Como se não bastassem as prostitutas e os chulos e os travestis e os drogados da seringa e o escândalo dos homens casados trazendo as mulheres de automóvel para as verem fornicar com outros, como se não bastassem as lésbicas e os gatunos e os velhotes de gabardine que de repente nos chamam, se desabotoam e estão nus por baixo só de peúgas e sapatos, como se não bastassem os bêbedos e os mendigos e os rapazinhos do Parque dispostos a fazer qualquer porcaria aos viciados por meia dúzia de tostões, como se não bastasse passar o tempo a enxotá-los com a vassoura, a telefonar à polícia e a morar com a minha esposa num cubículo que é uma miséria comparado com o luxo do prédio, um esconso para as traseiras onde os gatos miam toda a noite a cumprir a natureza, e eu, sem conseguir dormir, a colocar uma colher de sopa de veneno num tacho de almôndegas e a convocar os animais em arrulhos ternos
— Chchch chchch
na esperança de apanhar os cadáveres com uma pá, os despejar, vingado, no caixote do lixo, e a minha esposa a limpar a sua lágrima à manga
— Coitadinhos
a minha esposa a quem um dia destes prego um estalo como deve ser, dos que arrancam logo um ou dois dentes da boca, para aumentar a harmonia da família e lhe dar uma razão de chorar que de soluços por tudo e por nada quanto mais por gatos ando eu até aqui, ela que fungue à vontade para cima das plantas da entrada que me poupa trabalho e regador, já não bastava o brigadeiro com a mania das escadas sujas e eu faço ideia como será o quartel dele com a magalada da província habituada a viver paredes meias com as cabras, já não bastava o bispo com a mania que o elevador deita um cheiro esquisito, a quem se calhar apetecia viajar do rés-do-chão ao sexto de mãos postas, em baforadas de incenso, com o São Pedro à espera para o abraçar no capacho, já não bastavam as injecções no posto para os bicos de papagaio e o problema da coluna que até se ri das ampolas e vai o senhor ministro e zás, pespega-me no prédio com um par de aventesmas, mãe e filha, recrutadas numa dessas caves da cidade em que a máquina de costura serve também, nos intervalos de pregar botões, de ginásio para a bisca de sete e de mesa de jantar, a aventesma mais velha a cair da tripeça, com tornozelos que eram parafusos de varizes bons para enroscar chinelos, mascarada de aventesma mais nova toda penduricalhos e berloques, e a aventesma mais nova mascarada de soprano de opereta, a bater castanholas com as nádegas no palco da Rua Castilho para indignação dos travestis cuja clientela esmorecia, atraída pelo salero da pequena, um par de aventesmas que eu me queixei ao administrador que estragavam a reputação do edifício e o administrador a espreitar para os lados a mandar-me falar baixo
— Apetece-te malhar com os ossinhos na cadeia Leandro?
o administrador a puxar-me o braço e a explicar que mal o senhor ministro sonhasse que eu não apreciava as aventesmas me metia em três tempos no forte de Peniche, a dormir em palhas urinadas nas pausas das sessões de tortura, o administrador a explicar-me, pendurado da minha orelha, que mal o senhor ministro sonhasse que eu não apreciava as aventesmas o metia em Peniche a ele também por oferecer o lugar de porteiro a um espião comunista
— Se não as tratas nas palminhas malhamos ambos com os ossos na cadeia
as prostitutas em passinhos vagarosos na orla do Parque, umas miúdas por sinal airosas, por sinal de truz, que se eu tivesse vinte anos, fosse solteiro e a diabetes consentisse lhes chamava um figo, eu de chave de parafusos a fingir que consertava a fechadura de dioptrias na retaguarda das beldades, e a minha esposa que nasceu com nariz de perdigueiro e mal pára de fungar me faz a vida num oito
— Para onde estás a olhar Leandro?
