VINTE E TRÊS

Foi Dee Vorhees que disse que queria trazer as crianças.

Mas não era a única. Todas as mulheres participavam do plano, como Vorhees logo descobriria. A prima de Dee, Sally, Mace Francis, Shar Withers, Cece Cauley, Ali Dodd e até Matty Wright – a permanentemente nervosa, a alvoroçada Matty Wright – disseram a mesma coisa aos maridos. Era uma verdadeira emboscada, as mulheres flanqueando seus homens pela esquerda e pela direita com uma insistência de esposa, que não podia ser recusada: Algumas horas ao sol, diziam todas, deitadas na cama, lavando pratos ou preparando as crianças para a escola. O que há de mal? Vamos levar as crianças desta vez.

E não era como se eles jamais tivessem levado as meninas além dos muros, lembrou Dee ao marido, os dois compartilhando um momento de calma na cozinha depois de colocarem as garotas para dormir. Houve aquela ocasião, disse – quanto tempo fazia? –, em que tinham ido a Green Field para o aniversário de Nitia. A pequena Siri mal havia começado a andar, Nitia ainda arrastava aquele cobertor imundo aonde quer que fosse. Aquelas horas pacíficas sob o vertedouro, e as borboletas – ele lembrava? O modo como pareciam flutuar ao longo de um rio aéreo, as asas coloridas baixando e fazendo força para subir de novo, e aquela que, surpreendendo todos, havia pousado no nariz de Nitia. Dee disse: Você não pôde sentir a presença de Deus numa coisa daquelas? Aquele sentimento doce, livre, as menininhas rindo e rindo, faltando horas para a sirene de aviso tocar, em algum tempo distante no futuro, e o céu azul suspenso como o próprio paraíso sobre a cabeça deles, e os quatro juntos além dos muros. Tinha sido na Zona Verde, era verdade, ela não dizia que não era, mas dali dava para ver o perímetro, as torres de vigia, as sentinelas e cercas com seu arame enrolado, e quem decidia essas coisas, afinal? Quem decidia onde uma zona acabava e outra começava? Em que uma ida ao Complexo Agrícola Norte era diferente, mais perigosa, na verdade? Cruk estaria lá e Tifty também (o nome havia saltado antes que ela pudesse se impedir, mas o que podia ser feito?). Havia casas-fortes para o caso de alguma coisa acontecer, mas por que aconteceria? No meio de um dia de verão? Fazia meses que as armadilhas estavam vazias, sem nem mesmo algum pateta por perto. Todo mundo estava dizendo isso. Algumas horas ao sol, longe do cinza, da sujeira da cidade. Um piquenique de verão no campo. Era só isso que ela pedia.

Ele faria isso? Só essa coisa? Pelas meninas? Mas por que não dizer diretamente? Ele faria por ela, pela esposa que o amava?

E foi assim que, dois dias depois, numa manhã abafada de julho, com a temperatura já se aproximando dos 30 graus e indo para os 35, Curtis Vorhees, 32 anos, capataz do Complexo Agrícola Norte, levando o velho 38 do pai enfiado na cintura com três balas no tambor (seu pai havia disparado as outras três), viu-se num transporte cheio de famílias inteiras, e não somente famílias: crianças. Nitia, Siri e o primo delas, Carson, tinham acabado de fazer 12 anos, mas mesmo assim eram tão pequenos que seus pés ficavam pendurados 10 centímetros acima do chão; Bab e Dunk Withers, os gêmeos; as meninas Francis, Rena e Jules, sentadas atrás para não terem de prestar atenção aos garotos; a pequena Jenny Apgar, no colo de seu irmão mais velho, Gunnar; Dean e Amelia Wright, os dois com idade suficiente para fingir que estavam entediados e irritados; Merry Dodd, seu irmãozinho Satch e o pequeno Louis Cauley, ainda num cesto; Reese Cuomo, Dash Martinez e Cindy-Sue Bodine. Dezoito no total, uma massa concentrada de calor e ruído infantis tão nítida para os sentidos de Vorhees como um enxame de abelhas zumbindo. Era comum as mulheres se juntarem aos maridos para plantar; e claro, na época da colheita, cada par de mãos encontrava serviço a ser feito; mas aquilo era novo. No momento em que o ônibus saiu pelo portão, com o velho motor a diesel rugindo e tossindo, o chassi cansado balançando embaixo deles, Curtis Vorhees sentiu isso. Um trabalho quente, monótono, havia subitamente se transformado numa ocasião especial: o dia possuía o espírito esperançoso de uma tradição que nascia. Por que não tinham pensado nisso antes, que trazer as crianças transformaria o dia em algo especial?

Passaram pela represa, pelo depósito de combustível e pela linha da cerca com suas sentinelas que acenavam para eles, e desceram para o vale, para a luz dourada de uma manhã de julho. As mulheres, sentadas no fundo com os cestos e os suprimentos, estavam fofocando e rindo; as crianças, depois de uma tentativa infrutífera por parte de uma das mães – claro que seria Ali Dodd – de organizá-las num coro vibrante para entoar o hino do Texas, a única música que todo mundo sabia cantar (Texas, nosso Texas! Salve o estado poderoso! Texas, nosso Texas! Tão maravilhoso e grandioso!), haviam se separado em várias facções em guerra: as meninas mais velhas sussurrando, dando risinhos e ignorando deliberadamente os garotos; os garotos claramente fingindo não se importar; os pequeninos pulando nos bancos e disparando pelo corredor para lançar seus vários ataques; os homens na frente sentados em seu costumeiro silêncio resguardado, comunicando-se apenas através de uma troca ocasional de olhares cautelosos ou de uma única sobrancelha erguida: Em que fomos nos meter? Eram homens do campo, mãos grossas do trabalho, cabelo cortado curto, o preto de sujeira sob as unhas, sem barba. Vorhees tirou do bolso o velho relógio do pai e olhou a hora: 7h05. Faltavam 11 horas para a sirene, 12 para o último transporte, 13 para escurecer. Preste atenção ao relógio. Conheça a localização da casa-forte mais próxima. Em caso de dúvida, corra. Palavras gravadas em sua consciência tão indelevelmente quanto uma cantiga de ninar ou uma das orações da irmã. Vorhees se virou no banco para olhar Dee. Ela estava equilibrando Siri no colo, o nariz da menininha encostado na janela para olhar o mundo que passava. Dee lhe lançou um sorriso cansado, feito de uma palavra: Obrigada. Siri tinha começado a pular, sacudindo os joelhos com prazer. A menininha apontou um dedo gorducho pela janela, guinchando de puro deleite. Obrigada por isso.

E então, antes que percebessem, tinham chegado. Pelo para-brisa do transporte, os campos do Complexo Agrícola Norte saltaram à vista, a vasta colcha de retalhos estendida além deles como quadrados de tecidos variados: milho e trigo, algodão e feijão, arroz, cevada e aveia. Seis mil hectares unidos por uma trama de estradas poeirentas e, nas bordas, quebra-ventos de choupos e carvalhos; as torres de vigia e as casas de bombas com suas bacias de captação e redes de tubos, marcadas por altos estandartes laranja que pendiam frouxos no ar sufocante. Vorhees conhecia de cor o local de todas elas, mas quando o milho estava alto nem sempre era possível encontrá-las rapidamente sem as bandeiras.

Levantou-se e foi até a frente, onde o irmão de Dee, Nathan – todo mundo o chamava de Cruk –, estava de pé atrás da motorista. Vorhees era capataz, mas era Cruk, um antigo oficial da Segurança Doméstica, que estava de fato no comando.

– Parece que temos um ótimo dia para isso – disse Vorhees.

Cruk deu de ombros mas não falou nada. Como os trabalhadores do campo, vestia qualquer roupa que tivesse – calça jeans remendada e uma camisa cáqui esgarçada no colarinho e nos pulsos. Em cima disso usava um colete de plástico laranja com as palavras departamento de transporte do texas nas costas. Segurava seu fuzil, um 30-06 com mira telescópica, atravessado diante do peito e uma semiautomática 45 recondicionada num coldre preso à coxa. O fuzil era padrão, mas a 45 era algo especial, dos antigos militares ou talvez da polícia, com acabamento preto oleado e punho de madeira polida. Ele até mesmo tinha um nome para a pistola; chamava-a de “Abigail”. Era preciso conhecer a pessoa certa para se conseguir uma arma assim, e Vorhees não precisava pensar muito para saber quem poderia ser essa pessoa – era de conhecimento bastante comum que Tifty comerciava. O 38 de Vorhees, com suas parcas três balas, parecia insignificante em comparação, mas ele não tinha condições de possuir uma arma daquelas.

– Você sempre pode dizer que foi ideia de Dee – disse Cruk.

– Então você acha que isso não é inteligente.

Seu cunhado deu um riso contido. Era nesses momentos que a semelhança de Cruk com a irmã ficava mais evidente, mas também era verdade que isso era mais uma sugestão do que uma semelhança física real e algo que somente Vorhees notaria. Na verdade a maioria das pessoas vivia dizendo como os dois eram tão diferentes.

– Não importa o que eu acho. Você sabe tão bem quanto eu. Quando Dee põe uma coisa na cabeça, o melhor é tirar seu cavalo da chuva e desistir.

O ônibus deu uma sacudida capaz de abalar os ossos; Vorhees lutou para ficar de pé. Atrás deles as crianças berraram de prazer.

– Ei, Dar – disse Cruk –, você acha que consegue não passar num buraco desses?

