Enfim a noite existe, a longa fria noite deste dia de trevas e tormentos e lágrimas; quanta coisa a dizer, quanta coisa a calar; as palavras estendem-se pelo papel fatigado, com seu peso de sentidos e de séculos, lentas inúteis iguais à noite, fúnebres como a procissão atroz do Senhor Morto, que irrompe violentamente pelas ruas, agressiva e grave de luzes de velas tremendo e fazendo tremer, numa zona de sombra, os vidros fechados das casas com candeias nas janelas altas, em escalões paralelos pelas praças descendo num cântico cansado, acompanhando o esquife com o olhar boquiaberto do povo mudo atrás; o brilho dos punhais de pura prata no peito da Senhora, os petromaxes verdes archotes sobre as cabeças dobradas dos músicos da banda tocando o compasso triste de qualquer remoto eco de marcha fúnebre, as velhas supersticiosas e beatas, já não podendo andar, benzendo-se nas esquinas e portais, enquanto um vento devastador encurralado vem vindo pelos vales da planície e a procissão percorre seu destino morto e os ricos, compenetrados, sérios burgueses, empunham candeias e matracas e andores e entre si distribuem toda uma ultrapassada hierarquia (de fora, dois não católicos observam e conversam, André e um amigo de ideias largas, que conta como um camarada dele, todas as vezes que a procissão passava, lhe pedia que ajoelhasse para não dar nas vistas, ao que André respondeu e disse: eu sei, amigo, e tu provavelmente ajoelhaste e sentiste por ti um desprezo magnífico e por isso te peço que não ajoelhes desta vez e fiques de pé comigo e o morto não se ofenderá com isso), mas, quando a procissão desaguava no largo do monumento aos mortos da grande guerra, como uma súbita intervenção divina, a iluminação elétrica extinguiu-se simultaneamente em toda a vila, houve um abalo fundo e um terror de desferida faísca, na noite, e ao contrário; sussurros na massa, breves, surdos, aos quais um silêncio de pedra se seguiu; e, nesse silêncio aterrador confrangedor agudo, sentia-se que todos os instintos se alteravam, que todos os medos e ânsias seculares surgiam ao de cima, que todos procuravam um abrigo; enquanto alguns corriam e fugiam, outros ficavam imóveis nos lugares, agarrados às pedras e à terra, feitos casas ou árvores, prisioneiros do pânico antiquíssimo dos deuses; muitos chegavam-se uns aos outros, abraçavam-se, rapazes e raparigas beijavam-se, cheios de desespero e diligência, parecia fim do mundo, procuravam-se coxas, seios, bocas, em breve se elevavam risos, gritos, vozes veladas, roucas de pasmo e miséria rezavam, as crianças choravam, os parentes chamavam-se, ouviu-se a voz de um padre a berrar CALMA, CALMA, as fachadas dos prédios fechados avançavam, as árvores da Praça das Palmeiras agitaram-se no meio do nevoeiro (que só então se viu) descendo do castelo imponente ameado coberto de capotes de névoa de cor parda gemendo sob o peso impossível de andores queimando-se nos pingos das velas que sem razão visível se apagavam gerando sobre a terra envolta no silêncio o mais tremendo caos; ninguém soube, mais tarde, dizer exatamente o tempo que durou essa desordem, espontânea ou provocada, esse tempo de sonho, porque a mente humana, mergulhada nas trevas, não sabe nunca bem imaginar o tempo; agora um grande coro de vozes fêmeas rezava uma ladainha lastimosa e despropositada à Virgem Madre:
Sancta Maria
Sancta Dei Genitrix
Sancta Virgo Virginum
Mater Christi
Mater divinae gratiae
Mater purissima
Mater castissima
Mater inviolata
Mater intemerata
Mater amabilis
Mater admirabilis
Mater boni consilii
Mater Creatoris
Mater Salvatoris
Virgo prudentissima
Virgo veneranda
Virgo praedicanda
Virgo potens
Virgo clemens
Virgo fidelis
Speculum justitiae
Sedes sapientiae
Causa nostrae laetitiae
Vas spirituale
Vas honorabile
Vas insigne devotionis
Rosa mystica
Turris Davidica
Turris eburnea
Domus aurea
Foederis arca
Janua caeli
Stella matutina
Salus infirmorum...
