SESSENTA E SEIS

A sensação foi de que havia duas cidades nos minutos seguintes: as arquibancadas, onde o caos reinava, e o campo embaixo, uma zona pós-batalha, de calma súbita. Um começo e um fim, adjacentes mas separados. Logo as duas se fundiriam, enquanto a multidão, tendo exaurido a violência do levante, absorvia o fato espantoso de sua liberdade e começava a se dispersar, indo para onde quisesse, inclusive para o campo; iriam encontrá-la um a um, descendo, movendo-se hesitantes enquanto os corpos sentiam o gosto da liberdade. Mas por um tempo os combatentes no campo foram deixados sozinhos, para fazer uma última avaliação dos vivos e dos perdidos.

Foi Alicia que Peter viu quando acordou. Estava enegrecida, machucada, ensanguentada. Seu cabelo fora queimado, com fiapos de fumaça ainda subindo.

– Peter – disse ela curvando-se sobre ele, as lágrimas escorrendo pelo rosto. – Peter.

Ele lutou para falar. Sua língua se movia pesada na boca.

– Amy?

Chorando baixinho, Alicia balançou a cabeça.

De algum modo Greer havia sobrevivido. A explosão o lançara longe. Segundo qualquer avaliação ele deveria ter morrido, no entanto o encontraram caído de costas, olhando o céu estrelado com uma expressão de espanto. Sua roupa estava em frangalhos e queimada; afora isso, não parecia ferido. Era como se a força da explosão tivesse passado não através dele, e sim ao redor, sua vida protegida por uma mão invisível. Durante um longo momento ele não falou nem se mexeu. Depois, com um gesto exploratório, levou uma das mãos ao peito, tateando com cuidado, depois ao rosto, sentindo a bochecha, a testa e o queixo.

– Ora, vejam só – disse. – O que acham?

Eustace também viveria. A princípio acreditaram que ele tinha morrido: seu rosto estava coberto de sangue. Mas o tiro havia pegado de raspão: o sangue era da orelha esquerda, arrancada como uma planta tirada do solo e substituída por um buraco franzido. Da detonação em si ele não tinha lembrança, ou pelo menos não tinha uma lembrança que pudesse juntar, além de uma cadeia de sensações isoladas: um estalo capaz de rachar o crânio e uma onda de ar quentíssimo passando acima, depois algo molhado chovendo e um gosto de fumaça e poeira. Escaparia à noite com apenas essa desfiguração adicional num rosto que já mostrava muitas cicatrizes de guerra e um zumbido permanente nos ouvidos que, na verdade, nunca sumiria, fazendo-o falar numa voz alta demais que levaria as pessoas a pensar que ele estava com raiva, quando não estava. Com o passar do tempo, depois de retornar a Kerrville e ser promovido a coronel, servindo de ligação militar com a presidência, consideraria isso menos uma inconveniência do que um acréscimo notavelmente útil à sua autoridade; ele imaginaria por que não havia pensado nisso antes.

Só Nina saíra do campo incólume. Lançada para longe pelo viral que havia matado Tifty, tinha caído fora da área da explosão. Estava movendo-se para a extremidade do campo quando a bomba explodiu e a força da concussão a jogou no ar; mas no momento anterior fora a única a testemunhar a morte dos Doze, cujos corpos foram consumidos e espalhados numa bola de luz. Todo o resto foi um borrão; de Amy, ela não viu nada.

Absolutamente nada.

Mas um deles havia tombado.

Encontraram Tifty com a arma ainda na mão. Estava na lama, partido e cortado, os olhos cheios de sangue. Seu braço direito havia sumido, mas isso era o mínimo. Enquanto se reuniam ao redor, Tifty se esforçou para falar através da respiração entrecortada. Por fim seus lábios formaram as palavras:

– Onde ela está?

Somente Greer pareceu entender o que ele perguntava. Virou-se para Nina.

– É você que ele quer.

Talvez ela entendesse a natureza do pedido, talvez não, era impossível dizer. Nina se agachou ao lado dele, no chão. Com um esforço trêmulo, Tifty levantou a mão e tocou o rosto dela com as pontas dos dedos, um gesto gentilíssimo.

– Nitia – sussurrou ele. – Minha Nitia.

– Sou Nina.

– Não. Você é Nitia. Minha Nitia. – E deu um sorriso lacrimoso. – Você se parece... tanto com ela!

– Com quem?

A vida estava sumindo dos olhos dele.

– Eu disse a ela... – Sua respiração ficou embargada. Ele havia começado a sufocar no sangue que jorrava da boca. – Eu disse a ela... que manteria você em segurança. – Então a luz nos olhos dele sumiu e ele se foi.

Ninguém falou. Um deles havia partido para a escuridão.

– Não entendo – disse Alicia. E olhou para os outros. – Por que ele a chamou assim?

Foi Greer quem respondeu.

– Porque é o nome dela. – Nina levantou o olhar do corpo. – Você não sabia, sabia? Não tinha como saber.

Ela balançou a cabeça.

– Tifty era seu pai.

No devido tempo haveria uma contagem completa. Uma picape entraria a toda a velocidade no campo e três pessoas sairiam dela. Não: quatro. Michael, Hollis e Sara, segurando uma menininha no colo.

Mas naquele momento ficaram parados em silêncio na presença do amigo, cujo centro da vida estava desnudo. O grande gângster Tifty Lamont, capitão dos Expedicionários. Iriam enterrá-lo onde ele havia caído, no campo. Porque a gente nunca deixava o campo, assim como nunca deixava a plantação, explicou Greer; era o que Tifty sempre dizia. A gente podia pensar que era capaz disso, mas não. Depois de ter passado por ali, fazia parte de você para sempre.

Ninguém jamais saía.