Que dizer ainda, no misterioso mundo das mulheres, da tão sem remédio anódina, anónima figura de ardente mulher simples, solteira como Arminda, apenas mais calada, habituada a nunca ninguém querer nem lhe pedir a sua opinião de cozinheira-máquina, Piedade alienada logo desde antes da manhã, quando, deitada, o quarto ainda escuro, enumera para si os gestos a fazer e feitos já há anos e que nada lhe interessam, não lhe dizem respeito por não serem os seus? que dizer, se se consente, de certo modo se aprova, se aceita que os homens pensem que quem sabe está calado, tão mudo que tudo fica remetido a essa vida a que chamam interior, a verdadeira vida, única que resta a esta mulher? mas talvez que a vida seja sempre só essa luta inútil e a devamos contudo olhar como se fora outra, descobrir em cada coisa a face oculta, a face que está na sombra, nas origens, na fonte, e de súbito nos surge como se antes não fora; assim, de manhã, Piedade prepara o almoço e às vezes o jantar, depois de ter ido às compras, matado o pato ou a galinha, feito o café e a limpeza, mexendo em água e lume, tocando coisas concretas, tendo nas mãos os elementos, o mundo inteiro que ela merece, ela e a sua classe, passo primeiro e necessário para a vida dos outros, vida não alienada, não nos limites do estômago, nos quais afinal acabou por cair, depois dessa viagem sabotada que se chamou revolução francesa e que os poderosos se encarregaram de estragar, sendo hoje necessária revolução mais radical, capaz de acabar com esta exploração desembestada que a besta burguesa burocrática inventa sempre com mais subtis máscaras; ao contrário de cada uma das outras mulheres da casa (ao contrário da mãe, mulher triste, fechada no amor às coisas e num certo e cada vez maior desprendimento em relação aos seres, ocupando-se e preocupando-se com a casa, os móveis que envelhecem e tanto precisavam de restauro, as cortinas que vão a pouco e pouco sendo furadas pela traça, comidas pelo pó, sujas das moscas, os tetos e paredes que necessitam ser pintados, rebocados, salvos da morte, agora que a vida nela se não pode já salvar, perdida na indiferença do marido egoísta, dum materialismo primário e infantil que o faz passar ao lado do essencial, esse homem da idade da pedra preso à saudade do passado, sem dúvidas e também sem qualquer ambição, apenas com inveja de tudo o que o humilha, o transcende, vaidoso sem orgulho, seguro na sua ignorância quase em todos os campos, político, religioso, social, sexual ou científico, filosófico enfim, no sentido da ausência da mais rudimentar psicologia, para quem a vida não tem qualquer razão, explicação ou sequer consciência de si, para quem viver se reduz ao vegetar diário, sono, comida, sono, cansaço, devassidão, ausência, apatia, espera, sexo e trabalho, café, lavoura, café, conversa, intrigas, dinheiro, pacífica paciência e olhar prisioneiro do nada, homem para quem mesmo o casamento não chegou a ser contacto, não foi mais que contrato, com a mulher da sua classe, fortuna e posição social, que, chegada a hora madura de fazer família, lhe desagradou menos do ponto de vista físico para amante legal e no aspecto moral para governanta, mulher de quem em breve estava desligado, se é que o não esteve sempre a não ser para a ficção dos filhos, porque nunca se preocupou com dar-lhe alguma coisa, ensiná-la no pouco que soubesse, nunca compreendeu que, na tacanha sociedade arcaica em que vivia, a mulher é aquilo que o homem fizer dela, e ele fez dela um corpo apático, favorecendo e completando assim uma educação medieval de três irmãs que, com a morte do pai, ficaram fechadas em casa com a passiva mãe, à espera de que alguém as viesse desenterrar para uma alcova obscura de casados, que totalmente, como era bem que fosse, ignoravam até nos menores pormenores), sim, ao contrário de cada uma das mulheres da casa, Piedade não possui um caso, um problema grave e seu que a preocupe ou persiga dia a dia, a não ser o incidente das claras em castelo, que não teve de facto coragem de bater, sem que contudo nele inteiramente creia, apenas lhe parece que deve sustentar a tradição daquela crença, único elo que a vincula ao seu mundo, pois se lembra de ouvi-la à tia e à avó, não à mãe que a não teve, ou não se recorda tendo-a, e isso lhe dá talvez a súbita sensação de também não estar viva, de a sua vida ser igual a nada, de o seu destino ser simples tábua rasa.