Tóquio, Japão
Outubro de 1953
Ficou a flutuar um dia inteiro. Foi um tempo intermédio.
Era diferente de um sonho. Não via nada, mas parecia-lhe diferente da sensação de cegueira. Não sentia fome ou dor, nem medo ou tristeza, nem havia anjos ou demónios para a cumprimentar.
Havia apenas o branco.
E depois, pouco a pouco, houve o som.
No início, estava muito longe, como se alguém gritasse através de um vazio imenso. Ela agarrou-se a esse som. Envolveu-se nele e deixou-o puxá-la para cima, atravessando o branco. Foi ficando cada vez mais alto até conseguir ouvi-lo tão nitidamente como se alguém tivesse os lábios encostados ao seu ouvido.
Foi então que viu uma minúscula cintilação de cor.
Sentiu-se a flutuar, desde as profundezas do nada até praticamente à superfície, mesmo abaixo das ondas.
Quando, por fim, conseguiu arfar, aproveitou.
Abriu os olhos e, ali, mesmo à sua frente, estava o sol.
Ajoelhado ao lado do colchão de palha dela, com a cabeça escura curvada e as mãos estendidas sobre o coração dela.
— Oniichan.
A cabeça dele ergueu-se subitamente. Os seus olhos cinzentos abriram-se muito quando a encararam. Ela reparou nas olheiras sob os seus olhos, na camada gordurosa na sua pele e perguntou-se há quanto tempo ele estaria ali.
— Noriko — disse ele, numa voz roufenha. — Meu Deus. Meu Deus, finalmente.
Ela forçou-se a endireitar-se, apoiada nos cotovelos, ignorando as tonturas que o movimento lhe provocara.
— És mesmo tu?
Akira inclinou-se para a frente e beijou-a na face, mesmo numa das covinhas profundas das suas bochechas. O gesto era estrangeiro, como tantos dos seus maneirismos absorvidos no tempo que passara na Europa quando era criança. Mas, para Nori, parecia estrangeiro por outra razão.
Ele nunca tinha sido tão afetuoso com ela.
— Passaste um dia inteiro entre a vigília e a perda de consciência — sussurrou ele. — A tua perna… conseguimos estancar a hemorragia, mas depois ficaste com uma febre terrível. Pensei… Por um momento, pensei…
A perna. Esquecera-se completamente da perna. Deslizou a mão por baixo do cobertor e... sentiu. A perna esquerda estava embrulhada em várias ligaduras.
— Tivemos de a suturar — disse-lhe Akira. Parecia enjoado, embora fosse difícil de perceber naquele quarto escuro. — Podes ficar a coxear. Não temos a certeza. Mas vais ficar com uma cicatriz.
Ela limitou-se a olhar para ele. Mal se preocupava com a perna, com coxear ou ter uma cicatriz; ela só queria olhar para ele.
Akira sorriu como se já o soubesse.
— Encontrei-te — disse ele, com um sentido de satisfação tranquilo, mas profundo. — Demorei dois anos, mas encontrei-te e esbocei um plano para te recuperar.
Ela anuiu com a cabeça. Parecia-lhe impossível ainda estar viva. Não conseguia processar que estava ali, bem, e reunida com o irmão que tanto se esforçara por esquecer.
Nori não queria sentir nada, no caso de tudo aquilo ser apenas a última piada do Diabo antes de a atirar para o Inferno.
Akira prosseguiu.
— Assim que me apercebi de que estavas… estavas num daqueles sítios, mandei um dos velhos criados do meu pai fazer-se passar por comprador para te encontrar.
O coração de Nori começou a bater mais depressa. Doía, quase como se estivesse destreinado.
— Mandei providenciar para que fosses entregue aqui. Esta casa era do meu tio, mas agora que ele morreu faz parte da minha herança. Eu sabia que ia conseguir trazer-te para aqui. A avó vai perceber o que aconteceu muito em breve, mas eu vou proteger-te. Juro-te.
Nori obrigou-se a sentar-se. Atirou-se para a frente de modo a ficar nos braços dele, com a cabeça aninhada na base do pescoço do irmão.
— Desculpa — gemeu ela. As lágrimas começaram a cair, pesadas e livres. Todo o seu corpo doía, mas ela não chorava por causa da dor. Como dois barcos a navegar os mares noturnos, quase se haviam desencontrado. Ela quase o tinha deixado ir. — Eu não sabia o que mais havia de fazer.
Akira deu uma palmadinha no topo da cabeça dela.
— Chiu. A culpa é minha. Mandaram-te para aquele lugar horrível por minha causa. Não consegui impedi-la. Eu tentei… Eu tentei tudo, mas eles ameaçaram magoar-te se eu não… se não parasse de me intrometer e cumprisse o meu dever para com a família. — A sua voz encheu-se de um rancor venenoso. — Disseram-me que estavas num lugar seguro, mas que nunca mais te podia voltar a ver. Disseram-me para te esquecer. Para continuar os meus estudos e a minha música como se nada tivesse acontecido. A avó disse que me compraria o que eu quisesse e o avô disse-me que me ia encontrar uma princesa para me casar.
