A noite, eis como ela se instala no coração da história, novamente se instala e parece que tenta aqui ficar para durar, nestes negros anos de solidão fechada, quando crianças chegam moribundas de sono e de cansaço, se deitam em camas comuns de três e quatro, atravessam a ponte martelada das vozes dos que ainda conversam, falam baixo do outro lado do tabique, e elas veem, vislumbram, descobrem entre névoas esse reino real que lhes foi negado, e às vezes choram atentas, fulminadas, presas dum sopro que se escapa, se esvai, e a ira que as invade é a ira dos que a vida tentou meter à parte, tentou matar sem mais, mas estão vivos, merda, e um vivo vale, e quando, uma noite atroz, as pancadas soarem, de velhos de botas e espingardas entrando a pontapés e ordens no seu quarto, quando a cortina de astros por fora da janela for muda testemunha do seu terror e espanto, sua revolta baça, sem ter ninguém que os olhe com muito amor no quarto, ninguém que lhes conceda um despedido olhar, ou um beijo, um abraço, uma pressão no braço ou carícia na cara, um sorriso até desencontrado, antes a sua entrega à força infrene e farta, aos olhos-revólveres frios da noite insustentável queimada por infinito desastre, ácida sem mais nada, apodrecida gasta usada apenas pelos cães, pelos homens-espingardas, homens-máquinas infernais, articuladas máquinas, robôs desenfreados, escravos de vozes negras, distantes e castradas, finas, cortantes, estáticas, férteis em dor e desgraça, no mais em extremo estéreis, sem garganta, sem palavras, falando pelo umbigo, algumas vezes pelo ânus, pela vulva, pelo vácuo, pelo sinuoso sítio deixado pelos testículos outrora autotirados, por tudo o que é monstro e morte e comanda quando a noite puxa os homens pelas garras, os tira do leito frio onde se assassinaram, destruíram e prenderam, deportaram, condenaram, quando a violência é toda a mentira instalada, quando tarde na noite o homem percorre altas esferas, procurando o caminho do voo visionário, o arrepio se sente do abismo tão próximo e desastres e mortos se amontoam na estrada, a miséria alastra nos campos devastados e o vento atrás de si arrasta os zângãos e as casas se afundam por baixo dos telhados, casas baixas se afundam sob telhados baixos e as linhas se tornam mais nítidas e dementes e assim por diante pela noite dentro; o sono chega e tudo invade, tudo devora, deus do caos; as palavras palavram; os discursos são falsos, as vozes se confundem; a face das coisas conserva-se confusa sob o peso dos séculos, as bebedeiras metafísicas dos anjos seculares vão acabar, para que os homens possam enfim ter a coragem do eterno recomeço em cada madrugada, da poesia e do encanto de guardar, no rumor e vertigem dos dias ocupados, um instante de paz e de serenidade, na certeza de que se vai assim perder o autocarro, perder o ano ou um emprego alto, faltar a uma entrevista combinada, faltar talvez ao encontro da sorte, para se não fugir à hora do combate, ao coro de falas próximas do corpo das larvas e lagartas derramadas ao sol difuso da memória dos dias acabados, das noites prolongadas (talvez do velho lupanar da vila, a cuja chaminé se lê, numa cópia borrada, um papel de Bons Conselhos nestes termos, que resumem quase uma sociedade: todas as meninas que trabalham nesta casa devem saber conduzir-se na rua, na família, na sociedade, em todos os sítios onde se encontrarem, não devendo deixar transparecer a vida que fazem; terem o máximo cuidado com o vestuário, com as palavras obscenas e não empregar calões; respeitarem todas as pessoas, para assim serem também respeitadas; não contagiarem outras raparigas com quem possam conviver, contando-lhes a vida que fazem e despertando-as, assim, para o luxo; devem concorrer para o bem e para o aperfeiçoamento, o mais