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Homicídio

Art. 121

Sujeito ativo

Qualquer pessoa (ver Parte Geral, capítulo XII, item 3.1).

Sujeito passivo

Qualquer pessoa, com qualquer condição de vida, saúde, posição social, raça, estado civil, idade, convicção filosófica, política ou religiosa ou orientação sexual (ver Parte Geral, capítulo XII, item 3.2).

Objeto jurídico

A vida humana (ver Parte Geral, capítulo XII, item 3.3, “b”).

Objeto material

A pessoa que sofreu a agressão (ver Parte Geral, capítulo XII, item 3.3, “a”).

Elementos objetivos do tipo

Matar (eliminar a vida) e alguém (pessoa humana). Conferir o capítulo XIII, item 2.1, da Parte Geral. Lembremos que “a história do homicídio é, no fundo, a mesma história do direito penal. Com efeito, em todos os tempos e civilizações e em distintas legislações, a vida do homem foi o primeiro bem jurídico tutelado, antes que os outros, desde o ponto de vista cronológico, e mais que os restantes, tendo em conta a importância dos distintos bens” (cf. Ricardo Levene, El delito de homicídio, p. 17). Ainda sob o prisma histórico, vale mencionar a lição de João Bernardino Gonzaga: “A vida humana sempre encontrou proteção em todos os povos, por mais primitivos que fossem. A ordem social de qualquer comunidade lhe dispensa tutela, e em tempo algum se permitiu a indiscriminada prática de homicídios dentro de um grupo” (O direito penal indígena. À época do descobrimento do Brasil, p. 133).

Elemento subjetivo do tipo específico

Não há (ver Parte Geral, capítulo XIII, item 2.1).

Elemento subjetivo do crime

É o dolo ou a culpa, conforme o caso (ver o capítulo XIV da Parte Geral).

Classificação

Comum; material; de forma livre; comissivo (como regra); instantâneo; de dano; unissubjetivo; plurissubsistente. Sobre a classificação dos crimes, ver o capítulo XII, item 4, da Parte Geral.

Tentativa

Admissível.

Espécies

Doloso simples (caput), com pena de reclusão de 6 a 20 anos; doloso com causa de diminuição de pena (§ 1.º), doloso qualificado (§ 2.º), doloso com causa de aumento de pena (§ 4.º, parte final, § 6.º), culposo simples (§ 3.º), culposo com causa de aumento de pena (§ 4.º, primeira parte).

Particularidade

Admite perdão judicial na forma culposa (§ 5.º).

Momento consumativo

Ocorre com a morte encefálica, que acarretará, inexoravelmente, a cessação das funções circulatória e respiratória.

Meios de execução

Por ser crime de forma livre, comporta mecanismos diretos (fortes o suficiente para, por si sós, provocarem a morte, como, por exemplo, desferir tiros de arma de fogo contra o ofendido), indiretos (dependentes de outro instrumento, como instigar um louco a matar a vítima), materiais (atingem a integridade física de forma mecânica, química ou patológica), morais (atuam através da produção de um trauma no ofendido, como a geração de um enfarte, decorrente de uma grave ofensa).

Causas de diminuição de pena (é o impropriamente denominado homicídio privilegiado; consultar o conceito de privilégio no capítulo XXV, item 8.1)

a) relevante valor social ou moral: relevante valor é algo importante ou de elevada qualidade (patriotismo, lealdade, fidelidade, amor paterno ou materno etc.). Na ótica social, esses valores envolvem interesse de ordem geral ou coletiva (matar o traidor da pátria). Na visão moral, os valores concentram-se em interesse particular ou específico (matar o traficante que viciou seu filho);

b) domínio de violenta emoção logo em seguida a injusta provocação da vítima: emoção é a excitação de um sentimento (amor, ódio, rancor). Se o agente está dominado (fortemente envolvido) pela violenta (forte ou intensa) emoção (excitação sentimental), justamente porque foi, antes, provocado injustamente (sem razão plausível), pode significar, como decorrência lógica, a perda do autocontrole que muitos têm quando sofrem qualquer tipo de agressão sem causa legítima. Desencadeado o descontrole, surge o homicídio.

Síntese: ambas as hipóteses levam à diminuição da pena, de um sexto a um terço, porque representam menor culpabilidade (reprovação ou censura).

Qualificadoras (geram pena de reclusão de 12 a 30 anos)

a) motivo torpe, dentre os quais a paga ou promessa de recompensa: torpe é atributo do que é repugnante, indecente, ignóbil, logo, provocador de excessiva repulsa à sociedade (ex.: o traficante elimina o rival para dominar o comércio de drogas em determinada região). Dentre vários outros motivos desse naipe, enumeraram-se no tipo penal dois: paga (receber prêmio) ou promessa de recompensa (ter expectativa de receber prêmio). Cuida-se, nestes últimos dois casos, de peculiar forma de homicídio cometido por mercenário;

b) motivo fútil: significa que a causa fomentadora da eliminação da vida alheia calcou-se em elemento insignificante se comparado ao resultado provocado. Portanto, é a flagrante desproporção entre o motivo e o resultado obtido. Ex.: matar o dono do bar porque se recusou a vender bebida fiado;

c) emprego de meio insidioso, cruel ou que provoque perigo comum, tais como veneno, fogo, explosivo, asfixia ou tortura: meio insidioso é o enganoso, constituindo o veneno típica forma de ação camuflada do agente; meio cruel é o gerador de sofrimento desnecessário à vítima, representado tanto por algumas espécies de veneno, que matam de modo agônico, como pelo fogo, gerador de queimaduras bastante doloridas, além da tortura (suplício extremo, que poderíamos visualizar como a forma pura da crueldade) e da asfixia (supressão da respiração por qualquer meio, como, exemplificando, enforcamento, esganadura e estrangulamento), constituindo sofrimento atroz; meio que provoca perigo comum é o construtor de cenário extenso o suficiente para atingir terceiros além da vítima. Tipicamente representado pela explosão de uma bomba ou artefato similar, também pode ser simbolizado pelo emprego de fogo, desde que sua expansão seja vasta e temível de se concretizar;

d) recurso que dificulte ou torne impossível a defesa da vítima, consubstanciado, como exemplos, na traição, emboscada e dissimulação: quando o agente aborda o ofendido de maneira inesperada, gera um contexto próprio para a aplicação desta qualificadora, pois a defesa é dificultada ou até mesmo impossível. A surpresa é normalmente aquilo que é imprevisível. Formas disso são a traição (investida do agente por trás da vítima, que nem mesmo vê o algoz), a emboscada (ficar à espreita, aguardando a passagem inocente da vítima) e a dissimulação (apresentar-se pela frente da vítima, mas ocultando sua verdadeira intenção e simulando gestos opostos à agressão iminente). Lembremos que a surpresa é o gênero que dá origem às demais espécies retratadas no inciso IV do § 2.º. Mas não é qualquer surpresa, uma vez que todo ataque tem um toque de inesperado, até para que dê certo. Cuida-se, nesse cenário, da surpresa autenticamente imprevisível, impossível de calcular, prognosticar, imaginar. Ex.: a esposa aguarda o marido dormir para matá-lo, sem que tivesse havido qualquer desentendimento sério anterior entre ambos;

e) torpeza particular conexa a outro delito: criou a lei uma situação de peculiar repugnância, consistente na atuação do agente com o fim de assegurar (garantia de que dê certo) a execução (desenvolvimento dos atos de realização da empreitada criminosa), ocultação (encobrimento do fato), impunidade (evitar o castigo, a punição do autor, ainda que o fato seja conhecido) ou vantagem (lucro obtido) de outro crime. Ex.: matar a pessoa que o viu cometendo um roubo anteriormente, somente para ter certeza de que não irá testemunhar.

