Aos sábados à tarde depois de todos se irem embora
(os meus tios, a minha madrinha, os meus primos, os colegas do meu pai, os amigos do Colégio Militar ainda vivos mais as criaturas humildes, agradecidas de estarem ali, com um copo de vinho no qual não ousavam tocar da mesma forma que não se atreviam a sentar-se nem a tomar parte nas conversas, antigos impedidos que tratavam o meu pai por senhor tenente-coronel e o meu pai a eles pelo nome próprio e por tu)
aos sábados à tarde depois de todos se irem embora deixando os sofás fora do sítio, jornais no sobrado, os cinzeiros cheios e uma sensação esquisita de faltarem objectos, coisas, uma sensação de vazio, de tristeza
depois de todos se irem embora e ficarmos sozinhos, o meu pai e eu, na varanda para a serra de Sintra e além da serra o mar das Azenhas e o mar da Adraga, dois mares zangados com pássaros saltando nas bochechas como lágrimas de raiva, mais adivinhados do que vistos no arrepio dos pinheiros
o meu pai com um copo de uísque na mão e uma garrafa na outra, sem parar de beber, olhando o muro do quintal sem reparar no muro, as árvores sem reparar nas árvores, olhando-me com as palpebrazinhas vermelhas sem reparar em mim, o meu pai para si próprio, a deixar-se cair no banquinho de lona de aguardente a escorrer-lhe dos ângulos da boca e do queixo e dos botões da camisa, no abandono inerte com que se fala nos sonhos
— Não existe no mundo nada mais lento do que os rebanhos e as nuvens
os rebanhos que passavam atrás da casa pela estrada da Ericeira ou de Mafra e as nuvens que passavam em manada sobre a crista da serra enredando-se nos abetos, ajudava o meu pai a tropeçar para a cama sem largar a garrafa de uísque e sem largar o copo, apertando o gargalo no peito
— Não existe no mundo nada mais lento do que os rebanhos e as nuvens
a voltar-se devagar contra as flores desbotadas do papel da parede, de ombros sacudidos num choro de criança, com o vidro da garrafa a bater-lhe nos dentes, e eu, preocupada
— Pai
a debruçar-me de gatas na colcha e só então compreendi que se ria, que abraçado ao copo e à garrafa se ria e se ria como na manhã em que chegou a Sintra fardado, sem uma palavra, sem um beijo, pousou o boné e o pingalim na poltrona, foi direitinho ao álcool do aparador, a cartilagem da garganta subia e descia como se um rato preso se lhe desesperasse sob a pele e eu espantada
— O que foi pai?
o meu pai na varanda olhando o muro sem reparar no muro, as árvores sem reparar nas árvores, olhando-me com as palpebrazinhas vermelhas sem reparar em mim, a medir o céu deserto e o mar zangado da Adraga
— Não existe no mundo nada mais lento do que os rebanhos e as nuvens
e a partir desse dia não se tornou a fardar nem voltou ao quartel, uma semana depois um par de sujeitos que eu não conhecia entrou-nos portão dentro sem ligar à campainha, dirigiram-se ao meu pai a tratá-lo por você e a recomendar
— Juizinho
fecharam-se com ele na sala num zumbido de ameaças, levaram-lhe a espada, um monte de papéis, os estojos das condecorações, o que parecia ser chefe do outro desceu o vidro do automóvel para nos espetar o indicador
— Juizinho
derrubaram um vaso do quintal com o guarda-lama, pisaram com os pneus os enfeites de tijolo do canteiro e desapareceram num vendaval de graveto com o indicador a sair da fumarada, espetado para nós numa advertência de pêndulo
— Juizinho
tinham-nos aberto as gavetas, desarrumado objectos, rasgado fotografias, devassado cartas, o meu pai no banquito de lona da varanda, com o copo numa das mãos e a garrafa na outra a rir-se, não lograva cessar de rir com os ombros sacudidos de soluços, o meu pai para mim, divertidíssimo
— Os malandros acabaram-me com o Exército Isabel sou paisano
