Este hábito de ficar, durante as férias, toda a manhã na cama; no quarto, de janelas fechadas, ainda é noite, e eu durmo e acordo a cada instante envolto em sonhos; era uma torre, um escuro arranha-céu em obras, com escadas e cubículos, corredores e quartos, e uma confusa peregrinação de padres e de freiras, uma muito bonita, subindo e descendo, procurando algo, era, parecia-me, um internato, talvez um colégio inglês, ou as traseiras duma casa, havia jovens mulheres, salas de aula, auditórios, contínuos, porteiros e gente entrando, saindo, debandando em automóveis pretos, sol lá fora, árvores, parecia dia, contudo de repente era já noite, húmida, fria, soprada a nevoeiro, em que as luzes do bairro escorriam inchando, eu estava lá, presença anónima e para todos anódina, olhando tudo e não colaborando, caminhando porém como um forçado, uma alma penada por caves de castelo, era um subterrâneo tudo aquilo, sem ar e com o desconforto de pedras sem reboco pelas paredes, tal um palco ou antes os camarins dum teatro, nada havia que se lhe assemelhasse, era um lugar de fábula e eu corria, caminhava rápido, cada vez mais preso duma infinita pressa, tomado de pânico de ir morrer, apertado de angústia ou de que outra coisa? desejo, medo, ódio, sentimentos para os quais não existiam nomes nesse sítio distante, amargo, disforme, doentio, perturbado, da memória da morte que me agita, mas vejo finalmente uma porta entreaberta, gente passa, não para, agora quero entrar, escancaro-a com raiva, num gesto de clareza, sim era o que eu esperava, ela ali me aguardava, oferta fácil, era ela e o leito obsceno aberto e, contudo, que desilusão ou desespero me entram na pele e me agoniam, que vasca, que terror, que desespero, dispo-me, ela deita-se; pede que a não magoe, parece estar cansada, talvez ferida no sexo, chama-se Carmen, diz, e eu não sou José, sou tão, tão outro que, quando a possuo e acordo, tenho pena; mal acordei já o outro ali estava, Jacob ereto, rígido, austero; olhava-me do alto da sua face branca, sorriso ao canto, e eu via nos seus olhos a minha maldição; eram uns olhos fulvos dum fulgor de fuligem, aterrado e imóvel, poderoso e percorrido de tristeza, jogando em seu cruzar a minha velha sorte; foi este o meu batismo entre confusas ruas, com raras vozes nítidas e passos sempre longe, as linhas dos telhados cheias de escuridão, vago pavor antigo, com umas tantas luzes crescendo nas fachadas, quentes e imprecisas, por trás das quais, espectral, a rotina ressona ou se deita cansada ou rarefaz os gestos pesados de acordar; de noite a vila tinha, vista assim, a grandeza da noite; as cigarras e corujas costumadas não se ouviam; os galos de momento não cantavam; só cães ladravam e se respondiam no espaço sideral; entre o estalar das árvores, dos muros e dos móveis de quando em vez surgia então a rua alta, próxima do castelo, própria pelo seu silêncio para a prostituição; havia uma irritação cansada e muito oclusa nas vozes das mulheres, que durante o dia todo pouco saem e toda a noite esperam; havia a chaminé onde cozinham e no inverno se aquecem e a mesa sobre que comem e onde os homens, chegados dos montes perto, se sentam, conversando, e elas nas suas pernas, mexendo-lhes no sítio até que se decidam; depois sobem a um dos quatro quartos, nos quais de dia dormem ao lado da patroa e em que luzes vermelhas dão relevo às cruzes, crucifixos e santos e camas preparadas; num dos quartos ficava a noite toda acesa uma vela diante de uma santa, e aos vinte escudos líquidos que rende cada venda, tirados outros vinte que à patroa pertencem, todas as semanas eram descontados mais de cinco tostões só para velas de cera; era o quarto dela, da que se dava pelo nome de Carmen, la de Ronda, mas todos sabem que, tal como com as freiras, muitas destas mulheres preferem nomes falsos, a fim de que a família as não encontre; eis que ali estão, escutando telefonia, fumando, fazendo malha; soltam às vezes gargalhadas tristes, até ternas, comovidas, olhando para Carmen, pois Carmen é de todas a mais bela; e amou um dia, mas não eu; não se sabe porquê, disseram-me, ela enforcou-se há tempos, na trave da chaminé, com um lençol da cama; acordo; que loucura, que absurda Carmen esta; estou cansado, cansado, o sono mata-me; Carmen, minha imagem, devo amaldiçoar-te ou não? tu és a minha morte, este cancro que cresce com o tempo; quem sabe o que o amor constrói na sua ausência? um delírio insano e sem proveito; hoje tudo perdi e nada mais me resta; por isso quero perder o que já me perdeu; por isso peço e odeio na mais triste das esperas; sei que a vida me destrói lentamente e com medo; pois que venha, que a quero, essa sombra tão lenta; e que a morte me leve para donde não regresse; mas que ao menos exista o fulgor duma vez; a febre, a fome, o frio em mim se deitam, e temor e horror são os meus companheiros; entro na igreja, sento-me a um banco ao fundo, olho o altar e fico; em breve, porém, murmuro a meia voz, em lugar de rezar: sobre uma mulher nua penso em deus, e eis que na casa do deus uno desejo a mulher nua; adormeço; acordo; velo, durmo, sonho, lembro; apesar do sol, o dia não tem luz; é como um negativo ou um eclipse, noite de nove meses; que me falta? que sol? por que me tornei demasiado velho depois de ser criança? por que não serei eu nunca um homem novo? durmo, velo, sonho, lembro; a vida é isto: tempo.