A velha ao volante reagiu com um rrrummmpf úmido – dizer a Dar o que fazer com seu ônibus era equivalente a um ato de guerra. Todos os motoristas dos transportes eram mulheres mais velhas, geralmente viúvas. Não havia regras quanto a isso; era apenas como as coisas eram feitas. Com um rosto petrificado numa carranca permanente, Dar era uma figura de rabugice lendária, a mulher mais avessa a bobagens que já havia andado na Terra. Marcava o tempo com um relógio pendurado no pescoço e deixaria você parado numa nuvem de poeira se estivesse ao menos um minuto atrasado para o último transporte. Mais de um trabalhador do campo havia passado a noite nas casas-fortes, morrendo de medo, contando os minutos até o amanhecer.

– Um ônibus cheio de crianças, pelo amor de Deus. Quase não consigo pensar com todo esse barulho. – Dar virou os olhos para o espelho manchado acima do para-brisa. – Pelo amor da coisa, falem mais baixo aí! Duncan Whiters, desça do banco agora mesmo! E não pense que não estou vendo você, Jules Francis! Isso mesmo – alertou ela com um olhar gélido. – Estou falando com você, mocinha. Pode tirar esse risinho da cara agora mesmo.

Todo mundo ficou abruptamente em silêncio, até as mulheres. Mas, quando Dar voltou o olhar para a estrada, Vorhees percebeu que a raiva dela era falsa: a mulher mal podia se conter para não cair na gargalhada.

Cruk bateu com a mão enorme em seu ombro.

– Relaxe, Vor. Deixe todo mundo aproveitar o dia.

– Eu disse que estava preocupado?

A expressão dele ficou séria.

– Olha, sei que você preferiria que Tifty não viesse. Certo? Saquei. Mas ele é o melhor atirador que eu tenho. Diga o que disser, o cara consegue acertar um pendurado a 300 metros.

Vorhees não tinha consciência de que estivera pensando em Tifty. Mas, agora que Cruk havia puxado o assunto, imaginou que talvez estivesse.

– Então você acha que vamos precisar dele.

– Não estou dizendo isso. Num dia de verão assim, não teremos problemas. Só estou tendo cuidado. Elas são minhas meninas também, você sabe. – Ele mudou o clima com um riso. – Desde que Dee não transforme isso num hábito. Tive de cobrar uns 50 favores para montar esta festinha, e você pode contar a ela que eu disse isso.

O ônibus chegou à área de parada. Os últimos varredores estavam saindo do milharal, vestindo seus acolchoados volumosos, as luvas grossas e capacetes com as grades obscurecendo os rostos. Uma variedade de armas pendia de seus corpos: espingardas, fuzis, pistolas, até algumas machadinhas. Cruk instruiu as crianças a permanecer onde estavam – só quando fosse dado o sinal de que tudo estava limpo elas teriam permissão de sair do ônibus. Enquanto os adultos começavam a tirar os suprimentos, Tifty desceu da plataforma no teto do ônibus, encontrando-se com Cruk na traseira para conferenciar com o oficial da Segurança Doméstica encarregado do esquadrão de varredura, um homem chamado Dillon. O restante da equipe de Dillon, oito homens e quatro mulheres, tinha ido tomar água na gamela perto da casa da bomba.

Cruk voltou até onde Vorhees esperava com o restante dos homens. O sol já estava chamejando; a umidade da manhã havia evaporado.

– Totalmente limpo, os quebra-ventos também. – Ele piscou para Vorhees. – Isso vai ter um custo extra para Dee.

Antes que Cruk pudesse ao menos terminar o anúncio, as crianças estavam saltando dos bancos e correndo para fora do ônibus, abrindo espaço para os varredores, que voltariam à cidade. Olhando as crianças a se espalhar pelo terreno, corpos e rostos iluminados de empolgação, Vorhees ficou momentaneamente hipnotizado, a mente apanhada numa corrente de memória. Para muitos, em especial os menores, a excursão do dia representava a primeira viagem para fora dos muros; ele sabia disso desde o início. Mas testemunhar o momento era outra coisa. Será que o ar era diferente nos pulmões deles, pensou, o sol nos rostos, o chão sob os pés? Será que essas coisas tinham parecido diferentes para ele ao sair do transporte pela primeira vez, tantos anos atrás? E, claro, tinham: ir além dos muros era descobrir um mundo de dimensões ilimitadas – um mundo que você sabia que existia mas do qual jamais acreditara que faria parte. Lembrou-se da sensação como uma espécie de júbilo físico, mas também amedrontador, como um sonho em que ele recebera o dom do voo mas se pegara incapaz de pousar.

Junto à torre de vigia, Fort e Chesse fincavam mastros para montar uma cobertura contra o sol. As mulheres estavam pegando as mesas, cadeiras e os cestos de comida. Ali Dodd, com o rosto sombreado pela aba do largo chapéu de palha, já estava tentando organizar algumas crianças numa brincadeira de carregar. Tudo exatamente como Dee havia previsto quando puxara o assunto de trazer as crianças.

– É incrível, não?

O primo de Vorhees, Ty, estava parado ao lado dele, segurando um cesto junto ao peito. Com quase 1,90 metro, rosto comprido e lamentoso, sempre fazia Vorhees pensar num cachorro de aparência especialmente triste. Atrás deles, Dar deu três buzinadas. Com um arroto de fumaça oleosa, o ônibus se afastou.

– Já contei sobre a primeira vez que saí?

– Acho que não.

– Acredite – disse Ty, balançando a cabeça de um modo que dizia a Vorhees que ele não tinha intenção de ser mais explícito. – É uma tremenda história.

Quando tudo fora descarregado, Cruk chamou as crianças para baixo da lona, para repassar as regras, que todos já sabiam mas que sempre valia a pena repetir. A primeira coisa, começou Cruk, era que todo mundo precisava de um colega. Esse colega podia ser qualquer um, um irmão, uma irmã ou um amigo, mas era preciso ter um e era preciso ficar com esse colega o tempo todo. Essa era a coisa mais importante. O terreno aberto na base da torre de vigia era seguro, dentro desses limites eles podiam ir aonde quisessem, mas sob nenhuma circunstância deveriam se aventurar no milharal e o agrupamento de árvores na extremidade sul também estava fora dos limites.

– Agora, estão vendo aquelas bandeiras? – perguntou Cruk, fazendo um gesto por cima da plantação. As de cor laranja, penduradas daquele jeito? Quem pode dizer o que elas são?

Meia dúzia de mãos se levantou. O olhar de Cruk percorreu o grupo antes de pousar em Dash Martinez. Com 7 anos, todo joelhos e cotovelos e uma cabeleira escura, sob o facho da atenção de Cruk ele se imobilizou. Estava sentado entre Merry Dodd e Reese Cuomo, que cobriam a boca tentando não rir. As casas-fortes?, sugeriu o menino. Isso mesmo, respondeu Cruk, assentindo. Aquelas são as casas-fortes. Agora digam, continuou, dirigindo-se a todos eles. Se a sirene tocar, o que vocês devem fazer?

Correr!, disse alguém, e depois outro e mais outro. Correr!

– Correr para onde? – perguntou Cruk.

Desta vez foi um coro de vozes.

Correr para as casas-fortes!

Ele relaxou num sorriso.

– Muito bem. Agora vão se divertir.

As crianças saíram correndo, todas menos os adolescentes, que se demoraram mais um pouco junto ao toldo, querendo se separar dos menores. Mas até eles, sabia Vorhees, acabariam saindo ao sol. Os baralhos surgiram, assim como as meadas de fios para tricotar. Em pouco tempo todas as mulheres estavam ocupadas, vigiando as crianças da sombra, abanando os rostos no calor. Vorhees chamou os homens ao redor para distribuir tabletes de sal: mesmo bebendo água constantemente era possível ficar perigosamente desidratado. Eles encheram as garrafas na bomba. Não era preciso explicar o trabalho: tirar os pendões era uma tarefa cansativa, ainda que simples, que todos já haviam feito muitas vezes. Para cada três fileiras de milho fora plantada uma quarta, de um tipo diferente. Essa fileira teria os pendões retirados para evitar a autopolinização; na época da colheita ela produziria uma nova cepa híbrida, mais vigorosa, para usar como semente no ano seguinte. Quando o pai de Vorhees havia lhe explicado esse processo pela primeira vez, anos antes, parecera empolgante, até mesmo vagamente erótico. Afinal de contas o que estavam fazendo era parte do processo reprodutivo, mesmo que fosse apenas do milho. Mas os desconfortos físicos do serviço – as horas sob o sol implacável, a chuva incessante de pólen nas mãos e no rosto, os insetos que zumbiam em volta de sua cabeça buscando qualquer oportunidade para se enfiar nos ouvidos, no nariz e na boca – rapidamente acabaram com essa ideia. Em sua primeira semana na plantação um homem havia tido insolação. Vorhees não se lembrava de quem era ou o que fora feito dele – tinham-no posto no transporte seguinte e voltado ao trabalho. Era até possível que o sujeito tivesse morrido.

Grossas luvas de lona, largos chapéus de palha e camisas de manga comprida abotoadas nos punhos: quando os homens ficaram prontos para ir, o suor escorria deles. Vorhees lançou o olhar até o topo da torre de vigia em que Tifty havia assumido posição, examinando a linha das árvores com sua mira telescópica. Cruk tinha razão: Tifty era o homem certo para se ter lá em cima. Independentemente de qualquer outra coisa sobre Tifty Lamont, sua capacidade como atirador era indiscutível. Mas até mesmo ouvir o nome dele, tantos anos depois, provocava em Vorhees um ressurgimento da raiva. No mínimo a passagem do tempo só havia aumentado o sentimento; cada ano que escorria era mais um ano não vivido de Boz. Por que Tifty havia crescido e virado homem quando o mesmo não acontecera com Boz? Em momentos mais circunspectos, Vorhees sabia que suas emoções eram irracionais – Tifty podia ter sido o instigador daquela noite fatídica, mas qualquer um deles poderia ter recusado e Boz estaria vivo. Mas o que quer que Dee, Cruk ou o próprio Tifty dissessem – agora mesmo, examinando a linha das árvores com seu fuzil, Tifty estava oferecendo uma promessa silenciosa de proteger as filhas de Vorhees –, nada podia dissuadi-lo da crença de que Tifty carregava uma culpa singular. No fim das contas Vorhees era obrigado a aceitar seus sentimentos como uma falha do próprio caráter e guardá-los para si.

