À uma hora chegava no comboio uma amiga de Arminda, colega da faculdade com os pais em Angola, vinda para passar alguns dias de férias; Arminda foi, a pé, acompanhada do irmão mais novo, esperá-la à estação, na ponta baixa da vila; chegaram porém um pouco adiantados a esse lugar em que a charneca surge em volta dos carris onde ferve uma máquina, arfa, silva, dentro arde, na cortina de fumo dum quente correr de água; é a locomotiva, ligação com o longe, cheia de rodas e bielas, chaminés, cilindros, tubos, faróis, escadas, molas e manivelas e correntes e ganchos, torneiras, apitos refulgentes de cobre e a torre donde os homens, cheios de tédio e fuligem, mexem em alavancas em frente aos mostradores; na estação, debaixo do alpendre, à sua amável sombra, homens falam baixo, sérios (homens exuberantes e no entanto sóbrios que ali esperam, como nas tardes passadas na taberna, pela liberdade desejada que anunciam profetas, mas a medo, pelas pides paredes, enquanto um traz jornais no bolso, papel bíblia, os passa olhando sempre para o lado, jornais em que vozes falam de prisões, torturas, medos, segredos de trinta dias, interrogatórios de pé durante oitenta horas até se urinar sangue e martírios e suplícios e a morte, perante a qual nada há a perder e é pouco todo o risco, desafio, assim o homem faminto se decide a dedicar a vida inteira àquilo, e a dos filhos e filhos dos seus filhos, se preciso, até um dia ser possível, e de monte em monte corre que surgiu, lá longe, não se sabe bem onde, mas surgiu, messias prometido, um posto de rádio clandestino com um grande nome grato, para escutar o qual, com suor, com sacrifício, os ganhões compram na vila, aos sábados, telefonias de pilhas baratas e portáteis, que levam para casa, em montes e aldeias pobres abandonadas aos ventos da planície que consigo transportam, em ondas pelo céu, vozes longínquas e confusas e tão fascinantemente o fazem, que os homens, ao deitarem-se nas duras camas do trabalho em que as mulheres, magras e pacientes de calma permanência, de aflita espera, esperam, são mais ternos para elas e a elas prometem, cheios duma esperança abstrata, um futuro melhor de paz e pão, de filhos, que as não obrigue mais, depois do coito, a erguer-se da cama em noites frias, caminhar pela pedra até ao alguidar e à água viscosa, enquanto os homens mortos de cansaço, com um sorriso entre a crescida barba, adormecem e sonham, e podem vir, de madrugada, os guardas socar a porta a golpes de espingardas escravas), quando o comboio se ouve pela primeira vez ao longe, da banda de lá da alta ponte de ferro, vertiginosa em arcos sobre o rio, onde uma tabuleta branca inútil (pois é ali que vagas sucessivas de suicidas vão buscar alívio, antes da curva da ponte, onde a tabuleta diz) avisa: PARE, ESCUTE, OLHE; do outro lado das linhas há os campos, tratores, carroças de guizos em que a brisa, ao perpassar, faz discreto ruído; atrás, o prédio antigo da estação, com relógio e telefones tocando, as casas dos empregados, pardas, térreas, rasas, numeradas de 3A, 3B, 3C, 3D e assim por diante, com arrecadações, depósitos, farolaria e urinóis, a cancela e quintais com pombos, os pinheirinhos mansos em que se sente o mar; há a venda da Tia Eusébia que usava de caridade para com os clientes, afirmam os vizinhos e sorriem, santa mulher, já gorda e velha, falando a sua linguagem desbragada, compreendendo e alegrando tudo e todos: um homem casado não tem nunca vagar para estar quieto, só cobrir a mulher é metade do tempo; isto diz ela, rindo, ou então mostra o mostrador do seu relógio, com duas mulheres nuas desenhadas; contam agora que ela prefere mulheres, mas isso é improvável e eis que o comboio chega, entra chiando, refreando os travões, com passageiros dormindo pelos bancos, cheios de calor, desfeitos, ouvindo longe o ruído das rodas, insistente, longo, trovoado, certo, cadenciado nas carruagens de terceira classe por um cantar de amigo lento e arrastado:
rosa branca desmaiada
onde deixaste o cheiro
deixei-o no teu jardim
sombra do limoeiro
à sombra do limoeiro
onde o sol não tem entrada
onde deixaste o cheiro
rosa branca desmaiada?
prolongado nas terras poeirentas de azinheiras castanhas e vermelhas, de figueiras velhas, desfolhados esqueletos; chegada à estação, com azulejos de motivos nítidos como fotografias, a amiga de Arminda, com o braço erguido desde a janela aberta, sorri e acena.