CAPÍTULO DOZE
 
A Única Coisa Imortal

Tóquio, Japão

Dezembro de 1953

 

Passaram-se várias semanas até que ela conseguisse falar normalmente outra vez. Nori tricotou um cachecol para esconder as equimoses inestéticas no pescoço e no peito, mas não havia nada a fazer em relação à rutura dos vasos sanguíneos nos olhos. Ficava tonta se se levantasse demasiado depressa e sentia uma dor lancinante no lado esquerdo da cabeça. Tentava esconder a sua dor, mas nada escapava ao olhar de Akira.

Ele mal conseguia olhar para ela. Embora fosse ao seu quarto todas as manhãs para a ver, arranjava sempre desculpas para se afastar dela durante o resto do dia. Nori aceitava isso com a maior elegância que conseguia.

Quase conseguira matar-se duas vezes no espaço de um mês. Ela supunha que ele tivesse o direito de estar amargo.

Akira elaborou uma lista de criados para dispensar. Sem a mesada, teriam de cortar nas despesas se quisessem fazer durar a modesta herança de Akira durante os dois anos seguintes. Foi um dia difícil aquele em que mandou embora meia dúzia de homens e mulheres, incluindo o cozinheiro.

— Eu sei cozinhar — declarara Akira pomposamente.

Ele nunca tinha tentado sequer ferver água, como era evidente. Nori assumiu o dever de cozinhar as refeições deles sem uma palavra.

Foi autorizada a ir ao mercado, mas apenas se Ayame fosse com ela. Ela corava ao sentir olhos cravados nela, mas nunca ninguém foi indelicado. Regateava o peixe e enchia o saco de pano com fruta da época. Tinha convencido Akira a arranjar-lhe alguns livros de receitas e gostava de passar horas na cozinha, obcecada com o equilíbrio perfeito das especiarias ou apenas com a textura certa da cobertura dos bolos.

Cozinhar, como veio a descobrir, acalmava-lhe a mente. Nori gostava muito de o fazer.

Akira anunciara os seus planos para completar o último ano de escola no Ano Novo, na sua antiga escola em Tóquio. A escola havia tido o patrocínio do seu falecido pai e permitia-lhe quase tudo. Além disso, todos sabiam que Akira era um tensai: um génio. Ninguém se queria intrometer no seu caminho.

Por ora, Akira ocupava-se da sua música, passando horas a dedicar-se a peças novas no seu quarto. Embora ele se recusasse a deixá-la entrar, Nori sentava-se do lado de fora da porta para o ouvir tocar.

Ela tinha a sensação de que ele sabia que ela ficava ali.

Nori esperou o máximo de tempo que pôde. Mas, na manhã da véspera de Natal, bateu à porta de Akira.

— Ayame-san? — chamou ele.

— Sou eu.

Ela quase conseguiu ouvi-lo a revirar os olhos. Depois, após um breve instante:

— Está bem.

Ela entrou. Havia música por todo o lado, ele tinha literalmente forrado as paredes com páginas arrancadas de partituras. Tinha escrito em todas elas com a sua letra elegante e arredondada. Os seus olhos foram atraídos por uma partitura em branco, com apenas algumas notas escritas. Mas as notas estavam escritas pela própria mão de Akira.

— Estás a compor alguma coisa? — perguntou ela.

Akira corou.

— Não é nada. Ainda está no começo.

Ela sorriu para ele.

Otanjoubi omedetou gozaimasu, Nii-san. Feliz aniversário.

Ele fungou.

— Estava com esperança de que te tivesses esquecido.

— Eu sei que não gostas de aniversários.

— Nada mesmo.

Nori remexeu os pés.

— Não te vou incomodar muito. Tenho um presente para ti.

Akira recostou-se nas almofadas.

— Eu disse-te para não me dares nada.

Ela tirou o embrulho de dentro da sua comprida manga com o formato de um sino.

— Eu fiz isto.

Nori entregou-lhe o embrulho e Akira inspecionou-o, naquela forma enfurecida com que ele inspecionava tudo, como se já estivesse a preparar-se para ficar desapontado.