Dividiu os trabalhadores em três turmas, cada uma responsável por quatro fileiras. Então eles foram até o abrigo despedir-se. Um jogo de kickball estava acontecendo no campo; do lado oposto da torre de vigia vinha o ressoar de ferraduras no cercado. Dee estava descansando à sombra com Sally e Lucy Martinez, jogando baralho. Os jogos delas eram épicos: às vezes duravam dias. A mesa já estava arrumada para o almoço: pratos de louça com rachaduras minúsculas formando teias de aranha, copos de cerâmica, até mesmo uma toalha de mesa.

– Parece que estamos prontos para ir.

Ela pousou as cartas, levantando o rosto para ele.

– Bom. Venha cá.

Vorhees tirou o chapéu e se curvou para receber o beijo dela.

– Meu Deus, você já está fedendo. – Ela riu, franzindo o nariz. – Acho que este é o seu último do dia. – E depois: – E então, preciso dizer para ter cuidado?

Era o que elas sempre diziam.

– Se você quiser.

– Então está certo. Tenha cuidado.

Nit e Siri haviam entrado na tenda. Havia fiapos de capim preso nos cabelos e na trama dos macacões das duas, como cachorrinhos que tivessem rolado no chão.

– Abracem seu pai, meninas.

Vorhees se ajoelhou e pegou-as num feixe quente nos braços.

– Sejam boazinhas com a mamãe, certo? Eu volto para o almoço.

– Nós somos colegas uma da outra – proclamou Siri.

Ele espanou o capim do cabelo umedecido de suor das duas. Às vezes a simples visão delas o levava a um jorro de amor que provocava lágrimas nos olhos.

– Claro que são. Só se lembrem do que o tio Cruk disse. Fiquem onde a mamãe possa ver vocês.

– Carson disse que tem monstros na plantação – disse Siri. – Monstros que bebem sangue.

Vorhees lançou um olhar para Dee, que deu de ombros. Não era a primeira vez que o assunto aparecia.

– Bom, ele está errado – respondeu Vorhees. – Está tentando amedrontar vocês, só de brincadeira.

– Então por que a gente precisa ficar fora da plantação?

– Porque essas são as regras.

– Você garante?

Ele se esforçou o máximo para sorrir. Vorhees e Dee haviam concordado em manter o assunto vago pelo maior tempo que pudessem, no entanto ambos sabiam que não poderiam manter as meninas no escuro para sempre.

– Garanto.

Abraçou-as de novo, uma de cada vez e depois juntas, e foi se juntar à sua turma na borda da plantação. Uma parede de verde com quase dois metros de altura: as fileiras de pés de milho, uma série de corredores longos, iam até o quebra-vento. O sol havia atravessado uma fronteira invisível em direção ao meio-dia e ninguém estava falando. Vorhees olhou o relógio uma última vez. Preste atenção ao relógio. Conheça a localização da casa-forte mais próxima. Em caso de dúvida, corra.

– Certo, pessoal – disse, calçando as luvas. – Vamos lá.

E com essas palavras, juntos, eles entraram na plantação.

Em certo sentido, todos haviam se tornado quem eram por causa de uma única noite – a última noite de sua infância. Cruk, Vorhees, Boz, Dee: viviam juntos num bando, as órbitas cotidianas circunscritas apenas pelos muros da cidade e os olhos atentos das irmãs, que cuidavam da escola, e da Segurança Doméstica, que cuidava de todo o resto. Era uma época de fofocas, de boatos, de histórias trocadas na poeira. Rostos sujos, mãos sujas, os quatro se demorando no beco atrás dos alojamentos no caminho de casa para a escola. O que era o mundo? Onde estava o mundo e quando eles iriam vê-lo? Aonde seus pais iam, e às vezes as mães também, voltando para eles fedendo a trabalho, a dever e a preocupações misteriosas? O lá fora, sim, mas como o lá fora era diferente da cidade? Qual era a sensação, o gosto, o som? Por que, de vez em quando, alguém, uma mãe ou um pai, partia e não voltava, como se o reino invisível do outro lado dos muros tivesse o poder de engoli-los inteiros? Patetas, dracs, vampiros, saltadores: eles conheciam os nomes mas não sentiam todo o peso do significado. Havia os dracs, que eram os piores, que eram a mesma coisa que saltadores, ou vampiros (uma palavra que os velhos usavam); e havia os patetas, que eram semelhantes mas não eram a mesma coisa. Eram perigosos, sim, mas não muito, mais pareciam um incômodo, na mesma ordem dos escorpiões ou das cobras. Alguns diziam que os patetas eram dracs que tinham vivido demais, outros diziam que eram um tipo de criatura totalmente diferente. Que nunca tinham sido humanos.

O que era outra coisa: se os virais tinham sido pessoas como eles, como haviam se tornado o que eram?

Mas a maior história de todas era a do grande Niles Coffee: o coronel Coffee, fundador dos Expedicionários, homens sem medo que atravessavam o mundo para lutar e morrer. As origens de Coffee, como tudo sobre ele, eram envoltas em mito. Era um terceiro filho, criado no orfanato pelas irmãs; era um órfão da Incursão da Páscoa de 38, que vira os pais morrer; era um desgarrado que aparecera um dia junto ao portão, um menino guerreiro vestido com peles, carregando uma cabeça de viral espetada numa lança. Tinha matado 100 virais com as próprias mãos, mil, 10 mil; o número sempre crescia. Nunca pôs o pé dentro da Cidade; andava no meio deles vestido como um homem comum, um trabalhador do campo, escondendo a identidade; ele não existia. Diziam que seus homens faziam um juramento – um juramento de sangue – não a Deus, mas um ao outro, e que raspavam a cabeça como marca dessa promessa, uma promessa de morrer. Muito além dos muros eles viajavam, e não somente no Texas. Oklahoma City. Wichita, Kansas. Roswell, Novo México. Na parede acima de sua cama, Boz mantinha um mapa dos Velhos Estados Unidos, blocos de cor desbotada unidos como os pedaços de um quebra-cabeça. Para marcar cada lugar novo ele cravava um dos alfinetes da mãe deles, ligando-os com linha para indicar as rotas percorridas por Coffee. Na escola eles perguntavam à irmã Peg, cujo irmão trabalhava na estrada do Petróleo: o que ela teria ouvido, o que ela sabia? Era verdade que os Expedicionários tinham encontrado sobreviventes lá fora, povoados inteiros e até mesmo cidades cheias de gente? A isso a irmã não respondia, mas as crianças viam a luz da esperança no clarão de seus olhos quando falavam o nome dele. Era isso que Coffee era: de onde quer que tivesse vindo, como quer que tivesse vindo, Coffee era um motivo para ter esperança.

Chegaria um tempo, muitos anos mais tarde, muito depois de Boz ter partido e a mãe deles também, em que Vorhees se perguntaria: por que ele e seu irmão nunca falavam dessas coisas com os pais? Seria natural. No entanto, enquanto revirava a memória, não conseguia se lembrar de uma única circunstância, assim como não conseguia se lembrar da mãe ou do pai dizendo uma palavra sobre o mapa de Boz. Por que seria assim? E o que fora feito do mapa, que na lembrança de Vorhees estava ali num dia e no outro havia sumido? Era como se as histórias de Coffee e dos Expedicionários tivessem feito parte de um mundo secreto – um mundo da infância que, depois de passar, ficara para trás. Durante um período de semanas essas perguntas o haviam consumido de tal modo que numa manhã, tomando o desjejum, finalmente juntou coragem para perguntar ao pai, que riu. Está brincando? Thad Vorhees ainda não era velho, mas parecia: o cabelo e metade dos dentes tinham ido embora, a pele era vitrificada com uma permanente umidade azeda, pousadas na mesa da cozinha, as mãos pareciam ninhos de ossos. Está falando sério? Você, você não era tão chato, mas Boz... ele não conseguia calar a boca sobre isso. Coffee, Coffee, Coffee o dia todo. Você não lembra? Os olhos dele se nublaram com um sofrimento súbito. Aquele mapa idiota. Para dizer a verdade, não tive coragem de rasgá-lo, mas fiquei surpreso porque você teve. Nunca vi você chorar daquele jeito em toda a vida. Achei que você tinha deduzido que era tudo papo furado, Coffee e o resto deles. Que isso não daria em nada.

Mas não era o caso de ser nada; nunca seria, nunca poderia ser nada. Como poderia ser nada quando eles amavam Boz daquele jeito?

Foi Tifty, claro – Tifty, o mentiroso, Tifty, o contador de lorotas, Tifty, que queria tão desesperadamente ser necessário para alguém a ponto de deixar qualquer coisa idiota sair da boca –, que declarou ter visto Coffee com seus próprios olhos. Tifty, todos eles riram, você é tão ridículo, Tifty, você nunca viu Coffee nem ninguém. Porém mesmo no meio das zombarias a ideia estava ganhando raízes; desde o início o garoto possuía aquele talento, o de fazer as pessoas acreditarem numa coisa ao mesmo tempo que sabiam de outra. Ele havia se enfiado tão discretamente no círculo deles que ninguém poderia dizer como isso tinha acontecido; num dia não havia Tifty, no outro lá estava ele. Um dia que começou como qualquer outro, com capela, escola e a aproximação agonizante das três da tarde, o som do sino e a libertação súbita, 200 seres saindo pelos corredores e descendo as escadas, indo para a tarde, a caminhada da escola até os alojamentos, rostos se afastando à medida que os caminhos dos colegas de turma divergiam, até ficarem somente os quatro.

