Que sonho sinistro; assim como Arminda, a mãe está irritada desde que despertou, e se recorda; visto da cama, em que o marido dorme, o teto é alto, branco, as paredes azuis, de um azul forte nobre, aquecem-lhe o silêncio, as três janelas dão para o desterro da rua, com barrancos e bosta, com sinos e o grito, muito agudo e cortante, quente, perto, do comboio sem pressa e do seu fumo lento que atravessa montes e montados; o teto é alto, a cama é muito larga, chega para dois corpos destinados à morte, tem relevos de fogo, patas de águia fincadas, o sobrecéu ausente para destruir o medo; há muito o sol raiou, por dentro, a solidão da terra, a podre e estéril e fecunda, a porca, o mal amaldiçoado até ao fim; este é o quarto no interior do qual a vida se me decidiu; ao canto do oratório com um cheiro chocho a velho, onde o ouro dos anjos e dos santos e das flores estilizadas sem graça brilhou ao fundo de dentro da penumbra, repousa um frasco de remédio de qualquer morto antigo já esquecido; ele repousa, o morto, outro, em qualquer cama de qualquer quarto de qualquer casa outra, repousa frio e longo, fino e grave como todos os mortos, sob o selo de cera da sua face morta, ele repousa, ei-lo, na mesma cama em que, noite de núpcias sempre nova, os amantes se abraçam, ternos e furiosos, com receio e espanto se descobrem, na primavera, entre os lençóis bordados, largos (no chão de lustro escuro amontoam-se as roupas e o vestido de noiva, como de bailarina, mítico e cheio de espuma, seios, sobre o tapete fofo meio gasto, azul e encarnado, desenhado no qual, em solenes noites cravejadas de estrelas e do crescente agudo como um sabre, um sexo, um alfange cortando os inimigos, em cima dum cavalo célere e de focinho estreito, o árabe galopa com a mulher nos braços e as palmeiras bravas longamente espalmam palmas, estalam, de longe, da mesquita e palácio), na mesma cama em que suaram dores de parto e seres roxos nasceram, e abortos e, até ao horizonte grande, fundo, para além dos telhados secos, pardos, dos muros cegos, brancos, da torre da igreja fina e estreita, em curvas suaves e volutas e aletas, uma pequena cruz de ferro ao cimo, um para-raios, sem cor contra o azul um tanto encarniçado, para além das coisas e dos corpos, das faces que impressionam, abalam, intimidam, comovem depois de, por muito tempo antes em desatenção e pressa olhadas, agora desvendadas, em seu mistério surdo e carga de sentidos, para além da taberna diante, de janelas baixas, gradeadas, cheias de sons e duma luz intensa, natural, dispersa, à qual se juntam vozes de homens de quando em vez gritadas e o ruído arrastado, repetido e áspero das malhas férreas que raspam pelo chão até baterem, certeiras, na madeira ou no fito, para além, até ao horizonte longe, vermelho como se a vila ardesse em silhueta, em leque, em arco, amarelo, verde e ocre, azul, ao alto, nascente de miragens, puro pesadelo, mar com ilhas estreitas, alongadas, cor de sombra e de carne, mar de vidro, aquário nítido, próximo, percorrido de vento e, até ao horizonte calmo curvo porto de abrigo, uma baía, apesar de todos os tormentos e martírios, apesar da guerra e fome e peste, a vida viu, uma vez mais, surgir a nua luz do dia; esta é a casa em que desperto; esta a hora; a casa está em ruína, as paredes desfazem-se; casa antiga; entra-se; a escada hoje apenas sombra; depois do primeiro andar segue em vertigem por aí acima povoada dos passos das gerações passadas; tudo ausente derradeira derrota; a comprida sacada sob o frontão triangular abre-se para a planície no além do largo; dentro da sala do candelabro, dos quadros e do espelho, o frio dos móveis arrepiou a vida; um vento duro estremece as vidraças durante o dia todo assustadoramente; odeio o vento; nesta sala eles viveram, jovens de cabelos brilhantes longos densos, raparigas de pequenos peitos e de triste olhar, quase velho, mordendo a sua noite e caminhando lentas e caladas pelos corredores, cozinhas, caves, despensas em que se falava a língua do terror; mais tarde a da revolta; criadas querendo e temendo os patrões impudentes; no escritório de baixo, apainelado, vi pela primeira vez uma nódoa de sangue; ali esteve a doida, gradeada em ódio, às escuras para não convidar os homens que na rua passavam, tantos anos seguidos que, por fim, ninguém dela falava; jamais gritou; haviam-lhe cortado as cordas da garganta; lembro-me do dia em que morreu; tinha eu sete anos; era por certo já maior que ela, tão mirrada, tão escura, tão nojenta; vieram acordar-me numa manhã como esta, abriram só a fisga da janela e disseram: a tiavó morreu; qual tiavó? a louca; neste seu só nome vinha o desprezo e o alívio; vestiram-me de preto igual a ela, como duas irmãs; tinha o cabelo escuro semelhante ao meu; chegou gente de fora, entravam e saíam, falavam em segredo; fui obrigada a dar a volta à sala para que as senhoras me beijassem e me fizessem festas; na casa da entrada a mesa coberta com pano negro e folhas de papel e cartões de visita, cheios de letras; um pobre deixou dinheiro na bandeja, costumavam fazer isso entre eles; eram amigos nessa altura e todos os criados da lavoura foram à tarde no enterro; hoje as coisas mudaram; não sei se a rapariga já voltou da praça; tenho de ir à cozinha ver como as coisas correm.