Enquanto Jó se aflige e mais se abisma à vista do seu fogo, Tiago, calmo, impassível, ignorando tudo, na casa dos engomados de teto baixo, sobre o poial em que se mata o porco, constrói, cheio de aventura e de alguma ansiedade, um objeto estranho, australiano, que viu numa revista desenhado, um bumerangue; tirou da casa-da-lenha um madeiro grande e, empunhando a navalha de caça do pai com fino prazer (essa navalha forte manchada de sangue, sangue de empiolar coelhos e lebres e até raposas já, raposas grossas, macias, pesadas como crianças), começa a desbastar, atento, a tábua, em gestos firmes bastante para a sua idade, segundo as dimensões no papel apontadas; fixa primeiro as dimensões gerais; o comprimento, de 46 cm a 1 m, fica com, segundo a fita métrica que tirou da caixa de costura, cerca de 75 cm; o ângulo de abertura dos braços, que deve ser de 90 a 120 graus, fica, perto da média, um pouco mais que raso, uns 110 graus; os braços, finalmente, são o mais difícil, pois um deles é vários centímetros mais comprido que o outro, embora devam ambos ter o mesmo peso; ele vai pela intuição, um pouco à aventura construindo; um lado é plano e o outro arredondado ou arqueado, havendo uma ligeira obliquidade em cada pá, como nas hélices; o bumerangue funciona de facto à laia de hélice mágica que, uma vez lançada pelo ar, descreverá uma espiral até bater no alvo, se ele existe e se o golpe for certeiro, alvo que pode ser fera ou avestruz ou inimigo, mas, caso não haja alvo ou nele não se acerte, descreve uma revolução sobre si mesma e, mais lenta, regressa sensivelmente ao sítio de saída; Tiago pensa aplicar este objeto de eterno retorno à infindável planície do seu sonho; nele trabalhará toda a manhã, mas uma só manhã não basta para projeto tal.