Mas não exatamente: enquanto entravam no beco, no amontoado de velhos carrinhos de supermercado, colchões encharcados e cadeiras quebradas – as pessoas viviam jogando o lixo ali, não importava o que o intendente dissesse –, perceberam que estavam sendo seguidos. Um garoto, magro como um graveto, com rosto fino encimado por um tufo de cabelos ruivos que parecia ter caído de uma grande altura sobre sua cabeça. Ainda que fosse janeiro, com o ar frio e úmido, ele não usava agasalho, só uma camisa de malha, calça jeans e sandálias de plástico. Vinha da direção da escola mas eles sabiam que nunca o tinham visto. A distância em que os seguia, as mãos enfiadas nos bolsos, era suficientemente próxima para encorajar a curiosidade deles sem parecer que se intrometia. Era uma distância de sondagem, como se dissesse: posso ser uma pessoa interessante, talvez vocês queiram me dar uma chance.

– O que vocês acham que ele quer? – perguntou Cruk.

Tinham chegado ao fim do beco, onde haviam erguido um pequeno abrigo com restos de madeira. Um colchão mofado, com as molas saltando para fora, servia de piso. O garoto havia parado a uns 10 metros, arrastando os pés na poeira. Algo na postura dele fazia parecer que as partes do seu corpo só eram conectadas vagamente, como se ele tivesse sido montado a partir de uns quatro garotos diferentes.

– Está seguindo a gente? – gritou Cruk.

O garoto não respondeu. Estava olhando para baixo e para longe, como um cachorro que tentasse não fazer contato visual. Desse ângulo, todos podiam ver a marca no lado esquerdo de seu rosto.

– Você é surdo? Eu fiz uma pergunta.

– Não estou seguindo vocês.

Cruk se virou para os outros. Por ter um ano a mais, era o líder não oficial.

– Alguém conhece esse garoto?

Ninguém conhecia. Cruk olhou de volta para ele.

– Você. Como se chama?

– Tifty.

– Tifty? Que tipo de nome é Tifty?

Os olhos dele estavam inspecionando as pontas dos dedos.

– É só um nome.

– Sua mãe chama você assim? – perguntou Cruk.

– Não tenho mãe.

– Ela morreu ou abandonou você?

O garoto estava mexendo em alguma coisa no bolso.

– As duas coisas, eu acho. Se você pergunta assim. – Ele franziu os olhos. – Vocês são tipo um clube?

– Por que está falando isso?

O garoto levantou os ombros ossudos.

– É só que eu vi vocês.

Cruk olhou para os outros, depois olhou de volta para o garoto. Deu um suspiro cansado.

– Bom, não precisa ficar aí parado feito um panaca. Venha cá para a gente dar uma olhada em você.

O garoto foi na direção deles. Vorhees pensou que havia algo familiar nele, em seu jeito desprezível. Mas talvez fosse apenas o fato de que qualquer um deles poderia estar sozinho daquele jeito. Viram que a marca no rosto era um grande olho roxo.

– Ei, eu conheço esse garoto – disse Dee. – Você mora na Auxiliada, não é? Eu vi você se mudando com seu pai.

Moradia Auxiliada de Hill Country: uma colmeia de apartamentos, com as famílias todas espremidas. Todo mundo chamava o lugar de Auxiliada.

– É mesmo? – perguntou Cruk. – Você acabou de se mudar?

O garoto assentiu.

– Vim lá da Cidade-H.

– Você está com seu pai? – perguntou Cruk.

– Tenho uma tia também. Rose. Ela cuida de mim na maior parte do tempo.

– O que você tem aí no bolso? Você está remexendo nisso o tempo todo.

O garoto tirou a mão para mostrar: um canivete cheio de acessórios. Cruk o pegou e os outros três juntaram os rostos. As lâminas de sempre, além de uma serra, uma chave de fenda, uma tesoura e um saca-rolhas, até uma lente nublada pela idade.

– Onde você conseguiu isto? – perguntou Cruk.

– Meu pai me deu.

Cruk franziu a testa.

– Ele comercia?

O garoto balançou a cabeça.

– Não. Ele é hidro. Trabalha na represa. – Fez um gesto para o canivete. – Pode ficar com ele, se quiser.

– Para que eu iria querer um canivete?

– Diabos, se ele não quer, eu quero – disse Boz. – Me dê aqui.

– Cale a boca, Boz. – Cruk olhou o garoto lentamente. – O que você fez com a sua cara?

– Eu caí, só isso.

Seu tom não foi defensivo, foi como se estivesse dizendo qual era o dia da semana. Mas todos sentiram o vazio da mentira.

– Parece mais que caiu em cima de um punho. O seu pai fez isso ou foi outra pessoa?

O garoto não disse nada. Vorhees viu um pequeno tremor no queixo dele.

– Cruk, deixe ele em paz – disse Dee.

Mas o olhar de Cruk permaneceu fixo no garoto.

– Eu fiz uma pergunta.

– Às vezes ele faz isso. Quando está cheio de alc. Rose diz que não é por querer. É por causa da minha mãe.

– Por que ela abandonou vocês?

– Porque ela morreu quando me teve.

As palavras do garoto pareceram pender no ar. Era verdade ou não era verdade; de qualquer modo, agora eles não poderiam recusar seu pedido.

Cruk estendeu o canivete.

– Tome, fique com ele. Não quero o canivete do seu pai.

O garoto o guardou de volta no bolso.

– Eu sou Cruk. Dee é minha irmã. Os outros dois são Boz e Vor.

– Sei quem vocês são. – Ele franziu os olhos, inseguro. – Então agora faço parte do clube?

– Quantas vezes preciso dizer que a gente não é um clube? – disse Cruk.

Assim, de uma hora para outra, foi determinado: Tifty era um deles. No devido tempo todos conheceriam Bray Lamont, um homem feroz, até mesmo aterrorizante, os olhos permanentemente iluminados pelo uísque ilegal que todo mundo chamava de alc, a voz adensada pela bebida rugindo o nome de Tifty da janela toda noite na hora da sirene. Tifty, droga! Tifty, venha cá antes que eu tenha de sair atrás de você! Em mais de uma ocasião o garoto apareceu no beco com um novo olho roxo, hematomas, uma vez até mesmo com o braço numa tipoia. Em um acesso de fúria o pai o havia jogado para o outro lado da sala, deslocando seu ombro. Será que eles deveriam contar aos domésticos? Aos pais? E a tia Rose, ela não podia ajudar? Mas Tifty sempre balançava a cabeça. Parecia não ter raiva por causa dos machucados, só um fatalismo de lábios apertados que eles não podiam deixar de admirar. Parecia uma espécie de força. Não digam a ninguém, pedia o garoto. Ele é assim, só isso. Não dá para mudar uma coisa dessas.

Havia outras histórias. O bisavô de Tifty, pelo menos era o que ele dizia, fora um dos signatários originais da Declaração do Texas e tinha supervisionado a liberação da estrada do Petróleo; seu avô era um herói da Incursão da Páscoa de 38 que, mortalmente mordido na primeira onda, ainda assim havia comandado o ataque e se sacrificado no campo de batalha diante de seus homens, tirando a própria vida com uma faca; um primo, cujo nome Tifty se recusava a revelar (“Todo mundo só o chama de Primo”), era um gângster procurado, controlador da maior destilaria da Cidade-H; sua mãe, uma grande beldade, tinha recebido nove propostas de casamento antes dos 16 anos, inclusive de um homem que mais tarde seria assessor do presidente. Heróis, dignitários, criminosos, um vasto e colorido cortejo de gente importante, tanto no mundo que eles conheciam quanto no que espreitava por baixo, o mundo do comércio; Tifty conhecia pessoas que conheciam pessoas. Portas se abriam para Tifty Lamont. Não importava que ele fosse filho de um hidro bêbado vindo da Cidade-H e um garoto magricela com hematomas no rosto e roupas do tamanho errado que ele nunca lavava, criado por uma tia solteirona, que morava na Auxiliada, como eles; as histórias de Tifty eram boas demais, interessantes demais para não se acreditar.

Mas ter visto Coffee – isso foi simplesmente demais. Uma afirmação dessas voava diante dos fatos. Coffee era impossível de ser conhecido; como os virais, Coffee era uma criatura das sombras. No entanto a história de Tifty possuía as tintas da realidade. Ele fora com seu pai à Cidade-H, às suas ruas sem lei, transformadas em favelas, encontrar-se com Primo, o gângster. Lá, na sala dos fundos do galpão das máquinas onde se localizava a destilaria – um negócio colossal, como um dragão vivo feito de fios, tubos e caldeirões bufando –, em meio a homens com olhos perigosos, sorrisos untuosos com dentes enegrecidos e pistolas enfiadas nos cintos, o dinheiro trocava de mãos, a garrafa de alc era comprada. Essas excursões eram rotina. Tifty as havia descrito muitas vezes antes, mas nessa ocasião algo estava diferente. Dessa vez havia um homem. Não era igual aos outros, não era do comércio – Tifty pôde ver isso imediatamente. Alto, com a postura ereta de um soldado. Ele ficou de lado, na sombra, o rosto obscurecido, usando um sobretudo escuro preso com um cinto. Tifty viu que a cabeça dele era raspada. Evidentemente aquele homem, quem quer que fosse, estava ali com algum objetivo urgente; em geral o pai de Tifty se demorava um tempo, bebendo e trocando histórias dos dias da Cidade-H com os outros homens, mas naquela noite, não. Primo, com sua grande forma rotunda enfiada atrás da mesa como um ovo no ninho, aceitou as notas do pai sem comentários; parecia que nem bem eles haviam chegado e já saíam pela porta. Só quando estavam bem longe do galpão seu pai disse: Não sabe quem você viu lá, garoto? Hein? Não sabe? Vou dizer quem era. Aquele era o próprio Niles Coffee.

