São mais que horas, pensou ele, acordando; está já muito calor e hoje é o dia; na vila haverá vozes, altas e lamentosas, dos animais que morrem; imolarei também; ele é, o nosso cordeiro, como as palavras mandam; sem mancha, macho, dum ano; agora vou matá-lo, dentro da madrugada; num golpe brusco, grave, lhe abrirei a garganta, com a faca que gargantas abriu já antes desta, que a sóis duros brilhou iguais ao de hoje, que outrora se cobriu do mesmo sangue; depois caminharei para os canaviais que se vergam ao vento e com a faca tinta do sangue cortarei um tubo na própria cana verde e nele aplicarei os lábios e sentindo o aroma fresco e leve insuflarei a pele do carneiro e ela se encherá e o esfolarei e o tomarei pela cauda e cornos tenros e de uma árvore o hei de pendurar pelos dedos e ele dará às folhas o último arrepio e lhe descerrarei o ventre desde a base do queixo até ao escroto e amoravelmente meterei as mãos no interior das vísceras e um calor antigo me subirá dos braços para a boca e a boca saberá o cheiro do sangue e as tripas rolarão para a terra em que o sangue começa a empapar e esfolado o borrego a cabeça é uma mancha roxa de mandíbulas longas e feito este trabalho cortarei um pedaço da carne do lado e sobre as brasas prepararei a carne, com pães ázimos e silvestres alfaces festejaremos a preparação da páscoa e após termos comido lavaremos as mãos nas águas da ribeira e juntos partiremos pela planície; será na primavera; no princípio de tudo; o sol cairá a pique sobre nossas cabeças quando enfim alcançarmos as portas da cidade; são coisas de direito divino, coisas santas, os muros e portas da cidade.