miúdas de truz como a moça que no inverno passado se escondeu nas plantas da entrada com medo da ramona, três furgonetas que arrancavam as garotas dos canteiros como quem colhe lírios e a moça designando-me as colegas que esbracejavam rodopiando as malinhas
— Assim que eles zarparem eu saio não lhes diga nada
a minha esposa de cama com gripe a engolir quilos de mel e de aspirinas efervescentes, deitada no colchão com um pijama meu, e a moça da ramona ali à mão de semear
— Não lhes diga nada
tinha vindo ao vestíbulo para mudar uma lâmpada fundida e sai-me logo a sorte grande de uma catraia saudável e sem rugas a prender-me o bracinho
— Não lhes diga nada
eu, que se adivinhasse, tinha corrido uma gilete pelo queixo, a encostar-me a ela sem acreditar que era verdade, a sentir-lhe o cheirinho de relva e árvores, a caminha rija, a ausência de gordura, a polícia amontoando as sócias na ramona e eu a descair o ombro para o ombro dela e a moça sem protestar, sem reparar em mim, ocupada a espiar a ramona no medo que algum dos guardas viesse de cassetete ao alto para a levar, e nisto a minha esposa da sua pilha de mantas
— A tisana de limão Leandro
como se me matasse sem piedade à facada
— A tisana de limão Leandro
comigo vencido a marchar na direcção do cubículo num desânimo de funeral, a topar com a cara torcida como um pano para um balde, só pregas, só vermelhidões, só inchaços
— A tisana de limão Leandro
eu a acender o gás que dava sempre um estouro e qualquer dia me rebenta isto tudo, a aquecer a água, a deitar-lhe a casca, a açucarar o púcaro, a pousar-lho à pressa na mesinha de cabeceira
— Já venho
a correr para o vestíbulo, a ramona a caminho do Governo Civil e nenhuma moça a observar a noite nas plantas da borracha dos degraus, apenas uma ponta de cigarro mal pisada no chão subindo ao meu encontro numa espiralzita de fumo que parecia troçar-me, eu a fitar a espiralzita ou o sítio onde estivera a espiralzita e o administrador do prédio a terminar o seu discurso sobre as aventesmas
— Julgas que me aguentava um mês a pão e água?
a aventesma mais velha cuja família visitava a Rua Castilho aos domingos, em procissão como os matarruanos que desembarcam de autocarros para se extasiarem, iguaizinhos aos selvagens de tanga do sertão, com o sistema eléctrico da porta, os elevadores, os azulejos, as caixas do correio com nomes de advogados, deputados, generais, a família acompanhada por catraios de gravata e fato completo a quem só faltava o chapéu para terem ido à tropa, carregando no botão da luz a fim de assistirem ao acender dos abajures de cristal facetado, carregando no alarme de incêndio a fim de assistirem ao quarteirão a desmoronar-se em uivos de pavor, aos bombeiros à machadada à frontaria e aos inquilinos que desembestavam nos patamares arrastando fardos de faqueiros de prata e porcelanas, a família que não me espantava se trouxesse dicionários e mapas como os americanos para se orientarem no labirinto dos corredores, e o administrador, de vassoura em punho, ajudando-me a apagar os estragos dos bombeiros e a vazar entulho, a certificar-se de que não nos ouviam
— Nem uma queixa ao senhor ministro Leandro lembra-te do fortezinho de Peniche
pedaços de tijolo, cacos, o mármore quebrado, charcos de neve carbónica fervendo por aqui e por ali e nisto a aventesma mais nova, trajada como para a coroação de um Papa, a extrair-se do Bentley com o furriel atrás, dobrado de sacos de lojas de roupa fina de senhora, o administrador numa adoração de pajem, pronto a beijar-lhe os pés em sorrisos sabujos
— Boa tarde menina
a seguir ao furriel os agentes da secreta e os travestis a confundirem-se com os plátanos em arrepios de pânico, os drogados da seringa galopando pelo Parque numa manada de esqueletos aterrorizados, o administrador para mim, desejoso de agradar à aventesma
— Ajuda a menina com as compras Leandro
eu que se não fosse a dificuldade em arranjar trabalho mandava o prédio às malvas, a insultá-la para dentro, levando-lhe a tralha às costas como um preto de safari, e a aventesma mais velha, com um broche do tamanho de um alvo de tiro ao arco no peito, a guiar-me para um quarto com uma pele de tigre no chão, no tom de quem orienta um escravo
— Ponha isto na segunda gaveta Leandro
a aventesma mais velha a correr placas de mogno trabalhadas
— Ponha aquilo na prateleira da direita Leandro
e cá o spartacus a ver desfilar um após outro cabides e cabides de vestidos, calças, blusas, corpetes, xailes, casacos, cabedais, coisas estampadas, lantejoulas, linhos, cá o spartacus a pensar no nosso cubículo do rés-do-chão com um único armário de metal amolgado e sem tigre nenhum, a aventesma mais velha a fechar-me na mão uma moedinha escura como se eu fosse um inválido de guerra passeando nas esplanadas com lenços de papel, cautelas, tira-nódoas
— Tome lá Leandro
eu que começava a gostar dos comunistas porque assim que se apanhassem no poleiro enforcavam os ricos, porque ao menos queriam toda a gente no meio da neve, triste e órfã e a viver ao monte com um gorro de pele na cabeça, eu a agradecer a humilhação da moeda que devia escancarar-lhe o queixo com uma tenaz e despejar-lha pela boca abaixo
— Obrigadinho madame
a entrar em casa como uma fera e a jogar o centavo na retrete com tanta força que se nota a marca, a minha esposa
— Andas à pedrada à sanita Leandro?