Percebendo que a irmã não se ia embora até que ele o abrisse, suspirou e retirou o papel de embrulho.

No interior havia um lenço de seda marfim, com pequenas claves de sol bordadas nos cantos em fio dourado. No canto inferior direito ela tinha bordado em kanji o nome do irmão.

Akira olhou para ela.

— Quantas tentativas precisaste até conseguires chegar a isto?

Ela escondeu as mãos, que estavam cobertas de pequenas picadas de agulha.

— Não muitas.

Akira sorriu-lhe.

— Uma dúzia?

Ela desviou o olhar.

— Um pouco mais, na verdade.

Ele riu-se.

— Bem, eu disse-te para não te dares ao trabalho.

Ela mordiscou o interior do lábio.

— Eu sei.

Ele apontou para a partitura que tinha ao colo.

— Bem, como podes ver, estou ocupado.

— É o teu aniversário — protestou ela. — Devíamos celebrar.

Akira encolheu os ombros.

— As pessoas nascem, as pessoas morrem. O que há para celebrar, Nori?

Ela ficou, pela enésima vez, surpreendida com o cinismo dele.

— A vida?

Ele encolheu os ombros como se também não houvesse muito para celebrar relativamente a isso.

— Tenho trabalho a fazer.

Nori hesitou. Era a deixa para sair da divisão.

— Acho que estás zangado comigo — aventurou-se ela. — Estás?

Akira fez um estalido com a língua para desconsiderar a questão.

— Não.

— Se é por causa do que aconteceu com o avô…

— A culpa não foi tua — disse ele de imediato. — A culpa foi minha. Nunca devias ter estado naquela sala. Eu sabia que a tua presença o iria inflamar e fazê-lo perder a razão. Foi por isso que planeei o encontro tal como o fiz.

— Pois. E eu insisti em estar presente — disse ela, de modo mal-humorado. — Provoquei-o. A culpa foi minha.

— Eu sabia que não irias conseguir conter-te — retorquiu Akira. — Eu devia ter tido melhor discernimento. Mas dei ouvidos à tua infantilidade em vez de ouvir o meu próprio bom senso. Não voltarei a cometer esse erro.

Ela deu um passo em frente.

— Oniichan…

Akira levantou uma mão para impedir que ela se aproximasse.

— De agora em diante, espero que faças o que eu te disser. Não vai haver mais negociações.

— Mas isso é…

— Não vou discutir contigo. Faz apenas o que te mandam.

Ela olhou para ele, e o silêncio do irmão perante a angústia dela disse tudo o que tinha de ser dito.

— Feliz aniversário — murmurou Nori mais uma vez, antes de sair.

 

 

Nori tentou falar com o irmão no dia seguinte, mas ele passou por ela sem dizer uma palavra. Nori sentia um vento frio a soprar quando ele passava. Ela não insistiu e, no mês seguinte, viu-o muito pouco. Em breve, Akira voltaria à escola para o seu último ano. Embora ela não ansiasse por ele estar ausente durante o dia, era melhor do que estar a ignorá-la ativamente.

Aos 18 anos, ele era apenas parcialmente adulto. Só aos 20 é que seria absolutamente maior de idade. Confortava-se com a ideia de que seriam necessários mais alguns anos até que ele regressasse a Quioto. Mas ela sabia que ele nunca se contentaria em sentar-se à lareira a tricotar, como ela fazia. Ele era ambicioso e irrequieto e, mais cedo ou mais tarde, as marés levá-lo-iam.

Ela encontrou coisas para fazer, como sempre acontecia. De manhã, ajudava Ayame a tratar da roupa. Lavavam à mão as sedas delicadas em grandes bacias cheias de água com sabão perfumada com pétalas de rosa. Depois, penduravam-nas na corda e observavam-nas a baloiçar na brisa. Não falavam muito uma com a outra. Mas Nori não achava que Ayame não gostasse dela. Portanto, isso já era alguma coisa.