image  PONTO RELEVANTE PARA DEBATE

A equiparação do vidro moído a veneno para matar a vítima

Depende do enfoque utilizado para analisar o veneno. Valemo-nos dos esclarecimentos de Ricardo Levene para discutir o tema: “Para aqueles, como Groizard, que sustentam que toda substância alheia ao organismo e capaz de danificá-lo constitui veneno, o vidro moído, naturalmente, o é, ainda que atue fisicamente, mas para os que opinam que somente é veneno a substância que produz alterações químicas no organismo, mesclando-se, fundindo-se com o sangue, com os sucos e secreções, não é veneno. Determinaria em todo caso a comissão de um homicídio qualificado por insídia, por traição ou por sevícias, em face do sofrimento enorme da vítima pela forma como se lhe destroça o intestino, embora não seja veneno no conceito técnico” (El delito de homicidio, p. 198). Preferimos a segunda corrente. O veneno há de ser substância capaz de atuar no organismo, mesclando-se ao seu funcionamento, ministrado em forma gasosa, sólida ou líquida, provocando danos, porém sem a materialização do vidro moído. Assim, poderíamos considerar um gás venenoso, um comprimido fatal ou mesmo uma substância líquida mortífera. Na realidade, fazer com que a vítima ingira vidro moído significa uma forma de insídia, mas não necessariamente trata-se de veneno. Pode representar, sem dúvida, uma maneira cruel ou insidiosa de matar, o que qualifica o delito do mesmo modo.

Causas de aumento de pena

Para o homicídio doloso, forma simples ou qualificada, são aplicáveis duas causas para a elevação da pena, em um terço, demonstrativas da maior culpabilidade do agente, por ter agido com insensibilidade moral e covardemente, tendo por vítimas o maior de 60 anos e o menor de 14.

Acrescenta-se, pela Lei 12.720/2012, outra causa de aumento, de 1/3 até a metade, se o crime for cometido por milícia privada, sob o pretexto de prestação de serviço de segurança, ou por grupo de extermínio.

Forma culposa

Se o homicídio for cometido por imprudência, negligência ou imperícia, aplica-se pena de detenção de um a três anos.

Causa de aumento de pena no homicídio culposo

Prevê-se a elevação da pena em um terço se houver a inobservância de regra técnica de profissão, arte ou ofício, ou se o agente deixa de prestar imediato socorro à vítima, não procura diminuir as consequências do seu ato, ou foge para evitar a prisão em flagrante. Em análise:

a) inobservância de regra técnica de profissão, arte ou ofício: pensamos ser inadequada – e consequentemente inaplicável – essa modalidade de causa de aumento porque se confunde nitidamente com a própria conceituação de imperícia, que é a falta de conhecimento suficiente para exercer determinada profissão, arte ou ofício. Tem sido considerada por parte da doutrina como inaplicável, sob pena de se gerar o condenável bis in idem (dupla punição pelo mesmo fato). Aquele que não observa regra técnica obrigatória de sua profissão, arte ou ofício é, sem dúvida, um leviano, um imperito, o que serve para configurar a culpa, mas não para elevar a pena;

b) omissão de socorro: por tratar-se de crime culposo, no qual o agente não quer o resultado, é justo que seja mais severamente punido por ter demonstrado insensibilidade ao recusar-se a socorrer a vítima, pessoa que não desejou atingir. O mínimo que se espera é a prestação de solidariedade nesse momento. Pune-se a conduta leviana do agente que, provocando dano involuntário, deixa de prestar o socorro eticamente exigível;

c) não procurar diminuir as consequências do seu ato: novamente, lembremos que a agressão, no contexto do homicídio culposo, gerou resultado não desejado, motivo pelo qual o que se espera do agente é, ainda que não possa socorrer, por qualquer razão (ex: está ameaçado de linchamento e deve deixar o local), precisa buscar alguma atitude solidária para amenizar o mal causado (ex.: procurando a vítima no hospital e prestando-lhe imediato auxílio financeiro ou amparo moral);

d) fuga da prisão em flagrante: esse motivo, segundo nosso entendimento, é inconstitucional, não merecendo aplicação. Qualquer pessoa tem o direito de evitar a sua própria prisão, como tem o direito ao silêncio e a não produzir prova contra si mesmo.

Perdão judicial

Permite-se que o juiz afaste a punibilidade do crime de homicídio culposo, não aplicando a pena, se as consequências do crime atingirem o próprio agente de maneira tão grave que a sanção se torne desnecessária. O agente pode ser afetado física (sofrer lesões graves, por exemplo, de difícil cura ou tratamento, gerando dor e padecimento) ou moralmente (perda de ente querido – como filho – produzindo trauma de natureza psicológica). Ingressa, aí, a clemência do Estado. A pena, se aplicada, não poderia ser mais severa do que já foi o próprio resultado naturalístico decorrente da conduta culposamente praticada.

image  PONTOS RELEVANTES PARA DEBATE

A existência de homicídio simples hediondo

Não nos parece viável. Prevê a Lei 8.072/90, no art. 1.º, I, ser hediondo o homicídio simples “quando praticado em atividade típica de grupo de extermínio, ainda que cometido por um só agente”. Entretanto, a atividade típica de grupo de extermínio sempre foi considerada pela nossa jurisprudência um crime cometido por motivo torpe. O sujeito que se intitula justiceiro e atua por conta própria eliminando vidas humanas certamente age com desmedida indignidade. Eventualmente, costuma-se sustentar, é possível que o agente mate outra pessoa, em atividade típica de grupo de extermínio, para preservar um bairro de ignóbil traficante de drogas. Ora, se assim for, sua motivação faz nascer o relevante valor social, que serve de causa de diminuição de pena para o homicídio, aplicando-se a regra do § 1.º do art. 121, e não a figura básica do caput. Não se concebe haver, ao mesmo tempo, um homicídio privilegiado pela relevância social do motivo e qualificado pela torpeza, pois são ambas circunstâncias subjetivas. Dessa maneira, não vemos como aplicar ao homicídio simples a qualificação de hediondo, pois, caso atue o agente como exterminador, a tipificação será de homicídio qualificado, já que o delito certamente será considerado repugnante.