Os cinco estavam apinhados no abrigo do beco:

– Vou dizer outra coisa. – Enquanto falava, Tifty riscava o chão com o canivete, que afinal de contas permanecera com ele. – Meu velho disse que ele tem um acampamento abaixo da represa. Bem na área aberta, como se ficar do lado de fora não fosse nada. Eles deixam os dracs chegarem para torrá-los nas armadilhas.

– Eu sabia! – gritou Boz. O rosto do menino mais novo estava praticamente reluzindo de empolgação. Ele girou o corpo, na direção de Vorhees. – O que foi que eu disse?

– De jeito nenhum, porra – zombou Cruk. Dentre todos, o seu papel era o de cético; ele usava esse personagem como um dever.

– Estou dizendo, era ele. Quase dava para sentir. O jeito como todo mundo estava.

– E o que Coffee iria querer com um punhado de comerciantes? Responda isso.

– Como é que vou saber? Talvez compre alc para os homens dele. – Uma nova ideia chegou ao seu rosto. Ele se inclinou para a frente, baixando a voz. – Ou armas.

Cruk deu uma risada sarcástica.

– Escutem só esse cara.

– Pode zombar o quanto quiser. Eu vi. Estou falando de armas verdadeiras do Exército, de antes. Fuzis M-16, pistolas automáticas, até lançadores de granadas.

– Uau – disse Boz.

– Onde Primo arranjaria essas armas? – perguntou Vorhees.

Tifty se ergueu para olhar ao redor, como se quisesse garantir que ninguém estava escutando.

– Não sei se eu deveria contar isso a vocês – continuou, com a voz pouco acima de um sussurro. – Tem um bunker, uma antiga base do Exército perto de San Antonio. Primo faz patrulhas até lá.

– Não posso ouvir isso nem mais um segundo – disse Cruk. – Você não viu Coffee nem ninguém.

– Está dizendo que não acredita que ele exista?

A ideia era um sacrilégio.

– Não estou dizendo isso. Só que você não viu.

– E você, Vor?

Vorhees se sentiu apanhado. Metade do que Tifty dissera era puro papo-furado – talvez mais da metade. Por outro lado, a ânsia de acreditar era forte.

– Não sei – conseguiu dizer. – Acho que... não sei.

– Bom, eu acredito nele – proclamou Dee.

Os olhos de Tifty se arregalaram.

– Viu?

Cruk descartou isso.

– Ela é menina. Acredita em qualquer coisa.

– Ei!

– Bom, é verdade.

Tifty encarou o garoto mais velho.

– E se eu disser que você também pode ver o Coffee?

– E como eu faria isso?

– Fácil. A gente pode sair por um dos tubos do vertedouro. Eu já fui lá um monte de vezes. Nesta época do ano só liberam a água ao amanhecer. As aberturas vão direto até a base da represa. De lá deve dar para ver o acampamento.

O desafio fora lançado; não havia como recusar.

– Não tem porcaria nenhuma de acampamento, Tifty.

Demoraram três dias para tomar coragem, e mesmo assim Cruk proibiu a irmã de ir. O plano era se esgueirar depois que os pais estivessem dormindo e se encontrarem no abrigo; Tifty havia bolado uma rota até a represa que iria mantê-los fora das vistas das patrulhas.

Passava da meia-noite quando Tifty chegou. Os outros já estavam esperando. Tifty apareceu no fim do beco e foi rapidamente até eles, com o capuz do casaco puxado sobre a cabeça e as mãos enfiadas nos bolsos. Quando chegou ao abrigo tirou do bolso uma garrafa plástica.

– Coragem líquida. – Ele desatarraxou a tampa e entregou a garrafa a Vorhees.

Era alc. Os pais de Vorhees e Boz, gente devota que ia à igreja das irmãs todo domingo, não admitiam aquilo em casa. Vorhees segurou a garrafa aberta embaixo do nariz. Era um líquido transparente, com um forte odor químico, parecendo sabão de lixívia.

– Me dê aqui – ordenou Cruk. Em seguida pegou a garrafa, tomou um gole e devolveu a Vorhees.

– Você nunca bebeu alc? – perguntou Tifty a Vorhees.

Vorhees se esforçou ao máximo para parecer ofendido.

– Claro que já. Um monte de vezes.

– Quando você bebeu alc? – riu Boz.

– Tem muita coisa que você não sabe, irmão. – Desejando poder apertar o nariz, Vorhees tomou um gole cauteloso, engolindo depressa para evitar o gosto. Um jorro de calor ardente encheu a mucosa de seu nariz, um rio de fogo escorreu pela garganta. Meu Deus, era medonho! Terminou com uma tosse chiada, lágrimas enchendo os olhos, todo mundo rindo.

Boz bebeu em seguida. Para embaraço de Vorhees, seu irmão mais novo conseguiu tomar uma golada respeitável sem muito mais do que um franzir do rosto. Mais três vezes a garrafa viajou pelo círculo. Na quarta, até Vorhees havia pegado o jeito e conseguiu tomar um gole respeitável sem tossir. Imaginou por que não estava sentindo nada, mas no momento em que ficou de pé percebeu que estava: o chão sacudiu sob seus pés e ele precisou estender a mão para se apoiar.

– Vamos – disse Tifty.

Quando chegaram à represa estavam todos rindo feito loucos. O correr do tempo havia se alterado de algum modo; parecia que tinham demorado muito para chegar ali e, ao mesmo tempo, que não tinham demorado nada. Vorhees guardava uma lembrança fragmentada de ter se escondido de uma patrulha embaixo de um caminhão, mas não conseguia lembrar as circunstâncias exatas, nem como tinham evitado a captura. Sabia que estava bêbado, mas esse fato não era nada em que sua mente pudesse se concentrar. Pararam nas sombras enquanto alguém – Boz, percebeu Vorhees, que era o mais bêbado de todos – vomitava num matagal. E Dee, o que ela estava fazendo ali? Tinha-os seguido? Cruk estava gritando que ela voltasse para casa, mas Dee era Dee: quando encasquetava com alguma coisa era o mesmo que você tentar tirar um osso da boca de um cachorro. O fato era que Vorhees amava Dee. Sempre amara. De súbito aquele amor ficou avassalador, como um balão de emoção se expandindo dentro do peito, e ele estava tomando coragem para confessar seus sentimentos quando Tifty veio para perto deles, voltando de onde quer que tivesse ido, e disse para o seguirem.

Levou-os até um pequeno prédio de concreto com uma escada de metal descendo. Na base havia um túnel de manutenção, úmido e escuro, as paredes pingando. Estavam dentro da represa, em algum lugar acima das aberturas do vertedouro. Lâmpadas em gaiolas de metal alongavam as sombras nas paredes. Um jorro crescente de adrenalina estava trazendo os sentidos de Vorhees de volta para o foco. Chegaram a uma escotilha na parede, lacrada com um volante metálico enferrujado. Cruk e Tifty se posicionaram dos dois lados e fizeram toda a força, mas o volante não cedia.

– Precisamos de uma alavanca – disse Tifty.

Ele desapareceu de novo no túnel e voltou um minuto depois com um pedaço de cano. Enfiou-o entre os raios do volante e fez força. Com um guincho, o volante começou a girar. A porta se abriu.

Dentro havia um poço vertical e uma escada levando para baixo. Tifty pegou um sinalizador, acionou o disparador e o largou no buraco. Ele desceu primeiro, depois Vor, Dee e Boz, com Cruk no final.

Viram-se num tubo largo. Uma saída do vertedouro, uma das seis. Através daquelas aberturas a água era liberada da represa uma vez por dia e se afunilava pelo vertedouro até os campos. Atrás deles havia milhões de litros de água contidos pela represa. O ar era frio e tinha cheiro de pedra. Um fiapo de água escorria pelo piso até a saída, que era um disco pálido de céu enluarado. Esgueiraram-se para lá, para longe da luz do sinalizador de Tifty. O coração de Vorhees martelava no peito. O mundo da noite, fora dos muros: aquilo estava além da imaginação. A três metros da saída Tifty se agachou e os outros o imitaram. Barras de aço grosso guardavam a abertura.

– Eu vou primeiro – sussurrou Tifty.

Ficou de quatro e foi em direção à boca do túnel. Os outros se mantiveram absolutamente imóveis. Na mente bêbada de Vorhees, ver o acampamento de Coffee havia se tornado um propósito secundário; a noite era um puro teste de coragem e seu objetivo era irrelevante. As barras eram suficientemente fortes para manter um viral do lado de fora, mas esse não era o único perigo: Vorhees meio que esperava que uma mão com garras as atravessasse, agarrando seu amigo e despedaçando-o. Através da névoa do alc lhe veio a ideia de que Dee também devia estar com medo e que ele poderia tranquilizá-la, mas não conseguia pensar no que dizer e a ideia morreu em sua mente.

Na boca do túnel, Tifty ficou de joelhos, segurando as barras, e olhou para fora.