Nori levantou o rosto e chegou-se para trás para poder olhá-lo nos olhos. Ele tinha crescido. O seu rosto perdera a pouca gordura de bebé e as suas maçãs do rosto estavam bem definidas. Mesmo estando ele ajoelhado, ela conseguia perceber que estava mais alto. E também havia outra coisa. O brilho havia-lhe sido tirado. Ele já não era um rapaz cheio de sorte.
Desde o nascimento, Akira fora divinamente favorecido. Era o que a avó sempre lhe dissera e Nori tinha vindo ela própria a acreditar nisso. Flutuara através da vida sem esforço, assegurando um acolhimento caloroso em todos os lugares por onde passava. Raramente tinha conhecido a desilusão, mal conhecia a dor, nunca soube o que era ser ignorado. Por isso, ele tinha a confiança, ou, melhor, a arrogância, de alguém que sabia que nada lhe poderia correr mal.
Mas agora essa confiança fora gravemente abalada. A sua certeza desaparecera e o que quer que tivesse restado da sua inocência desaparecera com ela.
Quando se apercebeu disso, Nori teve de cerrar o punho e mordê-lo para conter um grito.
— Devias ter-me esquecido como eles pediram — sussurrou ela em soluços. — Eu arruinei-te.
Akira puxou com força um dos seus caracóis.
— Chiu.
— Mas…
— Eu disse para te calares.
Ela curvou a cabeça contra a sua vontade. Akira deslocou o peso e olhou por cima do ombro.
— Devia ir buscar o médico. Estamos a meio da noite, mas pedi-lhe para ficar num dos quartos de hóspedes.
Ela não queria que ele saísse. Agarrou-lhe nas mangas.
— Eles não nos vão deixar ir avante com isto — disse ela, enquanto o seu cérebro nebuloso começava lentamente a encaixar as peças. — Isto é declarar guerra aos nossos próprios avós. Eles hão de vir atrás de nós. — Akira anuiu com a cabeça. Claro, ele sabia disso. Assim que começara, ele sabia que não haveria volta a dar. — Não vamos estar seguros — respirou Nori. Conseguia sentir o peito a apertar. — Humilhámo-los, manchámos-lhes a honra e eles não vão ignorar isso. Nunca.
Akira anuiu novamente. O seu rosto estava sério, mas não tentou acalmá-la com mentiras. Quer ela o quisesse ou não, ele sempre lhe disse a verdade.
Nori ficou perfeitamente imóvel enquanto a realidade da situação se tornava evidente. Confiná-la não tinha funcionado. Bani-la não tinha funcionado.
Inspirou um pouco de ar.
— Eles vão matar-me.
Akira encostou a testa à dela e ela pôde sentir a determinação a irradiar dele.
— Vão tentar.
Akira nunca saiu do seu lado por mais de alguns instantes. Quando o médico foi vê-la, o irmão retirou-se para um canto, embora com o olhar fixo neles durante todo o tempo.
Depois de o médico a deixar, prescrevendo-lhe alguns comprimidos para as dores e instruções estritas para evitar colocar tensão indevida na perna, apareceu uma criada com alguma comida. Pouco depois, apareceu outra criada com alguma água para Nori poder lavar-se e uma muda de roupa. Quando a mulher saiu, Akira virou-se para o canto para que Nori tentasse livrar-se do cheiro a sangue. Escovou o seu cabelo o melhor que conseguiu e estremeceu quando puxou umas cuecas de algodão pelas pernas para as vestir. Não olhou para as ligaduras. Simulando uma tosse, fez saber a Akira que ele podia virar-se outra vez.
Nori não queria comer, mas a expressão de Akira deixou claro que ela não tinha escolha.
Ela remexeu no arroz com os pauzinhos.
— O que é que vai acontecer agora?
Era quase de manhã. Nori conseguia ouvir o mundo começar a acordar.
Akira esfregou os olhos.
— Vão encontrar-nos daqui a pouco. Têm espiões por todo o lado, são pouco melhores do que criminosos de renome.
Nori empurrou o arroz para o lado.
— Não, tabete. Come.
— Será que devíamos deixar o Japão? — perguntou ela.
Akira encolheu os ombros.
— Isso é impossível. Eles vão estar de olho nos portos. E não há qualquer registo em teu nome, não tens documentos para passar a fronteira. Legalmente, não existes.
Nori mordeu o lábio.
— Podias ir sem mim.
O rosto de Akira ficou amargo.
— Se vais ser estúpida, faz-me o favor de te calares. Já tenho muito em que pensar.
Ela enrugou o nariz. Talvez o irmão não tivesse mudado assim tanto.
— Já não sou uma criança. Conseguia passar sem ti.
Ele sacudiu o pulso.
— Nori, não passei por tudo isto para te encontrar, para que viesses falar-me em ir-me embora. Custaste-me uma pequena fortuna.
Ela fungou.
— Foi demasiado.
Ele olhou para ela e Nori pôde ver as sombras escuras debaixo dos seus olhos.