A (in)aplicabilidade da causa de aumento de crime cometido por milícia privada ou grupo de extermínio

A introdução de novel causa de aumento no contexto do homicídio doloso (art. 121, § 6.º) faz parte da desconexa e incoerente atividade legislativa penal dos últimos tempos. Prevê-se a elevação da pena do homicídio praticado por milícia privada (grupo paramilitar, que age inoficiosamente, prometendo segurança à população em lugar da atividade estatal regular) ou grupo de extermínio (associação de pessoas que se julgam justiceiros, eliminando suspeitos de crimes e outras pessoas consideradas nocivas à sociedade). Entretanto, há muitas décadas tais grupos já atuam no Brasil, e os seus crimes, mormente os homicídios, sempre foram classificados como homicídios qualificados pela paga, promessa de recompensa ou torpeza. Diante disso, a sua atividade delituosa encaixava-se, e continua se adequando, no art. 121, § 2.º, I, do Código Penal, sujeito a uma pena de 12 a 30 anos de reclusão. Sendo delito qualificado, não é possível a incidência da mesma situação fática, agora como causa de aumento, pois seria inevitável bis in idem. O réu justiceiro comete homicídio qualificado, mas não pode, ao mesmo tempo, ser mais severamente apenado com aumento de pena por conta disso. A sua atividade paramilitar ou de extermínio só pode ser tipificada em uma das circunstâncias de elevação da pena – qualificadora ou causa de aumento –, pois as duas são incompatíveis, quando utilizadas no mesmo caso. Prevalece a qualificadora – mais grave – em detrimento da causa de aumento. A única hipótese plausível para se utilizar a referida causa de aumento deve-se à dupla ou tripla qualificação do homicídio. Se o crime for qualificado, com base nos incisos III e/ou IV do § 2.º, reserva-se a atividade paramilitar ou exterminadora para utilizar como causa de aumento. Exemplificando, o crime é cometido por justiceiro, mediante recurso que impossibilitou a defesa da vítima. O homicídio é qualificado, com base no inciso IV, associado à causa de aumento do § 6.º. A faixa de fixação da pena é de 12 a 30 anos, acrescida de 1/3 até metade.

A existência de homicídio qualificado-privilegiado

Depende. Tem sido posição predominante na doutrina e na jurisprudência a admissão da forma qualificada-privilegiada, desde que exista compatibilidade lógica entre as circunstâncias. Como regra, pode-se aceitar a existência concomitante de qualificadoras objetivas com as circunstâncias legais do privilégio, que são de ordem subjetiva (motivo de relevante valor social ou moral e domínio de violenta emoção). O que não se pode acolher é a convivência pacífica das qualificadoras subjetivas com qualquer forma de privilégio, tal como seria o homicídio praticado, ao mesmo tempo, por motivo fútil e por relevante valor moral. Convivem, em regra, harmoniosamente as qualificadoras dos incisos III e IV com as causas de diminuição da pena do § 1.º. Não se afinam as qualificadoras dos incisos I, II e V com as mesmas causas. Em sentido oposto, sustentando a inviabilidade, para qualquer hipótese, de haver homicídio qualificado-privilegiado, pois, uma vez comprovado o privilégio, tem ele força para repelir qualquer qualificadora, está o ensinamento de Euclides Custódio da Silveira: “Foi propositadamente, e, a nosso ver, com acerto, que o Código fez preceder o dispositivo concernente ao privilégio ao das qualificadoras. Não admite ele o homicídio qualificado-privilegiado, por considerá-lo forma híbrida, enquanto reconhece a compossibilidade do mesmo privilégio nas lesões corporais graves, gravíssimas e seguidas de morte, onde não há realmente antagonismo algum” (Direito penal – crimes contra a pessoa, p. 55).

A aceitação do homicídio qualificado-privilegiado hediondo

Não nos parece admissível. A Lei 8.072/90, no art. 1.º, I, faz expressa referência apenas ao homicídio simples e ao qualificado como sendo crimes hediondos. A figura híbrida, admitida pela doutrina e pela jurisprudência, configura situação anômala, que não deve ser interpretada em desfavor do réu. Aliás, não se trata unicamente de dizer que a mencionada Lei 8.072/90 apenas qualificou como hediondo um delito já existente (homicídio qualificado), sem qualquer nova tipificação. Sem dúvida, não houve a criação de um tipo penal novo, embora as consequências da novel qualificação invadam, nitidamente, a seara da incriminação, cortando benefícios variados, devendo respeitar o princípio da legalidade (não há crime sem lei anterior que o defina). Por isso, inexistindo qualquer referência, na Lei 8.072/90, a respeito da causa de diminuição prevista no § 1.º do art. 121 do Código Penal, torna-se, a nosso juízo, indevida a sua qualificação como delito hediondo. Acrescente-se, ainda, o fato de que a referida causa de diminuição faz parte, sem dúvida, da tipicidade derivada, tanto assim que permite a fixação da pena abaixo do mínimo legal. Por isso, integrando o tipo penal, é indispensável que qualquer qualificação, tornando-o mais severo, passe pelo crivo da previsão expressa em lei, justamente o que não acontece no art. 1.º, da Lei dos Crimes Hediondos. E mais: não deixa de ser estranha a qualificação de hediondo (repugnante, vil, reles) a um delito cometido, por exemplo, por motivo de relevante valor moral ou social. Ainda que possa ser praticado com crueldade (qualificadora objetiva, que diz respeito ao modo de execução), a motivação nobre permite que se considere delito comum e não hediondo, afinal, acima de tudo, deve-se considerar os motivos (finalidade) do agente para a consecução do crime e não simplesmente seus atos.