possível; dentro desta casa devem ser todas amigas, boas camaradas, não invejosas umas das outras, não maldizentes; perdoar as faltas umas às outras; as mais inteligentes e mais educadas devem ser as que melhores exemplos devem dar; devem ser tolerantes umas com as outras; cada uma trata da sua vida o melhor que puder e souber, sem prejuízo das outras camaradas; serem retas e justas é testemunho de bons sentimentos; cada uma faça por dar os melhores exemplos possíveis, para assim destacar as suas qualidades morais; terem paciência e carinho para todas as pessoas com quem conviverem; perdoarem sempre as faltas das outras, fruto da ignorância, e a ignorância reclama perdão; também devem ser poupadas, economizando em tudo que possam; devem desenvolver a inteligência, trabalhar o mais possível na cama, aproveitar o tempo enquanto são novas, para não terem uma velhice degradante; alguma que queira ler livros de moral ou católicos, ou mesmo de outras religiões, apesar de não serem os mais aconselháveis, pode inscrever-se no Livro entregue à Governanta, a fim de a Dona da Casa emprestar; alguma que queira aprender a ler e a escrever também deve dirigir-se à Dona da Casa, para que esta veja o que pode fazer; nisto está a regra de bem viver, a sorte, felicidade e abundância, e praticando o bem pode chegar-se a ser grande na vida; todos os sítios e todas as situações são boas para a pessoa se elevar; é preciso uma vontade forte para o bem e para o bom e para o belo, e dissipar os maus hábitos e vícios, e procurar dentro do possível as boas qualidades que estão em vós próprias, é só desenvolvê-las; FICA EXPRESSAMENTE PROIBIDO, dentro desta casa, provocar discussões, fazer barulho, falar dos assuntos particulares de cada uma, responder sem respeito ao pessoal ou a qualquer cliente; TAMBÉM FICA PROIBIDA A LEITURA DE LIVROS IMORAIS, ROMANCES OU NOVELAS OU QUALQUER OUTRA FANTASIA, que possam prejudicar a psicologia e a moral de cada uma; há, todas as semanas, uma hora à quinta-feira, das 16 às 17 horas, e outra à terça, das 21 às 22, pelo altifalante, gravação da Bíblia Católica, e as meninas devem estar com atenção, pelo menos caladas, sem interromper o serviço de cama, mas sem outras conversações; não é obrigatório, mas aconselha-se a ouvir; a Dona desta casa deseja a todas as maiores felicidades e está pronta a ajudar, dentro das suas possibilidades, aquelas que queiram progredir na vida), noite, noite vil, violência sem tempo, silenciosa, solitária, caduca como os deuses, tremenda de lembranças quando o respirar da terra eleva um cheiro amargo e o nevoeiro avança em ondas de voragem, pouco a pouco as tascas vão ficando vazias, fecham de vez às dez ou dez e meia, e com elas o único movimento das ruas e das praças, a procissão já recolheu há muito, os cães se enroscam nos quintais, rosnando ainda a uma sombra, serenando em seguida, com a cabeça assente sobre as patas ou deitados de lado, de encontro à terra quente e húmida que abafa os passos dum bêbado, duma costureira de peito frio e chato, que, dando o braço à mãe ou à vizinha, regressa de rins moídos para casa, falando em vozes baixas, não porque tenham segredos ou cuidados, mas para fingir que os têm e esquecer o susto secular da noite que as arrasa, na sua sugestão de pecado para que não terão jamais coragem nem oportunidade; a noite ocupa tudo e a noite é tudo; a casa túmulo da vida, a noite túmulo da casa; a vila em breve dorme e poucas luzes permanecem acesas; só o castelo a guarda, com as suas três torres, da Má-Hora (quem lá vai não torna), do Anjo e de Menagem; descendo do castelo há ruas vesgas por onde a esta hora gatos malteses passam, ruas desmoronadas, tortas, ruas sem nome, sem data, próprias para a prostituição que é a vida da vila, a noite desta vila e desta idade.