Pouco depois da uma hora, descia o pai a rua irregular e excessivamente inclinada do castelo, saindo à vista da rara gente que passa da casa rasa da amante, quando, ao passar pela porta do barbeiro que fechava, este lhe perguntou, na sua tagarelice, se o fogo já estava extinto: qual fogo? foi então que Francisco soube que a herdade ardia; correu ao jipe estacionado no Largo da Fonte Nova (pois de manhã, ao sair, fora apenas ao Pomar, pequena fazenda próxima, na outra margem do rio, num sítio arejado alto, onde havia um pego e onde passavam um mês no verão, setembro, quando era a feira e a família vinha de outro mês na praia) e partiu a toda a brida para a herdade dos Cantares, umas dez milhas por estrada muito má; o barbeiro ficou olhando o fim da rua deserta, esfregando as mãos quase alegre, porque o fogo nas herdades não o assustava muito, não o assustava nada, não vivia nesse mundo, ele viera de fora, não tinha terra, o que tinha, ganhara-o com as tesouras, por isso achava piada às inquietações dos ricos, cujos cabelos cortava, às suas rivalidades, pois ainda pouco antes, enquanto fazia a barba ao senhor Tomé da Torre, o ouvira dizer que: é bem verdade que às vezes Deus escreve por linhas tortas (o nome de Deus para eles serve de santo e de senha); e o barbeiro meditara: ai Alentejo, Alentejo, hás de ter um lindo enterro! ele estava mesmo a ver o caminho disso tudo e não gostava lá muito que as coisas mudassem tanto que a freguesia mudasse, mas, enfim, quem tinha culpa? os tipos ricos, que em vez de verem os males e o destino que levavam, se fechavam no seu ódio, orgulho, fúteis guerrilhas, até chegarem a ser capazes de deitar fogo nas herdades dos vizinhos e dizerem ou fazerem suspeitar que foram outros, os ganhões, que o provocaram; o Tomé da Torre tinha uma herdade mesmo ao lado e era inimigo mortal do dono da dos Cantares, por uma questão de estremas e porque sabia que este lhe chamava novo-rico-sem-princípios (ah, os princípios, princípios, princípios que são do fim), ignorando a tradição de dono e quase senhor semifeudal dessa vila; por isso esse tal Tomé, não há meia hora ainda esfregara as mãos no barbeiro, na esperança de que o fogo fizesse que o dos Cantares vendesse parte da herdade, pegada à da sua Urgueira; por isso o barbeiro agora esfrega as suas mãos cuidadas, na expectativa de ver como as coisas acontecem, enquanto, fechada a loja, vai descendo para o almoço, não sem primeiro passar pelos dos Cantares, perguntar se já sabiam; estes tinham acabado de sabê-lo por Arminda, que regressara da rua com a sua vinda amiga; em casa tudo tumulto, a mãe aflita, Arminda preocupada com aquela recepção à sua amiga, esta quase envergonhada, como quem entra demais numa nova intimidade, João Carlos perplexo e o irmão mais velho vindo de seguida perguntar-lhe se quer ir com ele lá, ao fogo, no outro carro; vão, André conduz a cento e tal o Mercedes, mas quando lá chegam veem a chama quase extinta, longas extensões de terra fumegam húmidas tintas, o que porém não significa que não demore ainda horas a apagar completamente a combustão lenta do trigo, lume interno intenso como o do carvão num forno, pelo que os bombeiros têm de permanecer em volta, sendo-lhes dado um almoço de linguiça e pão caseiro, pelo feitor, que se lamenta junto do patrão Francisco; este regressa no jipe com Jó e o comandante que por ser fraco e velhote deve ir almoçar à vila; João Carlos e André seguem-nos no outro carro, sob a poeira infernal.