A questão do ciúme como elemento motivador do homicídio

Sabe-se que muitos agentes, mormente em delitos passionais, alegando ciúme, matam as vítimas. Parcela da doutrina e da jurisprudência tendeu a considerar o ciúme um motivo fútil, vale dizer, desproporcional e abusivo, pretendendo a qualificação do crime. Outra parcela pendeu para a consideração de ser o ciúme um motivo torpe, logo, repugnante ou vil. Prevaleceu o entendimento de que o ciúme não é nem fútil, nem torpe. Não se trata de justificativa para matar ou, tampouco, para excluir a culpa. Porém, não pode ser considerado desproporcional, nem sórdido. Roque de Brito Alves esclarece que “cientificamente (...), seja como fenômeno ou sentimento normal, comum ou de caráter patológico, seja em suas formas impulsivas (reações primárias), afetiva ou na obsessiva, entendemos, em síntese e essencialmente, que o ciúme é uma manifestação de um profundo complexo de inferioridade de uma certa personalidade, sintoma de imaturidade afetiva e de um excessivo amor-próprio. O ciumento não se sente somente incapaz de manter o amor e o domínio sobre a pessoa amada, de vencer ou afastar qualquer possível rival como, sobretudo, sente-se ferido ou humilhado em seu amor-próprio. (...) O ciúme já na sua antiga origem etimológica grega, em sua terminologia em tal idioma, bem indicava tal estado psíquico de tormento, pois significava ‘ardor’, ‘ferver’, ‘fermentar’, considerando-o os gregos, como um ‘amor excessivo’, enquanto os romanos identificavam-no mais com o sentimento de inveja (Sokoloff). O próprio Santo Agostinho, em suas ‘Confissões’ proclamou que era ‘flagelado pela férrea e abrasadora tortura dos ciúmes’. A sabedoria popular diz que o ciumento fica ‘cego’ pelo seu tormento, pelo inferno que vive pois a verdadeira realidade não existe para ele, somente a realidade que ‘imagina’ ilusoriamente, alucinadamente, falsamente” (Ciúme e crime, p. 19). Portanto, é causa passível de impulsionar alguém ao cometimento de agressões de toda ordem, inclusive homicídio.

O homicídio sem motivo

Argumentos existem a sustentar a possibilidade de se encontrar o crime de homicídio cometido pelo agente sem qualquer espécie de motivação. Seria um delito gratuito, advindo do nada. Para tanto, buscando justificar tal esdrúxula situação, algumas vozes se levantam para afirmar ser fútil o homicídio cometido sem motivo. Assim fazendo, a acusação se daria em termos de homicídio qualificado – e não simples. Por que fútil? Pelo fato de haver nítida desproporção entre o nada e a morte da vítima. Visualizamos, entretanto, um engano e, possivelmente, um sofisma no trato dessa questão. Por certo, considera-se motivo fútil a justificativa pífia para chegar à morte de alguém (ex.: negado uma venda fiada, para pagamento posterior, o agente mata o dono do estabelecimento – há incontestável distância entre motivo e resultado). A futilidade se caracteriza pelo contraste entre a razão da atitude do autor do crime e o resultado por ele provocado. É insignificante, vão, leviano, tirar a vida de alguém pelo simples fato de lhe ter sido negada uma venda para pagamento futuro. Porém, quando não se descobre o motivo, considerando-se a ausência de motivo, jamais se deve qualificar o crime como fútil; afinal, inexiste padrão de comparação entre o móvel interior do agente para a ação homicida e o resultado. Não é válido dizer, por simples suposição, que a ausência de motivo torna-se mais grave do que a existência de qualquer motivo, por mais simplista que seja. Em verdade, sabe-se que o ser humano, racional e inteligente, não age por agir. Suas ações e omissões têm uma causa e um fim. São valoradas, sempre. Por vezes, pode-se até mesmo estar diante de uma valoração implícita, sombreada pelo subconsciente do agente, mas existente. O homem não atua por mero instinto, como se fosse uma tendência natural, nos padrões do mundo animal. A fuga à racionalidade, determinando uma ação sem qualquer motivo, somente encontraria explicação – o que não deixa de ser um motivo – na enfermidade mental. Estaria, então, o autor sujeito à medida de segurança e não à pena. Estamos convictos de que não há crime sem motivo. Muito menos se pode falar em homicídio imotivado. Aliás, a maioria dos homicídios é cometida com fundamento em três motivos: a) ambição ou cobiça em relação a bens materiais; b) paixão; c) orgulho ou vaidade. O restante encontra fundamento em motivos diversos, dos mais frugais aos mais relevantes. De toda sorte, todo homicídio tem um motivo, cumprindo ao Estado descobri-lo, para poder valorá-lo, subsumindo-o ao tipo penal incriminador, seja como simples, qualificado ou privilegiado. O desconhecimento do motivo do agente para matar a vítima circunscreve a imputação no caput no art. 121, vale dizer, homicídio simples. A ignorância do real móvel do crime jamais pode ser base para insculpir a acusação qualificada, calcada no motivo fútil, pois seria uma responsabilidade objetiva, fruto da ilação de terceiros, incompatível com o efetivo querer do autor.

 

Induzimento, instigação ou auxílio a suicídio

Art. 122

Sujeito ativo

Qualquer pessoa (ver Parte Geral, capítulo XII, item 3.1).

Sujeito passivo

Qualquer pessoa com um mínimo de discernimento e resistência. Do contrário, não podendo resistir ao induzimento ou instigação, cuida-se de homicídio (ver Parte Geral, capítulo XII, item 3.2).

Objeto jurídico

A vida humana (ver Parte Geral, capítulo XII, item 3.3, “b”).

Objeto material

A pessoa contra a qual se volta o agente (ver Parte Geral, capítulo XII, item 3.3, “a”).

Elementos objetivos do tipo

Induzir significa dar a ideia a quem não a possui, inspirar, incutir. Portanto, nessa primeira conduta, o agente sugere ao suicida que dê fim à sua vida; instigar é fomentar uma ideia já existente. Trata-se, pois, do agente que estimula a ideia suicida que alguém anda manifestando; auxiliar é a forma mais concreta e ativa de agir, pois significa dar apoio material ao ato suicida. Ex.: o agente fornece a arma utilizada pela pessoa que se mata. Nesse caso, deve dizer respeito a um apoio meramente secundário, não podendo, jamais, o autor, a pretexto de “auxiliar” o suicida, tomar parte ativa na ação de tirar a vida, tal como aconteceria se alguém apertasse o gatilho da arma já apontada para a cabeça pelo próprio suicida. Responde, nesta hipótese, por homicídio. Suicídio é a morte voluntária, que, segundo Durkheim, “resulta, direta ou indiretamente, de um ato positivo ou negativo, realizado pela própria vítima, a qual sabia dever produzir este resultado”, chamando-se, ainda, autocídio e autoquiria (cf. Odon Ramos Maranhão, Curso básico de medicina legal, p. 222). Conferir o capítulo XIII, item 2.1, da Parte Geral. O suicídio não é penalmente punido, quando consumado, por óbvio motivo: a morte tudo resolve. Porém, não se pune quando houver apenas um atentado à própria vida, pois inexistirão os fundamentos da pena, seja sob a ótica retributiva, seja sob o enfoque preventivo. Entretanto, a vida é um bem jurídico relevante, não se podendo dela dispor licitamente, tanto assim que a coação para impedir suicídio é fato atípico (art. 146, § 3º, II, CP). Esse é o motivo justificador do tipo incriminador do art. 122 do Código Penal. No mesmo sentido, Muñoz Conde, Derecho penal – Parte especial, p. 63.

Elemento subjetivo do tipo específico

Não há (ver Parte Geral, capítulo XIII, item 2.1).

