Não dormem aqueles a quem devo o que sou; meu avô arranjou a fortuna que tenho e que não aumentei, pelo contrário; devia pôr de parte tudo que não dá lucro, foi o que ele me disse pouco antes de morrer, e não tive tempo nem força para isso; velho, tinhas razão; eu te procuro nos indecisos edifícios de névoa da memória e de ti o que encontro é só silêncio, um silêncio que nem respira e que de quando em vez por entre o árduo fôlego consente umas palavras antigas e serenas, de quem usou a vida a saber a verdade, talvez tão-só a sombra da verdade, mas uma sombra verdadeira, não ilusória como a de quase todos nós, teus descendentes; escuto tua voz vaga entrecortada de asma e a tua saudade dum mundo que morreu acende mal e brevemente, vem-me a tua ilusão de procurar um firme estádio neste mundo quando tudo mudou e vai ficar para quem? quando aqueles sete mil hectares de terra campa e virgem, de estevas e sargaço e rosmaninho do tamanho de homem ou maior ainda, com séculos de crescimento, com pernadas da grossura de pernas, de um velho e cretino marquês ou conde, foram leiloados e uma família inteira se juntara para os comprar oferecendo de cada vez dez patacos (isto antes de mil e novecentos) e a oferta ia já heroicamente em vinte e cinco contos, tu vieste com a tua prosápia e o teu dinheiro e ofereceste simplesmente, sem levantar o braço, numa voz grave, fácil e definitiva lá do fundo da sala, para onde todos se voltaram, gratos, estarrecidos, vinte e oito contos e todos se cerraram num murmúrio e as terras foram tuas por quatro escudos o hectare e depois os ganhões fizeram a escalva, os seareiros vieram arrendar terra limpa, os imensos montados e azinhas e olivais surgiram, tu viste palpável toda a tua ambição, por isso foste forte até bem velho e de repente, a subir uma escada nesse teu passo firme, tiveste uma tontura e um desmaio e, por um raivoso desconsolo no olhar, quando palavras te faltavam, vi que ias morrer, que morrias depressa, arrogante, sem dar parte de fraco, e tuas vaidades e apetites do mundo, cavalos e amantes, tudo passou, velho, já não volta e não valeu a pena, agora a fortuna vai desmoronar-se e de ti, velho, vai ficar a memória de teres arranjado uma grande fortuna para nada, por isso agora que deixaste esta pocilga te recordo e o teu destino e morte me comovem, a mim, teu neto predileto.
– Francisco, estás acordado?
– estou, mais ou menos, mais que menos
– tenho de ir à cozinha ver como as coisas correm e acordar os pequenos.