as cartas da minha mãe rasgadas no tapete, a fitinha cor-de-rosa rasgada, as cartas dos meus avós rasgadas, as cartas do irmão do meu pai, que era piloto da Marinha e o avião tombou na barra do Tejo rasgadas, o irmão de que o meu pai nunca falava de tal forma que dava ideia de nem ter tido irmão e no entanto usava o anel dele junto à aliança, apanhava-o às vezes a roçar o mindinho no anel como se o afagasse, o meu pai para mim, divertidíssimo
— Os malandros acabaram-me com o Exército Isabel sou paisano
eu contente de ver o meu pai contente, a rir-me de ver o meu pai rir-se, a garrafa a tilintar no rebordo do copo sem acertar no copo, eu aflita
— Pai
o meu pai a juntar os pedaços das cartas, a procurar uni-los, a desistir, a rasgá-los mais ainda enquanto continuava a rir sacudindo os ombros, feliz, levantando a cabeça para mim no meio das gargalhadas
— Malandros malandros
o meu pai anos e anos na varanda olhando o muro do quintal sem reparar no muro, olhando as árvores sem reparar nas árvores, olhando-me sem reparar em mim, o meu pai que após o escurecer só se percebia uma cintilaçãozinha de vidro a tilintar nas trevas
— Não existe no mundo nada mais lento do que os rebanhos e as nuvens
que os sujeitos à paisana, o que era chefe do outro e o outro que não era chefe de nada visitavam de quando em quando entrando-nos portão dentro a derrubarem vasos com o guarda-lama e a pisarem com os pneus os enfeites de tijolo dos canteiros, arrastando-me até à cozinha por um braço
— Espera lá fora menina espera lá fora
a ralharem-lhe não sei porquê, a advertirem-no não sei de quê, a meterem-no no automóvel e a devolverem-no a Sintra uma tarde ou duas depois, de barba por fazer, pulso ligado, uma nódoa na testa, e lá vinha o dedo espetando-se da janela num rodopio de graveto
— Juizinho
o meu pai, de calças descosidas, a encostar o nariz que me parecia diferente a uma toalha molhada, a procurar consolo nas garrafas do aparador, a limpar a nódoa na testa com o álcool de refrescar a barba e um pedaço de algodão, o vento nas piteiras do fundo onde eu brincava em criança, a seguir às piteiras a azinhaga da fonte com a bica a dançar sob os fetos, um polícia na azinhaga saudando-me se me percebia à janela, a mandar-me beijinhos, a assobiar-me às pernas, eu a queixar-me ao meu pai
— Pai
e o polícia a sorrir-me diante dele, a segredar elogios, a perguntar se lhe fazia desconto por uma hora comigo e o meu pai sem responder, com a garrafa de uísque numa mão e o copo na outra, vestido de um uniforme sem galões como os vendedores de lotaria, o vento nas piteiras, qualquer coisa parecida com o sol nas copas, eu furiosa com o polícia
— Pai
o meu pai de ombros sacudidos de riso, lutando com as traições da gravidade para se manter direito, o polícia a atirar-lhe com a ponta do cigarro, a desinteressar-se dele e a regressar à azinhaga
— Desgraçado
de maneira que na tarde em que o automóvel dos sujeitos à paisana regressou e nos entrou portão dentro a derrubar vasos e a pisar os enfeites de tijolo dos canteiros, desta vez não com o chefe do outro e o outro que não era chefe de nada mas com o chefe do outro e o chefe do chefe do outro, o chefe do chefe do outro mais novo do que o chefe do outro, de chapéu, cigarrilha nos dentes e suspensórios de elástico às pintinhas, o chefe do outro ao volante primeiro e a trotar depois para lhe abrir a porta, conduzindo-o ao alpendre, a perturbar os narcisos, como se o meu pai e eu não passássemos de pedreiros ou canalizadores ou assim
— Por aqui senhor director-geral
o director-geral a estalar os suspensórios à minha frente sem o ouvir, tossindo do fumo do tabaco, esquecido do chefe do outro, esquecido do meu pai, esquecido de se fechar na sala em advertências e ralhos, eu fascinada com as pintinhas dos suspensórios aumentando e diminuindo consoante o elástico esticava ou retraía, o polícia da azinhaga oculto num tronco, desejando nunca me ter acenado, nunca me ter assobiado às pernas