Elemento subjetivo do crime

É o dolo, não se admitindo a forma culposa (ver o capítulo XIV da Parte Geral).

Classificação

Comum; material; instantâneo; comissivo (de ação); de dano; unissubjetivo; de forma livre; plurissubsistente. Sobre a classificação dos crimes, ver o capítulo XII, item 4, da Parte Geral.

Tentativa

Não admite, por ser crime condicionado (o ofendido deve tentar o suicídio sofrendo lesões graves ou deve efetivamente suicidar-se).

Momento consumativo

Ocorre quando a vítima efetivamente se suicida ou quando tenta e sofre lesões graves.

Causas de aumento de pena

A pena é duplicada quando o crime é cometido por motivo egoístico (excessivo apego a si mesmo, o que evidencia o desprezo pela vida alheia) ou quando a vítima é menor de 18 anos e maior de 14 (o menor de 14 anos, se não tem capacidade nem mesmo para consentir num ato sexual, certamente não a terá para a eliminação da própria vida, razão pela qual o agente responde por homicídio, na forma tentada ou consumada) ou tem diminuída, por qualquer motivo, a sua capacidade de resistência (fases críticas de doenças graves, físicas ou mentais, abalos psicológicos, senilidade, infantilidade ou ainda pela ingestão de álcool ou substância de efeitos análogos).

image  PONTOS RELEVANTES PARA DEBATE

O auxílio por omissão

Trata-se de questão controversa na doutrina e na jurisprudência, havendo duas correntes: a) não se admite, pois a expressão contida no tipo penal menciona “prestar auxílio”, implicando ação (cf. Frederico Marques, Bento de Faria, Roberto Lyra, Euclides Custódio da Silveira, Paulo José da Costa Júnior, Damásio de Jesus, entre outros); b) admite-se, desde que o agente tenha o dever jurídico de impedir o resultado (cf. Magalhães Noronha, Nélson Hungria, Ari de Azevedo Franco, Mirabete, entre outros). Preferimos esta última posição, pois o fato de o verbo do tipo ser comissivo não significa, necessariamente, estar afastada a hipótese do crime comissivo por omissão. Ora, todas as hipóteses da omissão penalmente relevante (art. 13, § 2.º, CP) demonstram que há delitos comissivos (matar, subtrair, constranger etc.) que possibilitam a punição por omissão, desde que haja o dever de impedir o resultado típico. Ex.: o pai que, sabendo da intenção suicida do filho menor, sob poder familiar, nada faz para impedir o resultado e a enfermeira que, tomando conhecimento da intenção suicida do paciente, ignora-a por completo, podem responder pela figura do auxílio, por omissão, ao suicídio. Nesse contexto, convém mencionar o exemplo dado por Muñoz Conde: o médico cria ficticiamente uma situação, podendo prever a reação da vítima, ao dizer-lhe que está com um câncer incurável, tendo pouco tempo de vida, além de que irá padecer de inúmeras dores graves. Não há insinuação direta para o cometimento do suicídio, mas, pelas condições psicológicas do paciente, presume-se qual seria sua reação. Concretizando-se o suicídio, vê-se a atuação do médico como garante, pois foi quem criou o risco para o ofendido. Deve ser punido pela figura do art. 122 do Código Penal por omissão (Derecho penalParte especial, p. 67).

A solução da situação denominada pacto de morte

É possível que duas ou mais pessoas promovam um pacto de morte, deliberando morrer ao mesmo tempo. Várias hipóteses podem ocorrer: a) se cada uma delas ingerir veneno, de per si, por exemplo, aquela que sobreviver responderá por participação em suicídio, tendo por sujeito passivo a outra (ou as outras, que morreram); b) caso uma ministre o veneno para as demais, se sobreviver, responderá por homicídio consumado de todos os que morreram (e tentativa de homicídio, com relação aos que sobreviverem), tendo em vista que o delito previsto no art. 122 não admite qualquer tipo de ato executório, com relação a terceiros; c) na hipótese de cada pessoa administrar veneno a outra (A dá veneno a B, que fornece a C, que o ministra a D etc.), todas sobrevivendo. Responderá cada uma por tentativa de homicídio, tendo como sujeito passivo a pessoa a quem foi dado o tóxico; d) se cada pessoa ingerir, sozinha, o veneno, todas sobrevivendo, com lesões leves ou sem qualquer lesão, o fato é atípico, pois o crime do art. 122 é condicionado à ocorrência de lesões graves ou morte; e) na hipótese de uma pessoa administrar veneno a outra, ao mesmo tempo em que recebe a peçonha desta, aquele que sobreviver responderá por homicídio consumado; se ambos sobreviverem, configurará tentativa de homicídio para as duas, como na alternativa “c”; f) caso quatro pessoas contratem um médico para lhes ministrar o veneno, tendo por resultado a morte de duas pessoas e a sobrevivência de outras duas, estas, que ficaram vivas, sem lesões graves, responderão por participação em suicídio, tendo por sujeitos passivos as que morreram. O médico, por sua vez, responderá por dois homicídios consumados e duas tentativas de homicídio. Adaptando-se o pacto de morte à roleta russa (passar um revólver entre vários presentes, contendo uma só bala no tambor, que é girado aleatoriamente, para que a arma seja apontada por cada um na direção de seu corpo), dá-se o mesmo. Quem sobreviver, responde por participação em suicídio, tendo por vítima aquele que morreu. Finalmente, acrescente-se a hipótese, no contexto da roleta russa, do participante que der um tiro em si mesmo, sofrendo lesões graves. Caso ele sobreviva, não deve ser penalmente responsabilizado, pois o direito brasileiro não pune a autolesão. Os outros, sem dúvida, responderão por participação em suicídio.

 

Infanticídio

Art. 123

Sujeito ativo

A mãe do recém-nascido ou ser nascente (ver Parte Geral, capítulo XII, item 3.1).

Sujeito passivo

O recém-nascido ou ser nascente (ver Parte Geral, capítulo XII, item 3.2).

Objeto jurídico

A vida (ver Parte Geral, capítulo XII, item 3.3, “b”).

Objeto material

O recém-nascido ou ser nascente (ver Parte Geral, capítulo XII, item 3.3, “a”).