– O que você está vendo? – sussurrou Cruk.

Houve uma pausa, e depois duas palavras ditas pelo amigo:

– Puta... merda.

O tom pareceu errado a Vorhees. Não era uma exclamação de descoberta, mas de medo súbito.

– O que foi? – sussurrou Cruk, mas asperamente. – Coffee está aí?

– Quero olhar! – exclamou Boz.

– Quieto! – rosnou Cruk. – Tifty, que droga, o que foi?

Vorhees sentiu através dos joelhos. Um ribombar como de um trovão, seguido pelo gemido esganiçado de engrenagens de metal se movendo. O som vinha de trás deles.

Tifty saltou de pé.

– Saiam daqui!

Era água. O som que Vorhees estava escutando era de água sendo liberada da represa. Uma abertura, depois outra e mais outra, movendo-se em sequência. Era isso que Tifty tinha visto.

Eles seriam despedaçados.

Vorhees se levantou e agarrou Boz pelo braço, para puxá-lo, mas o menino se soltou.

– Eu quero ver!

– Não tem nada aí!

A voz do menino se embargou com lágrimas:

– Tem, tem sim!

Boz correu para a abertura. Tifty e os outros já estavam disparando para a escada. Agora o som de trovão estava mais próximo: o tubo adjacente fora liberado; o deles seria o próximo. Na boca do túnel Vorhees segurou o irmão pela cintura, mas o garoto se agarrava com força às barras.

– Estou vendo! É o Coffee!

Vorhees puxou com toda a força; os dois caíram no chão. Os outros estavam chamando: Venham, venham! Vorhees agarrou o irmão pela mão e começou a correr. Cruk estava acenando da base da escada. Vorhees sentiu um estalo de pressão nos ouvidos; um vento gelado soprava em seu rosto. Enquanto Cruk desaparecia subindo a escada, Vorhees começou a subir, com o irmão logo atrás.

Então a água chegou.

Acertou-o como um punho, 100 punhos, mil. Abaixo ouviu Boz gritar aterrorizado. Conseguiu se manter agarrado na escada, mas não poderia fazer nada além disso; soltar ao menos uma das mãos seria ser levado embora. A água enchia seu nariz e sua boca. Tentou chamar o nome do irmão, mas não saiu nenhum som. É assim que a coisa termina, pensou. Um erro e tudo estava acabado. Era tão simples! Por que as pessoas não morrem assim com mais frequência? Mas morriam, percebeu, enquanto suas mãos na escada começavam a enfraquecer. Morriam assim o tempo todo.

Foi Cruk quem o puxou. Cruk, que seria seu amigo para sempre, que um dia ficaria ao seu lado quando ele casasse com Dee, que vigiaria seus filhos no dia em que todo mundo trouxe as crianças para um piquenique no campo; que iria se juntar a ele nas últimas batalhas de suas vidas, a muitos quilômetros e muitos anos de distância. Enquanto as mãos de Vorhees se soltavam, Cruk baixou a dele e o puxou pelo pulso, e a próxima coisa que Vorhees viu foi que estavam subindo, estavam indo pelo poço em direção a um local seguro.

Mas não Boz. O corpo do menino só seria recuperado na manhã seguinte, esmagado contra as barras. Talvez tivesse visto Coffee, talvez não. Tifty nunca contou a eles. Com o passar do tempo Vorhees passou a pensar que isso não importava. Mesmo se ele tivesse visto, não havia consolo nisso.

Na pausa do meio-dia, a turma que tirava os pendões já havia coberto mais de 4 mil metros quadrados. O sol batia com força, não havia uma nuvem no céu; até as crianças, depois de uma manhã de jogos e risos, haviam se retirado para o abrigo. Junto à bomba, Vorhees tirou o chapéu, encheu um copo e bebeu, depois encheu de novo para derramar a água no rosto. Tirou a camisa suada e se enxugou com ela. Deus todo-poderoso, estava quente!

As mulheres e crianças já haviam comido. À mesa sob o abrigo, a equipe de trabalho se juntou para almoçar. Pão e manteiga, ovos cozidos, carne-seca, fatias de queijo, jarras de água e limonada.

Cruk veio da torre para encher um prato; Tifty não estava à vista. Bom, e daí? Tifty podia fazer o que quisesse. Comeram com gosto, sem falar. Logo todos estariam cochilando na sombra.

– Uma hora – disse Vorhees, levantando-se da mesa. – Não relaxem demais.

Subiu a escada até o topo da torre, onde encontrou Cruk examinando a distante linha das árvores com o binóculo. Seu fuzil estava encostado no parapeito.

– Alguma coisa interessante por lá?

Por um segundo Cruk não respondeu. Entregou o binóculo a Vorhees.

– Às seis horas, através da linha das árvores. Diga o que é.

Vorhees olhou. Nada, só árvores e os morros marrons e secos atrás.

– O que você acha que viu?

– Não sei. Alguma coisa brilhante.

– Brilhante? Como metal?

– É.

Depois de um momento Vorhees baixou o binóculo.

– Bom, agora não está lá. Talvez fosse apenas o sol se refletindo nas lentes. Está muito claro aqui fora.

– Provavelmente é isso. – Cruk tomou um gole d’água de sua garrafa. – Como vão as coisas lá embaixo?

– Todos vão estar dormindo logo. Um bocado de crianças já apagou. Acho que ninguém esperava que fosse fazer tanto calor.

– É julho no Texas, irmão.

– Gunnar queria saber se pode ajudar. Aquele garoto é todo coração e nenhum bom senso.

Cruk pegou seu fuzil.

– O que você disse a ele?

– “Espere só. Um dia você vai perceber como isso é maluquice.”

Cruk gargalhou.

– No entanto nós somos iguais. Mal podíamos esperar para sair no mundo.

– Talvez você não pudesse.

Cruk ficou quieto um momento, olhando por cima do parapeito. Vorhees sentiu que algo perturbava o amigo, e não era só a coisa brilhante no mato.

– Escute – começou Cruk –, eu tomei uma decisão e queria que você a ouvisse de mim. Você sabe que estão falando em recriar os Expedicionários.

Vorhees também tinha ouvido esses boatos. Não era nada novo, boatos circulavam o tempo todo. Desde que Coffee e seus homens desapareceram – quantos anos antes? – o assunto nunca havia morrido de verdade.

– As pessoas vivem dizendo isso.

– Desta vez não é só conversa. Os militares estão pegando voluntários da Segurança Doméstica, querem montar uma unidade de 200 homens.

Vorhees examinou o rosto do amigo. O que ele estava dizendo?

– Cruk, você não pode estar pensando sério nisso. Aquilo era papo de criança.

– Talvez fosse, na época. E sei como você se sente com relação a isso, depois do que aconteceu com Boz. Mas olhe a minha vida, Vor. Eu não me casei. Não tenho família. O que eu estava esperando?

O significado ficou claro imediatamente.

– Meu Deus. Você já se alistou, não foi?

Cruk assentiu.

– Entreguei minha carta de demissão da Segurança Doméstica ontem. Mas só vai ser oficializada quando eu fizer o juramento.

Vorhees estava atônito.

– Olhe, não conte a Dee – insistiu Cruk. – Eu quero fazer isso.

– Ela não vai aceitar com facilidade.

– Eu sei. É por isso que estou contando primeiro a você.

A conversa foi interrompida pelo som de uma picape vindo pela estrada de serviço. Chegou à área de parada e estacionou junto ao abrigo. Tifty desceu. Foi até a traseira e baixou a parte móvel.

– O que ele tem?

Eram melancias. Todo mundo se apinhou em volta; Tifty começou a cortá-las, passando fatias gordas, pingando, para as crianças. Melancias! Que prazer, num dia assim!

– Pelo amor de Deus – gemeu Vorhees, olhando o desempenho. – Onde, diabos, ele conseguiu aquilo?

– Onde o Tifty consegue qualquer coisa? Mas você tem de dar a mão à palmatória: o cara não vai morrer sem amigos.

– Eu disse isso?

Cruk o encarou.

– Você não precisa gostar dele, Vor. Não sou eu quem vai dizer isso. Mas ele está tentando. Isso você precisa admitir.

A porta da escada se abriu e Dee apareceu, trazendo dois pratos, cada um com uma fatia rosada de melancia.

– Tifty trouxe...

– Obrigado. Nós vimos.

O rosto dela ficou com uma expressão que Vorhees conhecia bem demais. Deixe para lá. Por favor, só por hoje. São só melancias.

Cruk pegou os pratos com ela.

– Obrigado, Dee. Isso vai realmente bater bem. Agradeça a Tifty.

Ela observou Vorhees, depois voltou o olhar para o irmão.

– Vou fazer isso.

Vorhees percebeu que parecia um idiota ressentido, assim como sabia que, se não dissesse nada, se não mudasse de assunto, carregaria esse sentimento azedo pelo resto do dia.

– Como estão as crianças?

Dee deu de ombros.

– Siri apagou totalmente. Nit saiu com Ali e umas outras. Estão colhendo flores selvagens. – Ela parou para enxugar a testa com as costas da mão. – Vocês vão mesmo voltar para lá? Não sei como você aguenta. Talvez devesse esperar até o sol baixar um pouco.

– Tem muita coisa a fazer. Não precisa se preocupar comigo.

Ela o encarou por mais um momento.

– Bem, que seja. Quer que eu traga mais alguma coisa para você, Cruk?

– Não, obrigado.

– Então vou deixar vocês sozinhos.

Quando Dee saiu, Cruk estendeu um dos pratos para ele. Mas Vorhees balançou a cabeça, negativamente:

– Obrigado.