e assim por diante em lento lamento ou antes como quem pela noite dentro canta para afastar o medo, o pânico daquela inesperada visitação da morte, temor de cristãos primeiros nas arenas do circo, pavor apelo triste e só, até aos ossos, de homens das catacumbas, de exilados longínquos em geladas sibérias ou abandonados, magros (percorridos por um suor aflito) barqueiros de volgas e galés; a música da charanga, insegura e insólita, voltou a atacar a sua marcha fúnebre, essa qualquer melodia que parecia servir para ajudar os pés a caminhar, para cercar o coração de lágrimas e angústia e ficção do sagrado, compasso que morreu logo, às suas próprias mãos, porém as vozes frias, firmes, continuaram ainda, por um tempo impreciso; algumas velas voltaram a acender-se, à frente, junto ao pálio, aos andores, ao longo das filas de fiéis, longe dos archotes fumegantes dos músicos, e as faces surtindo, iluminando queixos, dando a tudo um aspecto de mudo lémure, com pescoços e olhos brilhantes, perscrutando; as bocas se tornavam largas, retangulares, cheias de sofrimento e dor, máscaras de tragédia, sem dentes, sem língua, só noite interior e escuridão; os narizes, esses, agudos e sinistros, narinas abertas, bichos bravos, tornavam as faces mais distantes, chupadas, velhas subitamente, duma velhice extrema, decomposta horrível decadência; tetas e testas se sumiam, sombras raiadas de desgraça, as orelhas despegadas da cara tornavam simiescos e brutais os cabelos, bem como os fatos e os corpos, tudo também só noite e noite exata, exarada em ata, definitiva, precisa, compacta, totalitária; aqui além, dispersas, segurando copos de velas derretidas, as mãos eram de cera, cor-de-rosa e claras; vultos atravessavam o largo e a desordem dentro da qual um cão uivou, lá longe, não se sabe bem onde, uma criança gritou, distintamente: Mãe; contemporâneo deste grito foi o surto, tão inesperado ou quase como o anterior eclipse, da luz lá longe, na parte baixa da vila; viu-se um clarão imenso, em relação às trevas dominantes, erguer-se por detrás dos telhados da praça, infiltrar-se na névoa sonolenta, apagar ainda mais, se possível, as velas, como se uma enorme lua cheia viesse despontando; depois apareceu por outras ruas e vielas, iluminou o Rossio e o castelo, até que finalmente, como que meditado, apareceu naquela grande Praça, das Portas do Sol chamada, por ser ali que o sol surge primeiro, quando nasce; todos então se olharam, aliviados e cheios duma espécie de vergonha, como depois de qualquer intimidade que a escuridão permite e a crueza da luz desencoraja, afasta, talvez antes porque o espetáculo desvendado era tétrico e de cabelos desgrenhados, qual se um longo duro ciclone o tivesse atravessado, formavam grupos aflitos, um tanto dissolutos, procurando-se depois da tempestade; houve vozes e gritos, histerismo, palmas e assobios esquisitos, esquecidos todos de que se estava no enterro do Senhor; mas pouca importância tinha nesse instante o Senhor, ante o abalo e o susto que cada um sofrera e pensa que escapou à tormenta e sente o sabor da morte ainda em cima, o soluço de alívio e também de surpresa daqueles que se livram dum infinito túnel; os padres, cujas palavras de ordem eram ORDEM, ORDEM, deram-se pressa em tudo organizar; são hábeis nisso, em ocultar o mal; as fileiras formaram-se, tocou a filarmónica, e com nova energia a procissão seguiu; sim, é um facto, prosseguiu.