira, depois de cuja meia-noite, dizem eles, não se pode, por se entrar na quaresma, mais dançar; claro que a gente dançava e então eu, com noitadas e algum álcool em cima, vivia uma espécie de sonho pouco nítido, envolvendo os atos de neblina, que me tornava às vezes sonolento ou, ao contrário, violento; enfim sentado numa mesa ao canto, perdi a consciência de onde estava, e devo ter dormido ou simplesmente, sem nada ver, olhado; só sei que ao vir a mim, ao fim de um tempo incerto, me surpreendi fixando uma mulher sentada a meu lado, sorrindo para mim ou para o ar distante, e que me perguntou suave: não se lembra de mim? respondi: não; e ela, maternal: em Madrid, no Whisky Club, o inverno passado; acenei que sim, mas nada me lembrava, foi uma noite em que bebi bestialmente, no último carnaval, nem saberia o nome do clube, sei que não se dançava, se bebia somente e se escutava jazz, nós estávamos em frente da orquestra metida num cubículo, havia uma carpete suja vermelha e grossa e, na parede por detrás do bar, cacifos fechados; ouvi: eu estava até com o meu marido e olhámo-nos logo que cruzei o reposteiro da porta; reafirmei: sim, sim, claro; não tinha porém a certeza de nada; uma ideia me veio: e se dançássemos? reparei então que, desde o início, ela falara espanhol: por Dios, e levantou-se rápida; eu demorei ainda a equilibrar-me, o que alcancei agarrando-me desesperado a ela; foi logo; senti-lhe o corpo como um pesadelo; metido no meio dos empurrões da massa, de novo perdi a noção do real; segurava-a à bruta, levantava as pernas em desmesura, beijava-lhe o pescoço e os cabelos ásperos, passava-lhe o suar das mãos por todo o lado; pergunto-me hoje (mas apenas às vezes, porque tudo é inútil) se de facto aquilo não foi um sonho mau; não sei como acabou; ou eu tombei por fim, ou ela se separou a custo e me arrastou amável para o nosso lugar; devemos ter falado dessa remota noite que eu não recordava já ou o fazia mal; ela contando afirmou por certo que o marido a não deixava olhar para nenhum lado nem para pessoa alguma, que, durante dois minutos, tendo sido chamado ao telefone e estando eu, em relação a ele, encoberto por colunas, eu pegara nas mãos dela e ela dissera: voltarei amanhã, o meu marido todas as noites vem, das onze às onze e meia, é o dono disto e traz-me sempre, para não me deixar em casa meia hora só, de dia nunca sai um instante de casa, quer é estar deitado comigo e (ou) com a criada, é apenas nesta meia hora que jogo toda a liberdade; depois de ela ter saído bebi muito até à bebedeira, pois continuava a não me recordar de nada; no outro dia não senti qualquer desejo de lá voltar a vê-la; ela era só carne e aniquilamento, sem ter de facto nada dentro; esperava que, num mar de névoa e gelo, me chamasse numa irresistível voz, e de repente, ante os meus olhos, se metamorfoseasse numa ave nojenta, negro bútio de pescoço pelado, ou abutre, dessas aves que de noite pousam nos meus ombros e me arrancam os olhos, até que desperto num grito abafado e me reenrolo no pavor de estar só.