Passava as tardes a ler. Aquela casa tinha uma grande biblioteca, recheada de todo o tipo de livros. Ela pediu a Ayame para escolher alguns que as raparigas da sua idade pudessem ler na escola. Parecia, pelo menos por enquanto, que a questão dos seus estudos tinha sido abandonada. Era provável que, após o incidente na sala de jantar, Akira tivesse decidido que era melhor não insistir no assunto. A sua existência não era o segredo bem guardado que em tempos fora, mas também não o ostentavam. Ele tinha finalmente conseguido os documentos dela através do mercado negro, não dos tribunais, mas tinha-lhe assegurado que isso seria suficiente, caso viessem a revelar-se necessários.

Os finais do dia eram reservados à música. Por vezes, os poucos criados que restavam reuniam-se e ouviam-na a tocar. Depois disso, havia um silêncio de contentamento que envolvia a sala como um cobertor quente.

As noites eram o pior. Fazia os possíveis para não dormir, como se fosse uma praga mortal. Andava pela casa sem rumo, tentando evitar que os seus olhos se fechassem.

Os pesadelos que a atormentavam quando era pequena haviam regressado. Mas tinham crescido, tal como ela tinha crescido. E eram maiores do que ela era agora. Não conseguia combatê-los. Acordava a arfar por ar, certa de que havia mãos à volta do seu pescoço. Depois, chorava tanto até ficar com vómitos.

Naquele dia, estava determinada a permanecer acordada.

— Nada de dormir — murmurou, beliscando a pele fria no interior do seu cotovelo. — Nada de dormir.

Era quase de manhã. O sol começava a espreitar por cima das nuvens, lançando uma tonalidade de cor rubra sobre as copas das árvores. Do seu poleiro no carvalho, Nori conseguia vê-lo perfeitamente. O dia estava frio, mas ela mal o sentia. Esfregou a face contra a casca rugosa da árvore. Tinham passado dois dias desde a última vez que dormira. Sentiu-se a perder o controlo do seu corpo e dos seus pensamentos, mas não tinha outra opção. Tinha recorrido a café, por muito mau que fosse o sabor, mas não ajudara muito.

Subiu mais um ramo, baloiçando o corpo para aligeirar o peso. A sua perna começou a latejar e Nori estremeceu, mas, no fundo, estava grata pela dor.

Tinha aprendido a esculpir um lugar dentro de si mesma, algures entre o sono e a vigília. Podia ficar ali a flutuar, por vezes durante horas, num plano branco onde nada lhe tocava.

Demorou alguns minutos a perceber que Akira estava a chamá-la. Animou-se de imediato, espreitando por entre as folhas para lhe sorrir.

— Oniichan. Bom dia.

Ele não lhe devolveu o sorriso. O seu olhar era de desaprovação. Ainda tinha vestido o seu pijama de seda vermelha e o cabelo parecia estar a precisar desesperadamente de uma lavagem.

— Fui ao teu quarto e não te encontrei.

— Prefiro estar cá fora.

Ele franziu-lhe o sobrolho.

— Está frio. Devias vestir um casaco se queres estar cá fora. E desde quando é que sobes tão alto?

Ela sentiu o estômago a revirar-se. Agora tinha a certeza de que não queria descer.

— Eu consigo.

— Não consegues com essa perna assim. Quero que desças.

Nori fez beicinho.

— Eu estou bem.

Ela viu o rápido lampejo de irritação a passar-lhe pelo rosto.

— Nori.

Ela desceu sem mais uma palavra, aterrando de pé com um baque forte.

— Porque é que estavas à minha procura, afinal? — perguntou, irritada. — Estás trancado no teu quarto há dias.

— Queria ver se gostavas de ter uma lição de violino — ripostou ele. — A Ayame-san disse-me que tens praticado todos os dias. Pensei que seria bom passarmos algum tempo juntos, como fazíamos antes, em Quioto.

Nori estava demasiado cansada para esconder a sua petulância.

— Nada é como era antes.

Akira parecia querer gritar, mas pensou melhor e não o fez. Estendeu o braço para lhe acariciar a face com a palma da mão.