Elementos objetivos do tipo

O verbo matar é o mesmo do homicídio, razão pela qual a única diferença entre o crime de infanticídio e o homicídio é a especial situação em que se encontra o agente. Por isso, na essência, o infanticídio é um homicídio privilegiado, ou seja, um homicídio com pena atenuada. Matar significa eliminar a vida de outro ser humano, de modo que é preciso que o nascente esteja vivo no momento em que é agredido. Estado puerperal é aquele que envolve a parturiente durante a expulsão da criança do ventre materno. Há profundas alterações psíquicas e físicas, que chegam a transtornar a mãe, deixando-a sem plenas condições de entender o que está fazendo. É uma hipótese de semi-imputabilidade que foi tratada pelo legislador com a criação de um tipo especial. O puerpério é o período que se estende do início do parto até a volta da mulher às condições pré-gravidez. Como toda mãe passa pelo estado puerperal – algumas com graves perturbações e outras com menos – é desnecessária a perícia. O infanticídio exige que a agressão seja cometida durante o parto ou logo após, embora sem fixar um período preciso para tal ocorrer. Deve-se, pois, interpretar a expressão “logo após” com o caráter de imediatidade, pois, do contrário, poderão existir abusos. Levamos em consideração que a expressão “logo após” encerra imediatidade, mas pode ser interpretada em consonância com a “influência do estado puerperal”, embora sem exageros e sem a presunção de que uma mãe, por trazer consigo o inafastável instinto materno, ao matar o filho, estaria ainda, mesmo que muitos dias depois do parto, cometendo um infanticídio. O correto é presumir o estado puerperal quando o delito é cometido imediatamente após o parto, em que pese poder haver prova em contrário, produzida pela acusação. Após o parto ter-se consumado, no entanto, a presunção vai desaparecendo e o correr dos dias inverte a situação, obrigando a defesa a demonstrar, pelos meios de prova admitidos (perícia ou testemunhas), que o puerpério, excepcionalmente, naquela mãe persistiu, levando-a a matar o próprio filho. E finalmente, é imprescindível detectar se não se trata de uma psicose puerperal, dando margem à aplicação do art. 26 do Código Penal. Conferir o capítulo XIII, item 2.1, da Parte Geral.

Elemento subjetivo do tipo específico

Não há (ver Parte Geral, capítulo XIII, item 2.1).

Elemento subjetivo do crime

É o dolo, não se punindo a forma culposa (ver o capítulo XIV da Parte Geral).

Classificação

Próprio; instantâneo; comissivo (exige ação); material; de dano; unissubjetivo; plurissubsistente; de forma livre. Sobre a classificação dos crimes, ver o capítulo XII, item 4, da Parte Geral.

Tentativa

É admissível.

Momento consumativo

Com a morte do recém-nascido ou ser nascente.

image  PONTO RELEVANTE PARA DEBATE

O concurso de pessoas no infanticídio

Tendo o Código Penal adotado a teoria monista, pela qual todos os que colaborarem para o cometimento de um crime incidem nas penas a ele destinadas, no caso presente, coautores e partícipes respondem igualmente por infanticídio. Assim, embora presente a injustiça, que poderia ser corrigida pelo legislador, tanto a mãe que mate o filho sob a influência do estado puerperal, quanto o partícipe que a auxilia, respondem por infanticídio. O mesmo se dá se a mãe auxilia, nesse estado, o terceiro que tira a vida do seu filho e ainda se ambos (mãe e terceiro) matam a criança nascente ou recém-nascida. A doutrina é amplamente predominante nesse sentido.

 

Aborto provocado pela gestante ou com seu consentimento

Art. 124

Sujeito ativo

A gestante (ver Parte Geral, capítulo XII, item 3.1).

Sujeito passivo

O feto ou embrião. Para alguns, tendo em vista que o feto ou embrião não pode ser considerado pessoa, o sujeito afetado seria a sociedade (ver Parte Geral, capítulo XII, item 3.2).

Objeto jurídico

A vida (ver Parte Geral, capítulo XII, item 3.3, “b”). Ou, em termos mais específicos, a vida do feto ou a vida dependente (cf. Muñoz Conde, Derecho penal – Parte especial, p. 87).

Objeto material

O feto ou embrião (ver Parte Geral, capítulo XII, item 3.3, “a”).

Elementos objetivos do tipo

Aborto é a cessação da gravidez, antes do termo normal, causando a morte do feto ou embrião (de ab ortus, ou seja, parto sem nascimento, cuida-se de palavra latina, que expressa a ação e o efeito da interrupção do processo reprodutivo da espécie, vale dizer, da gestação, antes do término normal, com consequências eliminatórias, cf. Bernaldo de Quirós, Derecho penal – parte especial, p. 83). Suas formas são:

a) aborto natural: é a interrupção da gravidez oriunda de causas patológicas, que ocorre de maneira espontânea (não há crime);

b) aborto acidental: é a cessação da gravidez por conta de causas exteriores e traumáticas, como quedas e choques (não há crime);

c) aborto criminoso: é a interrupção forçada e voluntária da gravidez, provocando a morte do feto ou embrião;

d) aborto permitido ou legal: é a cessação da gestação, com a morte do feto ou embrião, admitida por lei. Esta forma divide-se em: d.1) aborto terapêutico ou necessário: é a interrupção da gravidez realizada por recomendação médica, a fim de salvar a vida da gestante. Trata-se de uma hipótese específica de estado de necessidade; d.2) aborto sentimental ou humanitário: é a autorização legal para interromper a gravidez quando a mulher foi vítima de estupro. Dentro da proteção à dignidade da pessoa humana, em confronto com o direito à vida (nesse caso, do feto ou embrião), optou o legislador por proteger a dignidade da mãe, que, vítima de um crime hediondo, não quer manter o produto da concepção em seu ventre, o que lhe poderá trazer sérios entraves de ordem psicológica e na sua qualidade de vida futura;

e) aborto eugênico, eugenésico ou embriopático: é a interrupção da gravidez, causando a morte do feto ou embrião, para evitar que a criança nasça com graves defeitos genéticos. Há controvérsia se há ou não crime nessas hipóteses, como se verá no art. 128;

f) aborto econômico-social: é a cessação da gestação, causando a morte do feto ou embrião, por razões econômicas ou sociais, quando a mãe não tem condições de cuidar do seu filho, seja porque não recebe assistência do Estado, seja porque possui família numerosa, ou até por política estatal. Conferir o capítulo XIII, item 2.1, da Parte Geral.

Elemento subjetivo do tipo específico

Não há (ver Parte Geral, capítulo XIII, item 2.1).

Elemento subjetivo do crime

É o dolo, inexistindo a forma culposa (ver o capítulo XIV da Parte Geral).

Classificação

Crime próprio; instantâneo; comissivo ou omissivo (provocar = ação; consentir = omissão, no sentido de deixar de impedir que outrem o faça); material; de dano; unissubjetivo, como regra; plurissubsistente; de forma livre. Sobre a classificação dos crimes, ver o capítulo XII, item 4, da Parte Geral.

Tentativa

É admissível.

Momento consumativo

Com a morte do feto ou embrião.

Particularidade

A maioria da doutrina entende constituído o início da vida intrauterina, com o que concordamos, quando ocorre a nidação, ou seja, a fixação do óvulo fecundado na parede do útero materno (cf. Muñoz Conde, Derecho penal – Parte especial, p. 87).

 

Aborto provocado por terceiro sem consentimento

Art. 125

Sujeito ativo

Qualquer pessoa (ver Parte Geral, capítulo XII, item 3.1).