um melro de pinheiro em pinheiro, a bomba de água a lamentar reumáticos, o mundo opaco de fumo da cigarrilha onde os suspensórios explodiam, o chefe do outro para o director-geral a segurar-me o braço tentando esconder-me, da mesma forma que tentamos que as visitas se não dêem conta dos objectos que nos envergonham, uma franja enfiada ou um buraco na toalha
— É a filha
o director-geral para o chefe do outro que me puxava como se puxa uma bezerra
— Um momento Camilo
connosco na varanda para a serra, cheio de cuidados com o meu pai, a endireitar-nos os vasos, a consertar-nos os enfeites de barro, a pedir perdão pelos incómodos dos agentes, pelos narcisos esmagados, o chefe do outro escrevendo participações desesperadas para os superiores e agitando-se de indignação no automóvel enquanto o director-geral, educadíssimo, examinava o retrato da minha mãe na cómoda
— A sua esposa senhor tenente-coronel
como se o meu pai continuasse a ser tropa, como se não vestisse um uniforme de vendedor de lotaria, o meu pai a apagar o retrato da minha mãe com um gesto, a apagar o passado com um gesto, a rir-se sacudindo os ombros, e o director-geral a visitar-me com nardos, caixas de chocolates, perfumes
— Trate-me por Francisco Isabel
a levar-me a Palmela mostrando-me um horizonte de lodo balizado por um horizonte de rãs
— A nossa quinta Isabel
de maneira que um ano depois acordava com as cambalhotas dos anjos de pedra de encontro aos limoeiros acordava a meio da noite com uma cigarrilha a queimar-me a bochecha
— Gostas de mim não gostas Isabel?
de maneira que um ano depois esbarrava em gralhas, corvos e a empregada de luto que mandava nas criadas, na cozinheira, no tractorista, no meu filho, eu a escutar as faias e os insectos de agosto roendo as fundações da casa, cansada de lobos da alsácia e solidão e moinhos, a pintar o cabelo e as unhas das mãos para me transformar numa mulher diferente com uma vida diferente, desejando não acordar a meio da noite com uma cigarrilha preocupada a queimar-me a bochecha
— Gostas de mim não gostas Isabel?
eu que nunca tinha pensado no que fosse gostar, gostar do meu pai, do meu marido, do meu filho, como se fosse importante gostar, como se fosse necessário, como se a vida se tornasse menos triste ou menos difícil pelo facto de se gostar, eu com vontade de perguntar à cigarrilha que crescia na minha direcção nos sobressaltos do quarto
— A que chamas gostar Francisco?
para poder responder-lhe, o acordar a meio da noite também num desassossego aflito, o meu pai, a contar os rebanhos e as nuvens, nunca me perguntou na varanda de Sintra enquanto escorregava do banco a tilintar o vidro da garrafa contra o vidro do copo
— Gostas de mim não gostas Isabel?
do mesmo modo que o meu filho não me perguntava, sentado no tapete da sala a investigar o interior dos brinquedos
— Gostas de mim não gostas Isabel?
eu a hesitar em dizer
— Gosto
como hesitava em dizer
— Não gosto
porque gosto e não gosto não passavam dos dois lados de nada, o nada dos insectos roendo as fundações da casa até as paredes tombarem ou se tornarem numa sombra vertical sobre uma sombra deitada com as nossas duas sombras a cirandarem lá dentro, a minha mãe morreu sem que nós lhe afiançássemos que gostávamos dela ou ela nos garantisse que gostava de nós, ao voltarmos para Sintra, a seguir ao enterro, os bibelots não se tinham alterado, nem a disposição dos móveis, nem a tonalidade da luz, a ausência dela consistia em não existir mudança alguma, chover como chovia na véspera e continuaria chovendo ao longo da semana, a chuva dela morta igual à chuva dela viva, a mesma indiferença nas vozes da piteira, a mesma indiferença distraída sem gostar e sem não gostar de sempre ou para lá de gostar e não gostar porque gostar e não gostar é antes das pessoas, não é entre as pessoas nem depois das pessoas, é uma coisa de fora, um invólucro, os fragmentos de uma película seca, e então na tarde em que o Pedro que falava como o meu pai e o meu filho não falavam por não haver precisão de falar quis saber
— Gosta de mim não gosta Isabel?