a minha esposa que não era má ideia tê-la à rédea curta e não tenho a estudar os estragos
— Já agora não queres aproveitar a embalagem e dar cabo dos cálices do aparador Leandro?
eu que se não fosse a idade, se não fosse a diabetes, dava era cabo dela com a navalha de escamar o peixe, uma criatura que às quintas-feiras traz a irmã cega a jantar, parecida com ela mas de óculos de mica e quando eu, finalmente livre dos condóminos, dos cobradores, do correio, cruzo a perna e abro o meu jornalzinho desportivo para me inteirar do estado da Nação, lá vem a cega, instalada diante do televisor, sacudir-me a manga de nariz ao alto
— Estão a mostrar um filme não estão Leandro?
a cega que é um monstro de apetites culturais a procurar-me com a bengala, com o pé
— Conta-me o filme Leandro
e como se não bastasse este rol de desgraças para me desequilibrar a diabetes obrigando-me a passar dos comprimidos às cápsulas e das cápsulas a uma cataratazita que me desfoca o mundo e a um rim entupido que me impede a ginjinha, as aventesmas trouxeram com elas os agentes da secreta afugentando as moças para o extremo oposto do Parque, abandonando-me a uma viuvez melancólica, como se não bastasse este rol de desgraças, eu, sem ter tomado banho ainda, a limpar os acajus da entrada com óleo de cedro e vai na volta um silêncio de morte, uma pausa nas árvores, na rua, na cidade
automóveis pessoas vozes arrastar de contentores buzinas
e o professor Salazar a entrar-me no prédio em passinhos delicados de freira, ondulando os dedos transparentes para os vasos a cuidar que as flores o aplaudiam, e quem diz o professor Salazar diz o senhor almirante a cortar fitas de inauguração invisíveis com uma tesoura enorme seguido pelo seu cortejo de Diogos Cães engalanados, e quem diz o senhor almirante diz o cardeal lânguido, empalidecido pelos jejuns e mortificações da virtude, oferecendo o anel a beijar aos apliques e às caixas do correio, e quem diz o cardeal diz o major da Pide, pardo, oblíquo e sozinho como um empregado bancário viúvo, todos reunidos no andar das aventesmas a decidirem de milagres com pastorinhos e de campos de concentração, o administrador a chamar-me de parte, a apontar o tecto num cochichozinho de pânico
— Já se foram embora Leandro?
a ampola do elevador vermelha, a seta que designava o rés-do-chão a piscar, a larva de um vulto no casulo de vidro, o administrador a abotoar-se, eu a abotoar-me à secretária, zangado com a minha esposa que não me deu uma passagem na camisa, o administrador a afinar a garganta para desatar aos vivas e não era o professor Salazar nem o senhor almirante nem o cardeal nem o major nem o senhor ministro era o estafermo da aventesma mais velha com aquela jóia do tamanho de um alvo de tiro ao arco pregada ao avental a inchar para mim num desembaraço de condessa
— Não tem por acaso um saquinho de chá verde Leandro?
todo o ano de pantufas forradas e blusa preta com lantejoulas e desenhos que era a inveja da minha esposa que adora bodegas
— Não tem por acaso um saquinho de chá verde Leandro?
armada em dona do mundo só porque a filha era amante do senhor ministro, só porque a filha estava por conta do amigo do professor Salazar, um alarve calado que nem me respondia às boas tardes, que de cada vez que entrava me deitava cinza nas plantas e me apagava as cigarrilhas na terra dos vasos
pode escrever alarve à vontade, não se arreceie, pode escrever alarve que não tenho medo
e o administrador para mim, a tratar a aventesma mais velha como uma senhora
— Não tens por acaso um saquinho de chá verde que emprestes à madame Leandro?