— Vou ter de encontrar uma maneira de lidar com a nossa avó. Ela é uma cabra velha e vil, mas não é estúpida. Ela sabe que tem de me conquistar se quiser que o seu precioso nome continue a viver.
— Não quero que lhe vendas a tua alma por minha causa — insurgiu-se Nori. Ela tentou levantar-se, mas a dor na perna ainda era demasiada. — Não está certo.
Akira suspirou como que para dizer que estava desapontado porque, depois de 13 anos e uma vida suficientemente dura para a quebrar, ela continuava a ser uma tola.
— É a única forma que temos de seguir em frente.
Nori puxou pela cabeça para tentar contestar.
— Não podemos ficar aqui?
— Não tenho dúvidas de que os espiões deles já sabem que estamos aqui. Ou se não sabem, muito em breve hão de saber. Só há aqui uma pessoa que me é leal a mim. Estes não são os meus criados, eu não cresci com eles. Só posso confiar neles na medida em que lhes posso pagar, e ela pode pagar-lhes mais.
— Bem, então não podemos ir para outro lugar? Não podemos viver no campo e escondidos?
Akira olhou para ela sem expressão no rosto.
— E fazer o quê? Criar porcos como camponeses? Cultivar arroz?
Ela deixou sair um grito frustrado.
— Não a podes simplesmente deixar ganhar!
Akira semicerrou os olhos para a irmã.
— Ganhar significa permanecer vivo. Permanecer num lugar seguro e quente, onde estamos abrigados e alimentados. É isso que é ganhar. A nossa vitória vai ser viver mais do que ela. Vamos dançar a sua música agora, mas ela está velha e, daqui a pouco, dentro de cinco a dez anos, vai estar morta e vamos poder dançar com qualquer música que tocarmos.
— Mas…
— Já estive a pensar nisso. Achas que não quero ir à Europa? Há anos que quero ir para lá, estudar música. Tinha planeado ir daqui a alguns anos de qualquer forma, esperava… — Ele desviou o olhar, e ela viu que ele tinha alimentado as suas próprias esperanças, esperanças que haviam sido frustradas pela realidade de estar sobrecarregado com ela. Afastou-as com um encolher de ombros. — Seja como for, esta é a única maneira. Sem a minha herança, não temos nada.
Nori curvou a cabeça perante aquela lógica implacável.
— Eu odeio-a.
Akira aproximou-se e sentou-se ao lado dela, enrolando um braço comprido à volta dos seus frágeis ombros.
— Eu sei. Não tenho outra opção — disse ele, cansado. — Desculpa. Não consigo manter-te a salvo dela se não lhe oferecer alguma coisa. Juro-te que nunca mais voltamos a Quioto enquanto ela viver. Mas… eu não tenho outra opção.
Nori cerrou os punhos. Odiava aquela cama. Odiava aquele quarto. Odiava sentir-se impotente, e o peso disso era excruciante. Ela não podia fazer nada. Mais uma vez.
— O que é que lhe vais dar?
Havia apenas uma resposta. Só havia uma coisa que valia mais do que ouro para Yuko e Kohei Kamiza. Apenas uma coisa que valia mais do que a desfeita ao seu orgulho, mais do que o seu ódio ardente pela neta bastarda.
Akira fechou os olhos.
— Eu — disse ele, simplesmente.
Nori sentiu uma forte vontade de vomitar.
— Estás a fazer um acordo com o diabo.
— Na verdade — disse Akira, com ironia —, o Diabo era capaz de me oferecer melhores condições.
Nori soltou um suspiro violento e estendeu os braços para ele. Sem palavras, ele ergueu-a, pegando-lhe como se ela não pesasse nada. Akira levantou-se e a irmã deixou as pernas dela balançar, inutilmente, agarrando-se a ele como se morresse se ele a soltasse.
— Tinha mesmo esperança de que já não chorasses com esta idade.
Ela tentou rir-se, mas tudo o que conseguiu foi produzir outro soluço.
— Não posso voltar a perder-te.
Akira corou, ficando com um tom rosáceo nas faces pálidas. Mesmo agora, sentia-se desconfortável perante profundas demonstrações de emoção ou proclamações de lealdade. Esse não era simplesmente o estilo dele.
— Eu levo-te lá fora para que te possas sentar ao sol. Por isso, para de chorar.
Nori procurou a sua determinação, enterrada algures no fundo da sua fúria impotente e do seu medo. Era muito mais fácil para ela encontrar a coragem para morrer do que encontrar a coragem para viver sob a sombra vingativa da sua avó. Ela estendia-se pelo Japão como um véu de luto, escuro e brilhante. Algures naquele país, a sua mãe também se encontrava escondida, segura de que tinha sacrificado os seus filhos pela liberdade daquele nome venenoso. Miyuki dormia num quarto frio sem comida suficiente. Kiyomi aceitava a destruição da sua alma. E agora Akira preparava-se para travar uma batalha por ela.
Nori sabia, sem qualquer sombra de dúvida, que estava amaldiçoada, como a sua avó sempre lhe tinha dito: uma bastarda amaldiçoada, nascida sob uma estrela odiosa.