O fogo começou por volta do meio-dia, disse depois o guarda, mas, longe como estavam da vila e sem nenhum transporte (só a velha carroça), nem sequer telefone, o rapaz que veio a avisar fê-lo pouco faltava já para a uma; a sirene tocou, tudo inundou na vila até ao cimo do castelo com seu silvo, em três minutos estava pronto o primeiro carro (os bombeiros vestiam-se pelo caminho, no calor da pressa, gesticuladamente perguntando palavras perdidas logo ao vento; o sol braseiro e a febre deles rastro vermelhoscuro perfurando a estrada) e, nos sessenta segundos seguintes, partiram mais dois carros e o jipe dos comandantes, homens maduros, idosos, obstinados, dos tempos da República, entregues àquilo como a um dever de luta pela sua oposição, companheiros do povo e, no entanto, salvando como escravos celeiros e latifundiários; à uma estavam lá; viram de longe o fogo, fero, irado, constou que começou na mata, no pinhal, não se sabe bem como, cobriu toda a seara num instante, alastrava agora pelos campos, pelos cabeços, era por certo mais que um quilómetro em chamas, era grande, gritavam os bombeiros desvairados, na certeza duma luta temível, que durasse por horas e talvez todo o dia; pastos e terras de pousio ardiam com um fumo violento, quase negro, de ervas novas crescendo, curtas, juntas, junto à terra marcada do inverno; fora duro, o inverno, choveu até abril, carqueja crescia crespa e firme; até nevara, três vezes, em janeiro, o que há anos já não sucedia, no Alentejo; fora um inverno estranho, e de tal modo, que, por dizer assim, não houve fogos, durante meses a fio; agora porém vinha com força numa crista de fogo e como que de raiva; a charneca ali, centrada nessa chama, entre a terra cinzenta e um céu cor de nada, era bem a paisagem de um indizível ódio; por entre os ramos de pinheiros, içadas caudas aéreas de pavões, uma luz dourada e peneirada entrava, pólen, até às ervas cirrosas de caruma brilhando pelo chão; as pinhas eram como ovos de aves, e os cimos das árvores, batidas ao norte a vento, fletiam troncos fortes; o tom verde-castanho do pinhal, a sua paz marinha, foi invadida dessa fúria crua, dessa raiva viva, nítida, de um fogo ali pegado por alguém ou por algo; por quê ou quem, era a pergunta esboçada na pressa da ajuda, nos preparos; também Jó, de cima ainda do carro, se interrogou sem querer numa voz alta, ante as labaredas largas: quem? depois desceu do carro, desanimado, lento, caminhou, os olhos amarrados às chamas, pela rua do monte, para mais junto do fogo; viu logo o feitor vir ao seu encontro, chegar junto de si, um ar senil, servil, chapéu na mão, camisa sem colarinho, aberta como o colete e em suor alagada: que desgraça, menino, que desgraça, isto ou foi algum descuido ou: ou quê? perguntou Jó um tanto distraído olhando as chamas escapando-se, azuis brilhantes, amarelas, brancas, as copas dos pinheiros bravos estalando contra o espaço tremido como algas; entre o monte e o fogo havia movimento, gritos, gestos, trejeitos, homens buscando água; mas a água, só podiam tirá-la do açude, e esse estava atrás do sobreiral; urgia chegar até lá com mangueiras, transpor essa distância, seca, sem sombra, cor do fumo e do calor, entre o pinhal pequeno e as ravinas de areia e de cimento; foi o que o feitor disse, e partiu a correr, depois de perguntar a Jó pelo paizinho; ele, porém, sabia que o pai saíra ainda cedo, mas para onde não, para qual das duas herdades; as herdades ficavam bastante separadas; e novamente Jó permaneceu imóvel, olhando essas manobras, esses homens que entravam pelas pontas do pinhal, apareciam de súbito em raras zonas de luz, depois desapareciam, aflitos, inquietantes, mudas imagens de antiquíssimos espíritos dos bosques; Jó via tudo e todos duma zona distante, do seu mundo ainda mítico, de adolescente, mesmo criança quase; o que via era-lhe apenas sem memória, ausente até ao vácuo; via aquilo, ali, desde a rua do monte, entre a pressa dos homens e a sua impotência, sentia que nada poderia fazer; tudo de mais novo, de mais cheio de estranho, para que cada gesto não fosse pesadelo; um pesadelo inútil esforço inoperante; Jó vivia para dentro, o seu medo era outro, pertença só desses sonhos despertos, dos sonhos vigilantes; no seu medo não cabia o que era do medo externo, do medo real dos homens, do fogo, violência ou guerra; porque era bem uma guerra, essa que ali corria; guerra de morte entre homens e os seus sonhos de terra; entre dinheiro, fortuna e a vida futura; o seu era um fogo íntimo, numa floresta interior; era o fogo consumindo a calma da adolescência que sabia sem saber com sua paixão feroz; paixão voraz e feroz, atroz enquanto relembra como as coisas se passaram, a sua amarga aflição ao ouvir dizer, no momento em que os bombeiros partiam nos seus carros, se afastavam do quartel em que se juntara gente, que o fogo era nessa herdade, dos Cantares, e entre correr a casa e avisar, o que era de facto inútil, porque já saíra o pai, ou ir com os bombeiros para ver, foi, mudo e excitado ao encontro dos grandes muros brancos do monte, caiados em nitidez e em cegueira, nus, abertos, expostos à solidão da terra deserta, sem árvores à sua volta a não ser o pinhal pequeníssimo ao fundo, à esquerda, em cujo cume, nos cimos amarelos das flores dos pinheiros como velas de cera, as chamas se lançavam contra o longo pano claro das paredes e telhados assimétricos, o calor do dia e do fogo era mais espesso, duma espessura que formava na garganta um nó de náusea, de vasca aflita em que Jó mergulhou como num banho quente, mergulhou devagar, enquanto o carro cheio se aproximou do monte, aos solavancos sempre, mergulhou tão exausto e sem vontade que, quando o carro parou e os bombeiros saltaram, puxaram das mangueiras e dos cabos, ele ficou imóvel, melhor, imobilizado, dentro dum pântano de espanto; nos telhados havia chaminés, porém inativas, mortas, todo o fumo saía do forte fogo perto, da seara de trigo que, passando o barracão aberto, sem reboco, onde guardavam as alfaias, chegava, rasa e rala, pelo vale e pelo cabeço que sobe desde o monte, até junto da linha de chão charruado onde os sobreiros cresciam, cheios de sombra; em volta se juntavam os gritos dos do monte, feitor e seareiros, e mulheres, e ganhões; os poucos eucaliptos foram logo destruídos, bem como o seu viveiro; do pinhal também pouco restava; mas Jó, ante o fogo crescendo de fúria e de fulgor, permanecia incapaz, escutava-lhe o estalar, a terra à volta tornara-se cinzenta, verde-negra, floresta calcinada, carbonizada, fossilizada já, ele ali tinha o fogo, comendo-lhe a própria carne, a da família, do clã, ao qual no fundo se não sentia ligado nem sequer pelo protesto, porque o protesto era por enquanto em excesso.