o administrador que perdeu as delicadezas e as madames quando o ministro deixou de pagar o aluguer, duas furgonetas da polícia levaram do andar mesas, tremós, sofas, aguarelas, desde que lhe cortaram a luz, o gás, a água, desde que os empregados das sapatarias e das lojas de roupa e do ourives e do cabeleireiro e do talho principiaram a surgir com contas, facturas, ameaças do tribunal, penhoras, quando elas já nem se atreviam a sair de casa ou a responder à campainha, não se atreviam a uma conversa, um raspar de passos, um tilintar de louça, um protesto de gaveta, não se atreviam a um ruído sequer e o administrador a entrar-me no cubículo em que a cega me pedia que lhe explicasse o filme
— É preciso despejar as aventesmas Leandro
a cega inquieta, a filar-me a calça e a girar o nariz no sentido da voz
— É um filme português Leandro?
a porta trancada no andar das aventesmas e o administrador procurando chaves no bolso
— Menina Milá dona Dores
e então comecei a sentir o perfume dos nardos da mesma forma que se sente a proximidade do mar antes do mar, comecei a sentir o perfume dos nardos e o administrador tentando chave após chave Porra porra
— Menina Milá dona Dores
se eu chegasse à janela via a estátua do Marquês a flutuar numa vazante de candeeiros, o Marquês de costas para mim como o administrador que repetia Porra porra separando chaves, examinando-as, introduzindo-as em vão na fechadura, o administrador Porra porra a enxugar o pescoço com o lenço
— Menina Milá dona Dores
e eu a pensar Se calhar as aventesmas não respondem porque faleceram, rodaram a torneira do gás ou tomaram pastilhas e estão mortas, eu a sentir o perfume melancólico dos nardos imaginando corpos estendidos de bruços, articulações ao contrário, a intimidade inesperada da nudez, as pernas mais coisas que os sapatos, imaginando frascos vazios e um charco fermentando no soalho, eu a pensar Não quero olhá-las, o administrador com um novo molho de chaves Porra porra, a estátua do Marquês a soltar-se da peanha e a descer a avenida na direcção do rio, a estátua do Marquês a oscilar
porra porra
para a foz e os monumentos anémicos e a coluna sobre as casas que mandou salgar e nisto o perfume dos nardos aumentou, o trinco recolheu-se e estávamos no vestíbulo da casa só pregos na parede e o reboco estalado e o lugar das molduras sem molduras, o lugar do bengaleiro sem bengaleiro, o lugar de uma mesa sem mesa, pedaços de papel no sobrado, uma poeira de abandono, uma desarrumação suja, o que devia ter sido uma camisola e agora era um rasgão de pano erguendo-se de uma trave de cadeira na corrente de ar, o administrador Porra porra atravessando salas desertas sobre salas desertas, vidraças sem cortinas, o que sobrava de um pote de faiança num nicho de prateleiras em pedaços, um xaile de franjas a um canto, a cabeça do tapete de tigre, sem os cristais dos olhos, de perfil para mim como a cunhada cega
— Estão a mostrar um filme não estão Leandro?
o filme de uma casa sem ninguém iluminada pelo perfume das flores e pelas sombras de julho, iluminada pelo anúncio da companhia de seguros a pulsar alternadamente a temperatura e a hora e a escorregar para o soalho, embalagens de água de colónia e caixinhas de tartaruga e verniz de unhas e pentes e escovas e bisnagas de cremes amontoando-se em desordem, e agora a cozinha sem fogão nem esquentador nem caçarolas nem terrinas, uma bancada sem um único objecto, uma despensa de latas e cartuchos ocos, o administrador de mão adiante da boca Porra porra
— Menina Milá
a espiolhar arcas, a espiolhar desvãos
— Dona Dores
o perfume dos nardos a alargar-se, a crescer, a explodir quando entrámos no quarto em que se encontrava uma cama sem colchão, sem lençóis, sem almofadas, sem fronhas, unicamente a cabeceira, o enxergão, as tábuas, do mesmo modo que o quarto se resumia à mesinha de cabeceira com um caule espetado numa jarra de esmalte e o retrato de uma rapariga de cabelo louro como se usava dantes, era eu novo, era eu solteiro, como se usava no teatro, como se usava nos casinos, de saia antiga às pintinhas, a fitar-me numa espécie de pudor, numa espécie de troça, a fitar-me do caixilho numa espécie submissa de ternura.