De volta da sua missa, o velho Moisés vem conversando, muito calmo, com o calvo sacristão da ermida, o seu melhor amigo, ainda mais velho que ele, pálido, claro, alvo, olhos contemplativos, talvez de, desde sempre, do cimo da ermida, olhar tanto para longe, para árvores e montes, para casas e coisas, paisagem azul-acinzentada e longa, ao longo das estações, inverno, verão, que passam como águias-reais sobre eiras e azinheiras e estradas a direito e verdes searas versas adivinhando o, por trás do horizonte dos outeiros, grande mar, olhar sem pressa os poentes distantes, ocultos numa névoa que é calor no verão, canícula, tremulina, trovoada de inverno, e no instante em que o sol se enche de sangue tocar no sino frágil umas ave-marias que o largo vento afasta, dispersa e logo apaga, alto e cortante senhor do mundo, sem levar aos casais o toque milenário quando o fumo se eleva sobre a vila ao fim do dia; a ermida é um silêncio do sol, tão próximo do céu como dos homens, com varandas rasgadas donde o espaço é palpável; todos os dias ali pessoas pagam promessas a um Deus que as não ouve e que perseguem; na sacristia há tranças, mãos de cera, pés, retratos de família, efígies de soldados e quadros feitos de povo, com a cama, o doente (uma mulher às vezes, sofrendo as dores de parto, a barriga subindo debaixo dos lençóis, grande matriz de plebe, orbe fecunda e pródiga da terra) e enfermeiras de coca e a bela Virgem envolta numa nuvem, descendo num voo fácil pelos muros do quarto, ante a família aflita e cheia de surpresa, e em verso legendas com erros e verdade: à santanossassenhora por me ter livrado de finar estando desinfeliz penando as dores do parto; é uma linda ermida, um lugar santo, mesmo não tendo nada dentro; templos perfeitos sem razão, que gostamos de olhar e em que estamos bem, fiéis a nós mesmos e à nossa miséria, formas belas em si, cuja só substância é serem belas, sem porquê; há na frente da igreja um enorme azulejo, igual aos que há lá dentro a todo o comprimento da parede, junto da qual existe uma arca fechada, ferrada, negra, tendo quem sabe o quê, peste talvez, ou trigo apenas, e duas redomas sobre mesas com presépios de barro, com minúsculas figuras que encantam os meninos, de nariz contra os vidros e na ponta dos pés; em qualquer ponto da parede alguém escreveu à faca uma estranha e solitária, ou estranha porque solitária, palavra: SEMPRE; a palavra estende-se e demora, alarga, alonga-se, dilata, imensa, igual à própria planície, estepe que não finda; fala do Alentejo, do seu grande torpor, daquela ermida ali rodeada de montes; por isso, ao soletrá-la, a voz sai arrastada, lenta, grave, e contudo cantante, dizendo a duração do mundo, voz inominável e sem face do que ainda não é mas olha longe; assim a ermida, assim o seu solitário habitante; chama-se Simão ou Simeão, aquele que ouve (porém não como Samuel), o que às tardes se senta sobre os montes e escuta o som do sol e ouve, e ouve; falam, ele e Moisés, de coisas misteriosas, tão simples, quase incríveis, solenes de solidão e de sossego; são velhos, tanto que a fala deles se assemelha ao vento, e quando se separam parece que é para sempre, ou que de facto nunca se separam, em sua serena idade; ao longe, tanto quanto na vila existe longe, um comboio parte (para onde?) e isola-os, e à vila, da história, em estória metidos.