O grandalhão deu de ombros. Já estava engolindo sua fatia, rios de suco escorrendo pelo queixo. Quando só restava a casca, ele fez um gesto para o segundo prato, que estava no parapeito.

– Você se importa?

Vorhees deu de ombros. Cruk acabou com a segunda fatia, enxugou o rosto na manga da camisa e jogou as cascas pela beirada.

– Você deveria contar logo a Dee – disse Vorhees.

Três horas, o dia se esvaindo. Uma brisa leve havia começado a soprar no fim da manhã, mas agora o ar estava parado de novo. Sob a lona, Dee jogava uma partida meio desanimada de baralho com Cece Cauley, tendo o pequeno Louis descansando no cesto aos pés delas. Era um bebê gorducho, bem-humorado, com dedos gordos nas mãos e nos pés e uma boca macia, franzida: apesar do calor, mal havia se agitado o dia inteiro e agora dormia a sono solto.

Dee se lembrava desses dias, dos dias de bebês. As sensações características, os sons e cheiros e a percepção de uma profunda conexão física, como se você e o bebê fossem um ser único. Muitas mulheres reclamavam disso – não consigo ter um momento para mim, mal posso esperar até ela estar andando! –, mas Dee nunca havia reclamado; estava com apenas 30 anos, com todo o prazer teria mais uma criança, talvez até duas. Seria bom ter um filho, pensou. Mas as regras eram claras: dois e pronto. O governo estava discutindo uma extensão dos muros e talvez então a proibição fosse retirada. Mas provavelmente isso chegaria tarde demais, e até lá havia apenas uma quantidade limitada de comida, combustível e espaço.

E Vor... bom, o que ela poderia fazer? A morte de Boz era uma barreira intransponível na mente dele, com a verdade distorcida e ampliada no correr dos anos até virar o ferimento único de sua vida. Tifty era Tifty e sempre seria. Num dia estava sendo jogado na cadeia por ter lançado um homem através de uma janela numa briga de bar, no outro, como se por magia, estava produzindo um caminhão de melancias do mercado negro numa tarde escaldante de verão. Era apenas questão de tempo até que fosse parar na cadeia de uma vez por todas. No entanto não havia como negar: Tifty sempre faria parte deles, principalmente de Dee. Havia ocasiões em que Dee olhava para a filha mais velha e honestamente não sabia qual era a verdade. Poderia ser uma coisa ou outra. A uma certa luz Nitia era totalmente Vor, mas então a menina sorria de um modo particular ou fazia aquele negócio de franzir os olhos e ali estava Tifty Lamont.

Uma única noite, nem isso. A coisa toda, a totalidade do caso, durara cerca de 90 minutos do início ao fim. Como seria possível que 90 minutos fizessem tanta diferença numa vida? Depois Dee e Tifty haviam concordado que fora um erro terrível – inevitável, talvez, uma força dos anos que nenhum dos dois pôde recusar, mas nada que devesse ser repetido. Os dois amavam Vor, não era? Tinham transformado o assunto numa grande piada, até mesmo apertando-se as mãos para selar o trato, como dois velhos amigos que eram, mas, claro, não era: não fora uma piada na hora nem nove meses depois; não era uma piada agora.

Nunca vou deixar que nada de mal aconteça a você, disse Tifty, não só naquela noite, mas muitas vezes, em muitas noites. Nem a você, nem às meninas, nem a Vor. Independentemente do que seja verdade, esta é a minha promessa solene, minha promessa diante de Deus. Serei o chão sob seus pés. Saiba que estou sempre presente. E Dee sabia. Caso se permitisse admitir, fora somente porque Tifty concordara em vir que a ideia do dia de hoje, de um piquenique de verão no campo, havia se concretizado.

Dee o amava? E, se amava, que tipo de amor era? Seus sentimentos por Tifty eram diferentes dos sentimentos por Vor. Vor era firme, confiável. Uma criatura de dever e resistência e um bom pai para as meninas. Sólido, enquanto Tifty era vaporoso, um homem composto tanto de boatos quanto de fatos. E não havia dúvida de que ela e Vor pertenciam um ao outro; isso nunca estivera em questão. Sozinhos no escuro, em momentos privados juntos, ele falava seu nome com tamanho desejo que era quase uma dor, como se seus sentimentos por ela fossem fortes demais para suportar. Era assim que Vor a amava. Ele a fazia sentir-se... o quê? Mais real. Como se ela, Dee Vorhees – esposa e mãe; filha de Sis e Jedediah Crukshank, partidos para Deus; cidadã de Kerrville, Texas, último oásis de luz e segurança num mundo que não conhecia nada disso –, existisse de fato.

Então por que se pegava de novo pensando em Tifty Lamont?

Mas o baralho, e esta tarde quente-quente-quente de julho, quando haviam trazido as crianças ao campo... A mente de Dee vagueara tanto que ela nem havia percebido o que Cece estava fazendo. Antes que percebesse, a mulher, a caminho da vitória, a havia manobrado para pegar a dama. Dois truques, três, e acabou. Cece anotou os pontos num bloco, animada.

– Outra?

Normalmente Dee responderia que sim, nem que fosse para ocupar as horas, mas naquele calor o jogo tinha começado a parecer um trabalho.

– Talvez Ali queira jogar.

Ali, que tinha voltado à tenda para pegar água, descartou a ideia, com a concha encostada nos lábios.

– Sem chance.

– Vamos, só duas partidas – disse Cece. – Estou com sorte.

Dee se levantou da mesa.

– É melhor ver o que as meninas estão aprontando.

Saiu do abrigo. A distância podia ver o topo dos pés de milho balançando onde os homens trabalhavam. Virou o rosto para o alto da torre, posicionando uma das mãos sobre os olhos por causa da claridade. Uma lua fantasmagórica, num branco diurno, pairava perto do sol. Bom, isso era estranho. Ela não havia notado antes. Cruk e Tifty estavam ambos no posto, Cruk com o binóculo, Tifty varrendo o campo com o fuzil. Ele a viu e deu um pequeno aceno, que a deixou sem graça; era quase como se Tifty soubesse que ela estivera pensando nele. Acenou cheia de culpa em resposta.

Um grupo de 12 crianças jogava kickball. Dash Martinez estava esperando na placa. Gunnar, que havia se tornado uma espécie de babá não oficial durante a tarde, atuava como lançador.

– Ei, Gunnar.

O garoto – na verdade era um homem aos 16 anos – olhou para ela.

– Ei, Dee. Quer jogar?

– Está quente demais para mim, obrigada. Você viu as meninas por aí?

Gunnar olhou em volta.

– Estavam aqui há um segundo. Quer que eu procure?

Dee sentiu uma preocupação súbita. Aonde elas poderiam ter ido? Achou que poderia subir à torre e pedir a Cruk que as encontrasse com o binóculo. Mas a subida da escada, assim que imaginou, pareceu um esforço demasiado. Era mais fácil achar as meninas sozinha.

– Não, obrigada. Se elas voltarem, diga que quero que saiam um pouco do sol.

– Gunnar, jogue a bola! – gritou Dash.

– Espera um segundo. – Gunnar encarou Dee. – Tenho certeza de que elas estão por perto. Estavam aqui tipo... há dois segundos.

– Tudo bem. Vou procurá-las.

O campo de flores selvagens, pensou; provavelmente era para lá que tinham ido. Sentia-se mais irritada do que preocupada. Elas não deveriam se afastar sem dizer a ninguém. Certamente era ideia de Nit. A menina estava tramando alguma coisa.

Restavam cinco minutos.

Do deque de observação, Tifty viu Dee se afastar.

– Cruk, me passe o binóculo.

Cruk o entregou. O campo de flores selvagens ficava do lado norte da torre, adjacente ao milharal. Era para lá que ela parecia estar indo. Provavelmente só queria se afastar uns minutos, pensou Tifty, para longe das crianças e das outras mulheres.

Devolveu o binóculo a Cruk. Examinou o campo com seu fuzil, depois levantou a mira telescópica para a linha das árvores.

– O negócio brilhante voltou.

– Onde?

– Bem à frente, 10 graus à direita.

Tifty espiou pela mira telescópica: uma forma retangular distante, muito reflexiva, entre as árvores.

– Que diabo é aquilo? – perguntou Cruk. – Um veículo?

– Pode ser. Tem uma estrada de serviço do outro lado.

– Nada deveria estar lá fora agora. – Cruk baixou o binóculo. Fez uma pausa. – Escute.

Tifty forçou a mente a se esvaziar. Os estalos dos grilos, a brisa movendo-se junto às orelhas, a água escorrendo pelo sistema de irrigação. Então ouviu.

– Um motor?

– É o que estou ouvindo também – disse Cruk. – Fique aí.

Ele desceu a escada. Tifty encostou o olho na mira do fuzil. Agora a imagem estava clara: era um caminhão grande, com a carroceria coberta por algum tipo de metal galvanizado.

Pegou seu walkie-talkie.

– Cruk, é um caminhão. Do outro lado das árvores. Não parece ser da Segurança Doméstica.

A linha estalou.

– Eu sei. Atenção redobrada.

Viu Cruk emergir da base da torre e ir na direção do abrigo, acenando para Gunnar trazer as crianças. Tifty varreu o campo com a mira: os homens trabalhando, as fileiras de pés de milho, as bandeiras que indicavam as casas-fortes pendendo na imobilidade da tarde. Tudo exatamente como deveria estar.

Mas não exatamente. Havia algo diferente. Seria sua visão? Levantou o rosto. Havia uma lâmina de sombra movendo-se pelo campo.

Então ouviu a sirene.

Virou-se para o sol; soube instantaneamente. Fazia muitos anos que não sentia medo, desde aquela noite na represa. Mas agora sentiu.