resolvi dizer-lhe
— Gosto
resolvi aceitar que a mão dele pegasse na minha, fingir não dar conta que me metia um papelinho na carteira apesar de o achar cómico, falso, teatral, não apenas os gestos mas a expressão, a maneira de olhar, o tom de voz, o exagero, resolvi conversar ao telefone, ler-lhe as cartas que era como ouvi-lo ao telefone só que a tinta substituía a voz e as mentiras se tornavam patéticas, encontrei-me com ele no largo sob os olmos, o cotovelo encostado ao meu, a palma que apertava a minha perna, a respiração no meu pescoço
— Isabel
e eu não sentia nada, queria sentir alguma coisa e não sentia nada salvo a certeza de estar numa plateia a suportar por educação um texto maçador, do largo fomos a um hotel em Sesimbra com a palma a torcer-me o vestido acompanhada de caretas que me faziam rir, o hotel de Sesimbra sobre uma praia de contramestres a aranharem redes, cinco ou seis barcos, um cenário de quadro barato que se vende nas lojas de louças e a gente não compra por ser horrível, o Pedro a preencher a ficha e a piscar o olho aos sorrisos respeitosos do empregado que o tratava por
— Faça favor senhor administrador
enquanto eu me distraía com as ondas a pensar
— Afinal achar que gostam é isto afinal achar que gostam é só isso e realmente gostar para o Pedro era pouco mais do que isto, ou seja vitrines com bonecos de pano, varinas, pescadores da Nazaré, minhotas, armações de livros, mapas, postais ilustrados, estrangeiros de calções num bar, um pianista de rabo de cavalo, um elevador até ao sexto andar, um quarto com uma varanda sobre a praia que a mim
sei lá porquê
me parecia feíssima, a praia dos contramestres e dos cinco barcos, a mesma praia de há pouco, no quarto do hotel vim a saber que para o Pedro gostar era uma cama com uma gravura à cabeceira, sem dúvida do mesmo artista que inventara a praia, eu na cama e o Pedro na cama comigo a falar-me de coisas que eu nem sequer ouvia, a falar-me, suponho, de gostar, quando afinal para ele gostar era apenas aquilo, um colchão e as escamas da água no tecto o tempo inteiro até o Pedro se afastar de mim, verificar as horas e se preocupar
— É tardíssimo
afinal o gostar dele não era diferente do gostar do Francisco só que mais rápido e mais egoísta e menos terno ainda, gostar para o Pedro era vestirmo-nos à pressa, apanhar a roupa, o Pedro enervado a pentear-se ao espelho como se não me conhecesse ou me conhecesse demais
— Vamos embora vamos embora é tardíssimo
afinal o gostar dele era o beijo de uma bochecha a roçar noutra bochecha no largo de Palmela
— Sai do carro e apanha um táxi para casa que é tardíssimo eu telefono-te sai do carro que eu prometo que telefono
eu que não lhe pedira nada, que não queria nada, a quem não apetecia nada salvo estar sozinha sem homens a perseguirem-me com os seus interrogatórios sem sentido
— Gostas de mim não gostas Isabel?
sozinha na varanda de Sintra a assistir ao crepúsculo na piteira, ao crepúsculo na mata, completamente sozinha sem o peso insuportável de acharem que gostavam de mim, me acordarem a meio da noite sobressaltando-me de perguntas
— Isabel
sozinha sem anjos na quinta e sem gravuras de hotel, sozinha para sempre na varanda com a ausência de rebanhos e a ausência das nuvens, foi para ficar sozinha, longe deles, da sua angústia e da sua pressa, da sua ansiedade de antes e do seu desprezo de depois
— Sai do carro apanha um táxi para casa que é tardíssimo pela tua saúde sai do carro
foi para ficar sozinha que aceitei o apartamento em Lisboa, uma sala e uma marquise onde não me inquietavam, não me aborreciam, não me visitavam nem me tocavam nem me faziam perguntas, onde me deixavam em paz, felizmente me deixavam em paz tirando uma ou duas visitas do Pedro e uma ou duas visitas do Francisco com lágrimas de achar que gostavam e de achar que não gostavam misturadas, em paz diante da janela à espera que os prédios fronteiros dessem lugar aos rebanhos e às nuvens de Sintra, à espera que os prédios fronteiros dessem lugar ao mar.