Sujeito passivo

O feto ou embrião (para alguns, tendo em vista que o feto não pode ser considerado pessoa, o sujeito afetado seria a sociedade) e também a gestante (ver Parte Geral, capítulo XII, item 3.2).

Objeto jurídico

A vida e a integridade física da gestante (ver Parte Geral, capítulo XII, item 3.3, “b”). E, em termos mais específicos, a vida do feto ou a vida dependente (cf. Muñoz Conde, Derecho penal – Parte especial, p. 87).

Objeto material

O feto ou embrião e a gestante (ver Parte Geral, capítulo XII, item 3.3, “a”).

Elementos objetivos do tipo

Provocar significa dar causa ou determinar; consentir quer dizer dar aprovação, admitir, tolerar. O objeto das condutas é a cessação da gravidez, provocando a morte do feto ou embrião. Conferir o capítulo XIII, item 2.1, da Parte Geral.

Elemento subjetivo do tipo específico

Não há (ver Parte Geral, capítulo XIII, item 2.1).

Elemento subjetivo do crime

É o dolo, inexistindo a forma culposa (ver o capítulo XIV da Parte Geral).

Classificação

Comum; instantâneo; comissivo; material; de dano; unissubjetivo; podendo, em algumas hipóteses, ser plurissubjetivo; plurissubsistente; de forma livre. Sobre a classificação dos crimes, ver o capítulo XII, item 4, da Parte Geral.

Tentativa

É admissível.

Momento consumativo

Com a morte do feto ou embrião.

Particularidade

A maioria da doutrina entende constituído o início da vida intrauterina, com o que concordamos, quando ocorre a nidação, ou seja, a fixação do óvulo fecundado na parede do útero materno (cf. Muñoz Conde, Derecho penal – Parte especial, p. 87).

 

Aborto provocado por terceiro com consentimento

Art. 126

Sujeito ativo

Qualquer pessoa (ver Parte Geral, capítulo XII, item 3.1).

Sujeito passivo

O feto ou embrião. Para alguns, tendo em vista que o feto ou embrião não pode ser considerado pessoa, o sujeito afetado seria a sociedade (ver Parte Geral, capítulo XII, item 3.2).

Objeto jurídico

A vida (ver Parte Geral, capítulo XII, item 3.3, “b”). Ou, em termos mais específicos, a vida do feto ou a vida dependente (cf. Muñoz Conde, Derecho penal – Parte especial, p. 87).

Objeto material

O feto ou embrião (ver Parte Geral, capítulo XII, item 3.3, “a”).

Elementos objetivos do tipo

Provocar significa dar causa ou determinar; consentir quer dizer dar aprovação, admitir, tolerar. O objeto das condutas é a cessação da gravidez, provocando a morte do feto ou embrião. Este artigo é uma exceção à teoria monística (todos os coautores e partícipes respondem pelo mesmo crime quando contribuírem para o mesmo resultado típico). Se existisse somente a figura do art. 124, o terceiro que colaborasse com a gestante para a prática do aborto incidiria naquele tipo penal. Entretanto, o legislador, para punir mais severamente o terceiro que provoca o aborto, criou o art. 126, aplicando a teoria pluralística do concurso de pessoas. Conferir o capítulo XIII, item 2.1, da Parte Geral.

Elemento subjetivo do tipo específico

Não há (ver Parte Geral, capítulo XIII, item 2.1).

Elemento subjetivo do crime

É o dolo, inexistindo a forma culposa (ver o capítulo XIV da Parte Geral).

Classificação

Comum; instantâneo; comissivo (provocar = ação); material; de dano; plurissubjetivo; plurissubsistente; de forma livre. Sobre a classificação dos crimes, ver o capítulo XII, item 4, da Parte Geral.

Tentativa

É admissível.

Momento consumativo

Com a morte do feto ou embrião.

Qualificadoras

Dispõe o parágrafo único do art. 126 que a pena será aplicada nos termos do artigo 125 (reclusão, de 3 a 10 anos) se a gestante não é maior de 14 anos, ou é alienada ou débil mental, ou se o consentimento é obtido mediante fraude, grave ameaça ou violência.

Particularidade

A maioria da doutrina entende constituído o início da vida intrauterina, com o que concordamos, quando ocorre a nidação, ou seja, a fixação do óvulo fecundado na parede do útero materno (cf. Muñoz Conde, Derecho penal – Parte especial, p. 87).

 

Formas qualificadas de aborto

Art. 127

Aplicação restrita

Somente se aplica a figura qualificada às hipóteses dos arts. 125 e 126. As consequências são:

a) aumentar de um terço a pena, se, em razão do aborto ou dos meios empregados para provocá-lo, a gestante sofre lesão corporal de natureza grave;

b) provocar a duplicação da pena, se, por qualquer dessas causas, houver a morte da gestante.

Se fosse empregado o art. 127 também ao tipo previsto no art. 124 (autoaborto), estar-se-ia punido a autolesão, o que não ocorre no direito brasileiro.

Hipóteses da figura qualificada

a) lesões graves ou morte da gestante e feto expulso vivo: tentativa de aborto qualificado;

b) aborto feito pela gestante, com lesões graves ou morte, havendo participação de outra pessoa: esta pode responder por homicídio ou lesão culposa (se previsível o resultado prejudicial à gestante) em concurso com autoaborto, já que não se aplica a figura qualificada à hipótese prevista no art. 124.

Crime qualificado pelo resultado

Trata-se de hipótese em que o resultado mais grave qualifica o originalmente desejado. O agente quer matar o feto ou embrião, embora termine causando lesões graves ou mesmo a morte da gestante. Entendem a doutrina e a jurisprudência majoritárias que as lesões e a morte só podem decorrer de culpa do agente, constituindo, pois, a forma preterdolosa do crime (dolo na conduta antecedente e culpa na subsequente). Entretanto, a despeito disso, em nosso entendimento, não há restrição legal expressa para que o resultado mais grave não possa ser envolvido pelo dolo eventual do agente. Mas, se isso ocorrer, conforme posição predominante, costuma-se dividir a infração em duas distintas (aborto + lesões corporais graves ou aborto + homicídio doloso, conforme o caso).

 

Excludentes de ilicitude

Art. 128

Excludentes específicas

O art. 128 cuida de duas hipóteses de excludentes de ilicitude aplicáveis somente no contexto do aborto, mas que não diferem, na essência, daquelas previstas no art. 23 do Código Penal. Autoriza-se o aborto: a) quando não há outro meio de salvar a vida da gestante (art. 128, I), que é uma modalidade especial de estado de necessidade; b) se a gravidez resulta de estupro e o aborto é precedido de consentimento da gestante ou, se for incapaz, de seu representante legal (art. 128, II), que representa uma forma especial de exercício regular de direito.

