Estou sentado e estudo esta coisa certa e definitiva: o preço como elemento essencial da compra e venda; a manhã aberta entra pela janela no ondear já quente das cortinas; penso em outra coisa oclusa e breve completamente diferente da que estudo; um largo prato de barro serve-me de cinzeiro, posto no chão; em propícia posição para meditação, medito nesta verdade de estar vivo e dentro duma vida que, contudo, me escapa, vera vontade, pressa de com alguém falar, ainda que sobre nada; entretanto vou, com insistência, sublinhando as palavras pretium certum justam verum e em dinheiro; palavras antigas (antiquo, na votação dos comícios romanos, significava não, negação, preferência pelas leis antigas) como as que lembro: at ipse respondens, ait: qui intingit mecum manum ira paropside, hic me trad... e se alguém neste momento entrasse, o que teria para dizer-lhe? talvez apenas só: a estudar qualquer coisa; e, de cima, dir-me-iam: pois então, o costume; e eu repetiria: o costume pois; mas eis que oiço na rua, um pouco ao longe, para além do quintal que me afasta do mundo, uma voz arrastada, fina, frágil, que me envolve de paz: anda filho, vamos mas é para casa, anda mais depressa que a mãe não pode com o saco, anda filho, anda depressa, que o pai quer o almoço e não o tenho ainda, e não te pares assim constantemente no caminho, anda filho, anda depressa, dá-me a tua mãozinha senão o lobisomem leva-te, anda, vamos para casa; e os passos a par se afastam, pela calçada que sobe, cheia de som e eco da manhã que também, a custo, a pulso, sobe; com ela me volto, em solidão e difícil harmonia, para uma condição de estudo e de universidade; a universidade é um conjunto de edifícios novos, arrogantes, pretendendo-se belos, ali em pleno campo raso, verde durante grande parte do ano; ponta de Lisboa apontada ao futuro incerto, de dentro das suas vísceras velhas; velho gueto repressivo, carreirismo, inutilidade, autossuficiência vil, senil; quando se chega a pé ou de autocarro, a certa altura vê-se de uma só vez, à esquerda, ao fundo, em, digamos, terceiro plano, o hospital escolar, pesado, monolítico, imponente, com essa preocupação monumental de todos os prédios totalitários; num primeiro plano lateral, a faculdade de direito, as suas formas cúbicas sobre o jardim deserto, a arcada rígida, baixos-relevos pobres na parede, com os eternos símbolos de cega justiça e barriguda família, os desenhos do átrio, humorístico-hieráticos, do Almada, com clássicos juristas desde Hammou-Rabi (2000 a. C.) até Heráclito e Pitágoras, Paulo e Agostinho, Rómulo e Remo, Apio Claudio e decênviros, os cinco da lei das citações, Gaio, Papiniano, Paulo,Ulpiano e Modestino, e por aí diante, até aos portugueses; entre esta faculdade e a reitoria (comprida a todo o equilíbrio do frontão com janelas, com míticas imagens laterais de Capricórnio e Câncer) salta a mancha de cores encarniçadas outrora vivas da cantina, de fachada de vidros, mas fechada pela polícia, tendo uma escultura quase abstrata à ponta, formando, para quem olha, um segundo plano de fundura; finalmente, à extrema direita, no plano mais próximo, onde o autocarro para quando chega, a faculdade de letras, espelho da de direito, com figuras da dita cultura humanística, um tanto desesperadas, talvez porque sobressai D. Quixote e o Pessoa “menino de sua mãe” contrastando com a estátua de D. Pedro, o V deste nome, no pátio ajardinado; anda por ali perto o cheiro disperso de uma refinaria de perfumes, junto de barracas de lata e do hipódromo onde pelas manhãs limpas como esta, à nitidez branca do sol, vibrando suaves sobre a relva, ante as bancadas vazias decadentes, cavalos e cavaleiros saltam leves; agora está mais quente, está mesmo já calor; há um silêncio abafado para além das portas, a luz tomba lá fora sua danação dura; saber o que se passa do outro lado do muro, na Europa, na rua; do céu escorre o sono e uma sede sem tréguas nem remédio, sede da noite e do sonho (primeiro Osíris, o sol, é derrotado pela noite, Set, porém a esposa-vaca-lua, Ísis, vem procurar, pálida e triste, o seu cadáver frio e enfim o filho, Hórus, sol-nascente, vinga-se e vence, nasce, vive, esplende e uma vez mais o astro magno impera), como se em cada voz imóvel não houvesse senão angústia e medo, velhice, morte, sofrimento, como se em cada folha de árvores ardesse um fogo oculto, feito de calamidade e inclemência, cheio do terror da desgraça e do pavor do tempo, como se em cada telhado pardo e áspero, com ervas nalguns beirais, e no volume cegante das paredes, o espaço entre os objetos fosse inexistente; comunicar com a imensa vida que sob o sol aquece; conhecer o prodígio, a verdade e a graça de estar integralmente vivo, de ser um com o todo e, o mundo mutante amando, deixar o desespero para ninguém; no jardim da quinta há uma magnólia e uma palmeira, ao longe passam as estradas pesadas de silêncio, o sol derrete o alcatrão que parece um grande espelho, o mar do meio-dia; mas perco-me no isolamento, perco-me no rio que corre em mim, o seu correr afoga-me, e no entanto é calmo e cavo o seu correr; o Alentejo é seco, seco, é seco até à morte; mas a sombra agora, no rio rolante da minha consciência, soberba cresce, envolve-me dum sabor acre e fresco a tijolo e a tojo; estou vivo, vivo, chiça, e as nuvens avançam, muito agudas e brancas, espadas cortantes; em baixo, junto da linha do comboio, os pinheiros crescem em massa verde velada do amarelo de suas flores compridas feias e erguidas encimando-os como a um bolo de anos, as casas foram pintadas de ocre torrado, cor de terra, quase castanho junto ao vermelho vicejante berrante do rodapé e porta; janelas não existem, a casa é um poço; aqui, no quarto, todos os atos ficam longe e nada de fora se percebe, a estante está aí afundada por entre as manchas moventes do sol nos reposteiros; os títulos dos livros aparecem truncados, apenas se distinguem soltas letras ou conjuntos de letras.