— A tua cara está toda arranhada. Estás a sangrar.

A irmã encolheu os ombros.

— Não me dói.

Ele baixou os olhos.

— Estás sempre ferida — disse ele, suavemente. — Consigo vê-lo. E não posso fazer nada.

De imediato, ela sentiu aquele puxão, aquele que sentia desde a primeira vez que o vira. Aproximou-se dele e encostou o rosto ao seu peito.

— A culpa não é tua. A culpa não é tua, Oniichan.

Ele suspirou como se não acreditasse nela.

— Tenho de te dizer que não podes ir à escola. Eu sei que prometi. Tenho muita pena. Fiz algumas averiguações, mas não é seguro.

Ela aceitou esta última desilusão com um ligeiro aceno de cabeça.

— Mas vou ter um tutor?

Akira soltou um sorriso tolo.

— Na verdade, eu próprio estava a planear fazê-lo à noite. Se me permitires.

Era uma espada de dois gumes. Por um lado, qualquer tempo que ela passasse com Akira era uma bênção. Por outro lado, ele era notoriamente impaciente. Ela conseguia ver um futuro em que levaria com livros na cabeça.

Nori soltou uma gargalhada.

— E o que é que me vais ensinar?

Ela estava à espera de que ele sorrisse, mas a expressão do seu rosto era séria.

— Questões práticas. Como lidar com o dinheiro, como ler um mapa. Inglês, pois essa será certamente a língua do mundo dentro de alguns anos.

Nori hesitou.

— Pensei que podíamos ler mais poesia…

— Também podemos ler. Mas é importante aprenderes estas coisas. Não te preocupes com isso agora. O que queres fazer hoje?

Ela sentiu um arrepio na coluna. Akira estava a esboçar um sorriso forçado.

— Porque é que estás a ser simpático comigo?

Ele resfolegou.

— Será que preciso de uma razão?

— És sempre simpático quando algo mau está prestes a acontecer — acusou ela. — Itsumo. Todas as vezes. O que é que me vais dizer agora? Morreu alguém?

Akira revirou os olhos.

— Diz o nome de uma pessoa que qualquer um de nós conheça cuja morte possa ser tudo menos boa.

— Então, o quê?

Dias sem dormir tinham-na tornado vulnerável e ela já sentia as lágrimas que ameaçavam cair. As suas emoções eram como um cabo descarnado prestes a entrar em curto-circuito.

Akira remexeu os pés.

— Tenho de me ausentar durante algum tempo.

Ela cravou as unhas nas palmas das mãos.

— O quê? Porquê?

— Fui convidado para ir tocar em Paris. Num concurso.

Nori ficou indignada.

— Por quem?

— Não importa por quem.

— Então, não tens de te ir embora. Não estás a ser arrastado para uma guerra. Vais-te embora por tua livre vontade.

Akira encolheu os ombros.

— Vais ficar bem. A Ayame-san vai cuidar de ti.

— Eu não preciso que ela cuide de mim. Não devias ir embora de todo.

Ele fitou-a com desaprovação.

— Eu não jurei passar cada segundo ao teu lado. Tenho os meus próprios desejos. A minha própria vida. Tu não és o centro do universo, Nori.

Ela sentiu a sua fúria a aumentar.

— Então era só isso? Agora que estou a salvo, agora que podes ter a certeza de que não vou ser violada ou assassinada, pelo menos esta semana, vais para a Europa? Estás farto de mim, agora?

A cor subiu às faces de Akira e ele recuou dois passos.

— Estás a comportar-te como uma criança. Não vou partir para sempre. Eu volto.

Não, não volta, sussurrou a voz escura dentro da sua mente.

O coração caiu-lhe aos pés, mas ela sabia que não conseguiria mudar a opinião dele. E não lhe dava qualquer alegria vê-lo tão infeliz, tão debilitado pelo peso das suas responsabilidades.

— Está bem — conseguiu ela dizer. — Está bem, vai lá. Faz uma boa viagem. Certifica-te de que ganhas.