Um minuto.

Vorhees percebeu a alteração na iluminação primeiro como uma redução nos detalhes visuais, um súbito diminuir da claridade como um crepúsculo prematuro. Mas como estava usando óculos escuros, numa defesa contra a chuva de pólen e a claridade da tarde, sua mente não registrou de imediato essa mudança como algo digno de nota. Só quando ouviu os gritos tirou os óculos.

Uma grande forma redonda, envolta em uma penumbra reluzente, estava deslizando pelo sol.

Um eclipse.

Enquanto as sirenes tocavam, ele saiu correndo pela fileira de plantas. Todo mundo estava correndo, também, gritando: Eclipse! Eclipse! As casas-fortes, vão para as casas-fortes! Saiu correndo do milharal, praticamente trombando em Cruk e Dee.

– Onde estão as meninas?

Dee estava frenética.

– Não estou achando!

A escuridão se espalhava como tinta nanquim. Logo toda a plantação estaria coberta.

– Cruk, ponha essas pessoas nas casas. Dee, vá com ele.

– Não posso! Onde elas estão?

– Eu encontro. – Ele tirou a pistola da cintura. – Cruk, tire-a daqui!

Vorhees correu de volta para a plantação.

Com o coração martelando de adrenalina, Tifty varria o campo a partir da torre. Ainda não havia nenhum sinal, mas era apenas questão de tempo. E o caminhão, o que era? Continuava parado do outro lado das árvores que quebravam o vento. Tentou falar com Cruk pelo walkie-talkie mas não conseguiu contato. No meio de todo o caos, provavelmente o sujeito não podia ouvi-lo. Tifty poderia descer correndo para dizer a ele, mas sua melhor possibilidade de atirar seria de cima da torre.

Apertou a coronha contra o ombro. De onde eles viriam? Das árvores? De uma plantação adjacente? Tudo tinha sido varrido pela equipe de Dillon e Tifty não vira nada o dia todo. O que não significava que os virais não estivessem ali, só que não podia vê-los.

Até que, na periferia da visão, um leve movimento nos pés de milho, não mais do que um farfalhar, perto de uma das bandeiras na borda da plantação. Girou a mira e encostou o olho na lente. A escotilha da casa-forte estava aberta.

Era o único lugar onde não tinham olhado. Eles jamais verificariam as casas-fortes.

Todo mundo estava correndo, agarrando as crianças, disparando pelo campo na direção das bandeiras. Tifty saiu da base da torre a toda a velocidade.

– Não!

Cruk estava carregando duas crianças embaixo dos braços. Presh Martinez e Reese Cuomo. Dee corria ao lado dele, com Cece e Ali apenas alguns passos atrás – Cece agarrando o pequeno Louis junto ao peito. Ali com Merry e Satch.

– As casas-fortes! – gritava Cruk. – Vão para as casas-fortes!

– Eles estão nas casas-fortes!

Uma explosão de tiros irrompeu na plantação. Dee viu Tifty se ajoelhar e disparar três tiros rápidos. Virou-se quando o primeiro viral irrompeu dos pés de milho.

Pousou em cima de Ali Dodd.

Dee sentiu uma ânsia de vômito. De repente não conseguia fazer com que os pés se movessem. O viral, que havia terminado com Ali, agora cravava as mandíbulas no pescoço de Cece. A mulher estava se retorcendo, os braços e as pernas se sacudindo como um inseto caído de costas. A imagem rasgou a visão de Dee como uma explosão de luz; só conseguia ficar olhando num horror desamparado.

Cruk avançou, encostou o cano do fuzil na lateral da cabeça da criatura e disparou.

Onde estava Satch? Mas de repente o menino havia sumido. Merry estava parada no chão, gritando. Dee levantou a menininha à cintura e começou a correr.

Agora os virais estavam em toda parte. Num pânico cego as pessoas corriam para a tenda, um gesto inútil: ela não poderia oferecer nenhuma segurança. Os virais partiram para cima, despedaçando-a, enquanto o ar se enchia de gritos.

– A torre! – estava gritando Tifty. – Vão para a torre! – Mas era tarde demais, ninguém escutava. Dee pensou nas filhas, despedindo-se. Como tudo havia ficado nítido no final, tudo que desejava para as filhas era destilado pela crueldade rápida do mundo na esperança desesperada de que a morte as levasse depressa. Rezou para que não sofressem. Ou pior, para que não fossem tomadas. Isso era o pior: ser tomado.

Uma força enorme trombou nela, por trás. Dee tombou no chão, a pequena Merry voando de seus braços. De rosto na terra, levantou os olhos e viu seu irmão a seis metros de distância apontando o fuzil para ela. Atire em mim, pensou Dee. O que quer que vá acontecer, não quero isso. Uma oração da infância encontrou seus lábios e ela fechou os olhos murmurando-a rapidamente, contra a poeira.

Um tiro. Atrás dela algo caiu com um grunhido animal. Antes que sua mente conseguisse processar isso, Cruk a estava puxando, sua boca movendo-se incompreensivelmente, dizendo palavras que ela não conseguia decifrar. O fuzil dele havia sumido, tudo o que restava era a pistola, Abigail. Por que um homem daria o nome de Abigail a uma arma? Por que daria um nome, qualquer que fosse? Algo devia ter acontecido com sua cabeça, percebeu, porque ali estava ela, preocupada com a arma de Cruk, enquanto todo mundo morria. Outros pensamentos lhe vieram, coisas estranhas, coisas medonhas. Como seria a sensação de ser rasgada ao meio, como Ali Dodd. Suas filhas, no campo, e o que estava acontecendo com elas agora. Que terrível, pensou, viver um segundo a mais do que seus próprios bebês. Num mundo de coisas terríveis, certamente essa era a mais terrível de todas. Cruk a arrastava para a porta. Estava fazendo o que achava que ela queria, mas não era, de jeito nenhum – ela na verdade não conseguiria morrer suficientemente rápido –, e com um jorro de força Dee se soltou dele, correndo para a plantação e chamando as filhas.

Vorhees podia ouvir suas filhas rindo na plantação. Eram pequenas demais para ter medo, ele sabia. Tinham se esgueirado para fazer exatamente o que haviam recebido ordem de não fazer e aquilo tudo era uma espécie de jogo para elas, essa coisa engraçada com a luz. Vorhees correu pelas fileiras de pés de milho, gritando o nome delas, arfando de pânico, tentando se orientar pelas vozes. O som estava atrás, estava à frente, estava dos dois lados. Parecia vir de toda parte, até de dentro de sua cabeça.

– Nit! Siri! Cadê vocês?

Então surgiu uma mulher. Estava parada no meio da fileira. Vestia uma capa escura, como alguém de um conto de fadas, algum habitante da floresta. A cabeça era coberta por um capuz; os olhos, por óculos escuros que escondiam a parte superior do rosto. A surpresa de Vorhees foi tão completa que por um momento ele pensou que podia estar imaginando.

– Elas são suas filhas?

Quem era ela, aquela mulher do milharal?

– Onde elas estão? – ofegou ele. – Sabe onde elas estão?

Com um gesto lânguido ela tirou os óculos, revelando um rosto sensualmente liso e de uma beleza juvenil, olhos que brilhavam nas órbitas como diamantes. Ele sentiu um jorro de náusea.

– Você está cansado – disse ela.

De repente ele estava. Curtis Vorhees nunca estivera tão cansado na vida. Sua cabeça parecia uma bigorna, pesava mil quilos. Era necessário cada grama de vontade para permanecer de pé.

– Eu tenho uma filha. Uma filha muito linda.

Atrás de si, ele ouviu os últimos estalos aleatórios de tiros em pânico. O campo e o céu haviam mergulhado numa escuridão fantasmagórica. Sentiu uma ânsia de choro, mas até mesmo isso pareceu fora de seu comando. Tinha caído de joelhos, e logo iria tombar.

– Por favor – sufocou ele.

– Venham a mim, crianças lindas. Venham a mim na escuridão.

Uma força titânica o fez ficar de pé: Tifty. O rosto dele estava muito próximo. Vorhees mal podia focalizá-lo. Tifty o estava puxando pelo braço.

– Vor, venha!

– A mulher... – A língua dele estava grossa na boca.

– O que você está falando?

– Ela estava...

– Não tem ninguém! – gritou Tifty. – Precisamos chegar à torre!

Vorhees não queria; com o resto das forças, soltou-se.

– Preciso encontrá-las!

Foi a coronha do fuzil de Tifty que fez tudo parar. Um único golpe na cabeça, dado com habilidade, e a visão de Vorhees se encheu de estrelas. Então o mundo virou de cabeça para baixo enquanto Tifty o agarrava pela cintura, lançava-o ao ombro e começava a correr. Folhas grossas estavam passando, batendo em seu rosto. Vorhees gritava:

– Nit! Siri! Voltem!

Mas não tinha forças para resistir. Sua família estava morta, ele sabia: Tifty não teria vindo pegá-lo se elas ainda estivessem vivas. Mais tiros, gritos dos que morriam ao redor. As casas-fortes, disse uma voz. Eles vieram das casas-fortes. Quem sobreviveria a esse dia? E Vorhees sabia, para sua tristeza infinita, que de novo seria o sortudo.

Irromperam do milharal no terreno aberto. O abrigo estava destroçado, a lona arrancada, tudo espalhado. Corpos largados em toda parte, mas ele não viu nenhuma criança. Venham a mim, crianças lindas. Venham a mim na escuridão. E enquanto a porta da torre batia atrás deles e ele tombava no chão, finalmente caindo numa inconsciência misericordiosa, seu último pensamento foi:

Por que tinha de ser o Tifty?