A mãe, pelo meio-dia, dando voltas à casa, desarranjada ainda e um pouco desgrenhada, só com o robe em cima que lhe não esconde o volume do ventre, vai conversando com as criadas, monologando para si, numa voz de surdina: quando vivíamos no monte, os meus pais e irmãs, a vida que levávamos era calma, agradável, nada que se parecesse com a atual; fazíamos malha, dávamos longos passeios pelas tardes quando descia o sol e as sombras das árvores se alongavam, criávamos galinhas, bácoros; tínhamos essa charreta da velha égua Flecha, ruiva, de crinas claras, as patas e a testa brancas, todos os anos prenha; voltas que duravam até ao anoitecer, e quando noutros montes era festa íamos com a mãe só nós as três e o pai ficava em casa; a ceia cerca das onze, depois ainda dançávamos; pela meia-noite, até muito mais tarde, voltávamos barulhentas para casa; os rapazes de outros montes às vezes acompanhavam-nos, trotando nos seus cavalos para diante e para trás; tínhamos uma lanterna pendurada na charreta, por mor das noites negras, sem lua ou mesmo sem estrelas; havia por esse tempo salteadores que atravessavam na estrada troncos de pinho, até pedras; uma noite ainda ouvimos apitar por entre as árvores, eram eles com certeza, partimos a galope, aos gritos do cocheiro e dos rapazes a cavalo, prontos para disparar; a mãe trazia uma pistola no saco, um curto revólver caro com madrepérola no cabo; fora já da mãe da mãe, de uma avó que nos contava como o pai se suicidara (com esta pistola branca, costumava ela dizer, o dedo agudo no ar) em Espanha, ela insistia, na véspera duma tourada; ela também lá estivera e contava tudo, tudo, misturando coisas vagas; havia um templo na sombra, uma mesquita com arcos e portas tão rendilhadas, colunas, janelas, pátios; nos pátios vários vasos transbordando umas flores magras, em volta de tanques largos; por ali circulava a memória doutros passos, o frio do que passou era gelado, dentro das madrugadas; fora, pelo jardim sonoro, passeavam os pavões, com suas costas curvas e suas tristes patas; havia ainda, dizia, um palácio com arcadas; sob as pequenas pontes, em silenciosos barcos, beijavam-se namorados; seria Sevilha, ou talvez eu já esteja a imaginar, começo a achar de mais a estória dos namorados; recordo os candeeiros altos e desgraçados, e o túmulo de um toureiro, tudo ela nos contava; aí o nosso bisavô se suicidara, foram mulheres e dinheiro e noites de Granada; assim hoje o invento, na cama ensanguentado, tendo à direita da vista a bala e o seu buraco, e a arma ao lado, ainda quente, fumegando pólvora negra; a pólvora, esse fogo oculto, foco de fogo em potência; tocou a sirene há pouco; o que se terá passado? à Estela perguntei e ela não sabe, diz que também quis saber e procurou ao Moisés, mas ele nada sabia, nem sequer a Armindinha; nestas alturas que vêm desordenar a rotina, todos se buscam, se querem, sentem o mútuo silêncio; então nos descobrimos, mudos e sós, desencontrados, como afinal estivemos sempre; o meu marido anda longe, ocupado na lavoura, ou em qualquer coisa que desconheço e que temo; gostaria neste instante de ter todos a meu lado; mas os filhos são ilhas isoladas; e as criadas não são como antigamente; nosso mundo frio que nenhum fogo acende.