Akira não parecia tranquilizado pela sua submissão.

— Vais ficar bem.

— Tenho a certeza de que sim — mentiu ela. As suas mãos começaram a tremer e ela escondeu-as.

Akira parecia duvidoso.

— É por pouco tempo.

Ele não consegue respirar. Ele já não consegue respirar aqui. Por minha causa.

Não havia nenhuma razão para que ambos tivessem de se afogar. Ela não o ia arrastar para baixo com ela. A sua miséria florescia no isolamento, sempre fora assim. Não queria companhia. Sobretudo, não queria a companhia de Akira.

Nori beliscou a própria pele na palma da mão para se proteger do que estava prestes a dizer.

— Eu quero que vás.

Akira parecia querer desesperadamente acreditar nela, mas não acreditou.

— A sério?

— Sim — continuou ela. As suas pernas começaram agora a tremer. — Penso que será bom para ti sair do Japão por algum tempo. Certifica-te apenas de que me trazes um vestido novo.

Finalmente, ele cedeu. As linhas desvaneceram-se do seu rosto e ele parecia, outra vez, um rapaz feliz. Nori fez questão de gravar essa imagem na sua mente. Iria precisar dela.

— Trago-te o que quiseres — prometeu. — Tudo o que quiseres.

Nori curvou a cabeça.

— Basta que voltes.

Akira acenou com a cabeça e entrou em casa. Nori subiu novamente à árvore e ficou lá até o sol ter desaparecido por detrás das nuvens.

 

 

Na noite em que Akira partiu, ela teve o primeiro sonho. O mais antigo de que se lembrava. E era sempre o mesmo.

Ela estava a perseguir o carro azul. A mãe estava inclinada para fora da janela, sem rosto, com o cabelo escuro a ondular à volta da cabeça.

Nori.

Ela corria. O asfalto era quente e os seus pés estavam descalços. Mas ela não parava de correr atrás daquele carro até ficar com bolhas nos pés.

Nori.

Estou aqui, Okaasan! Estou aqui!

Mas o carro nunca abrandava. Por isso, Nori corria cada vez mais depressa, o mais rápido que conseguia, até ficar a arfar por ar como um peixe moribundo.

Okaasan, estou aqui!

Ela nunca conseguiria apanhar o carro. Quando se aproximava, tão perto que os dedos tocavam no para-choques, o carro acelerava até desaparecer do seu campo de visão. O sonho nunca mudava, nem um bocadinho.

Menina tonta, diria a voz da sua avó. Já te esqueceste de quem és?

Nori acordou na sua cama. Ayame estava sentada num canto do quarto.

Sem uma palavra, levantou-se e deu a Nori um pano húmido.

— Quer algo para beber?

Nori abanou a cabeça. Ela já sabia que não valia a pena tentar falar. Olharam-se nos olhos e, naquele olhar, estava a única pergunta que valia a pena fazer.

Ayame curvou a cabeça.

— Está a dormir há horas.

Nori esperou.

— O seu irmão foi-se embora.

Nori anuiu. E esperou.

Ayame hesitou.

— Quando se levantar… se quiser… podemos falar sobre a sua mãe.

Nori encontrou uma vozinha minúscula.

Hai.

Ayame hesitou.

— Ele há de voltar, sabe disso, não sabe?

Contra tudo, contra a dor incómoda no seu peito, Nori sorriu. Fora educada para ser medrosa. Mas se conseguisse ver por baixo do medo, como se estivesse a olhar para o cano de uma arma carregada, conseguiria vislumbrar algo que lhe era sobretudo estranho: a esperança. Esperança num futuro que não fosse imutável, ditado pelas circunstâncias do seu nascimento. Akira estava em Paris, a aproveitar o seu talento e ambição, e não em Quioto, a ler tomos antigos com a avó.

E ela… estava viva. Milagrosamente, inacreditavelmente viva.

— Eu sei.

Estás a ver, Okaasan, pensou ela. Tens duas crianças desobedientes. E, se não cumprirmos a tua vontade, talvez consigamos ser felizes.