Constitucionalidade do dispositivo

Nenhum direito é absoluto, nem mesmo o direito à vida. Por isso, é perfeitamente admissível o aborto em circunstâncias excepcionais, para preservar a vida digna da mãe.

Há posição em sentido contrário, considerando inadmissível o aborto, quando originária a gravidez de estupro, devendo haver proteção à vida do embrião ou feto. “Eis a solução preconizada, tendente a minorar os traumas e impasses daí advindos: ao Estado caberia assumir a criação de quem nenhuma culpa teve de ser assim gerado. Do contrário, seria o caso, por exemplo, de se considerar igualmente lícito o aborto para evitar filhos portadores de doenças hereditárias ou congênitas” (Walter Vieira do Nascimento, A embriaguez e outras questões penais (doutrina – legislação – jurisprudência), p. 156).

Sujeito que pode praticá-lo

Entende-se que somente o médico pode providenciar a cessação da gravidez nessas duas hipóteses, sem qualquer possibilidade de utilização da analogia in bonam partem para incluir, por exemplo, a enfermeira ou a parteira. A razão disso consiste no fato de o médico ser o único profissional habilitado a decidir, mormente na primeira situação, se a gestante pode ser salva, evitando-se o aborto ou não. Quanto ao estupro, é também o médico que pode realizar a interrupção da gravidez com segurança para a gestante. Se a enfermeira ou qualquer outra pessoa assim agir, poderá ser absolvida por estado de necessidade (causa genérica de exclusão da ilicitude) ou até mesmo por inexigibilidade de conduta diversa (causa supralegal de exclusão da culpabilidade), conforme o caso.

Aborto terapêutico

Trata-se, como já mencionado, de uma hipótese específica de estado de necessidade. Entre os dois bens que estão em conflito (vida da mãe e vida do feto ou embrião), o direito fez clara opção pela vida da mãe. Prescinde-se do consentimento da gestante neste caso (art. 128, I, CP).

Aborto humanitário ou piedoso

Em nome da dignidade da pessoa humana, no caso a da mulher que foi violentada, o direito permite que pereça a vida do feto ou embrião. São dois valores fundamentais, mas é mais indicado preservar aquele já existente (art. 128, II, CP).

Atentado violento ao pudor

Quando a gravidez fosse decorrência do atentado violento ao pudor, autorizava-se igualmente o aborto, afinal, aplicava-se a excludente por analogia in bonam partem. O fundamento era que tanto o estupro quanto o atentado violento ao pudor consistiam em formas idênticas de violência sexual, não havendo sentido permitir a interrupção da gravidez num caso, vetando-a em outro. A questão está, hoje, superada pelo advento da Lei 12.015/2009, que transformou o estupro e o atentado violento ao pudor em crime único, previsto no art. 213, sob o título de estupro. Logo, a gravidez decorrente de atos libidinosos também dá ensejo ao aborto.

Existência de condenação ou processo pelo delito de estupro

É prescindível, pois a excludente não exige a condenação do responsável pelo crime que deu origem à autorização legal. O importante é o fato e não o autor do fato. Por isso, basta o registro de um boletim de ocorrência e a apresentação do documento ao médico, que não necessita nem mesmo da autorização judicial.

Consentimento da gestante

É imprescindível, pois, cuidando-se de exercício regular de direito, somente a mãe pode saber o seu grau de rejeição ao feto ou embrião. Caso decida gerar o ser, permitindo-lhe o nascimento, é direito seu. Em verdade, terá dado mostra de superior desprendimento e nenhum bem será ainda mais sacrificado, além do trauma que já sofreu em virtude da violência sexual.

image  PONTOS RELEVANTES PARA DEBATE

A autorização do aborto se o estupro decorrer de violência presumida

Há duas posições: a) autoriza o aborto sentimental, pois está claramente prevista a hipótese em lei; b) não autoriza, pois é impossível a “morte de um ser humano” em nome de uma ficção. Preferimos a primeira posição, pois em harmonia com o princípio da legalidade. Lembremos que, após a edição da Lei 12.015/2009, foi revogado o art. 224 do CP, mencionando as hipóteses de violência presumida. Entretanto, tais situações foram incorporadas em tipo penal autônomo, intitulado estupro de vulnerável (art. 217-A). Por isso, pode permanecer o debate, acerca da autorização para o aborto caso ocorra estupro de vulnerável, logo, sem violência ou grave ameaça. Permanecemos fiéis à primeira orientação, agora respaldados na própria titulação da lei penal, vale dizer, a relação sexual com menor de 14 anos, enfermo ou doente mental e incapaz de resistir é considerada estupro. Se houver gravidez, deve-se autorizar o aborto.

A autorização do aborto se o feto for portador de anencefalia

A polêmica certamente existe. Preferimos acreditar que a lei penal, ao punir o aborto, busca proteger a vida humana, porém a vida útil e viável, não exigindo que a mãe carregue em seu ventre por nove meses um feto que, logo ao nascer, dure algumas horas e finde a sua existência efêmera, por total impossibilidade de sobrevivência na medida que não possui a abóbada craniana, algo vital para a continuidade da vida fora do útero. O anencéfalo não é protegido pelo direito penal, que se volta à viabilidade do feto e não simplesmente à sua existência física. Há quem sustente que pode haver erro de diagnóstico e a anencefalia não ser comprovada posteriormente. Ora, se tal ocorrer é um erro médico grave, sujeito à indenização como outro qualquer, mas não justifica a proibição para todas as gestantes que, efetivamente, possuem em seu ventre um feto completamente inviável. Não se tem notícia da existência de um ser humano vivo, sem integral calota craniana, que tenha se desenvolvido e atingido a idade adulta. Lembremos, ainda, que o Estado brasileiro é laico, permitindo, como é natural de uma autêntica democracia, a adoção e prática de qualquer culto ou crença e, inclusive, do ateísmo. Logo, ainda que alguns, por sentimentos religiosos, acreditem que faz parte da missão da gestante carregar dentro de si um feto inviável, pois o sofrimento é parcela integrante da existência humana, sendo moral e espiritualmente elevado que o faça, não se pode transformar a crença de um em mandamento para todos. Possa cada gestante, de acordo com suas livres convicções, estabelecer a melhor meta a seguir: manter a gestação do anencéfalo ou permitir o aborto. Outra posição, com a devida vênia, é lançar mão de convicção religiosa para impor a quem não a possui o fardo de gerar e parir um ser humano, que morrerá em pouco tempo, tão logo se desprenda da gestante. Nessa ótica, conclui Carolina Alves de Souza Lima: “apesar da existência da vida intrauterina do anencéfalo, não se legitima a atuação do Direito Penal para incriminar a conduta abortiva, sob pena de total desrespeito aos direitos à saúde e à liberdade de autonomia reprodutiva da mulher. Referidos direitos devem prevalecer nessa situação específica, porque não se justifica impor à mulher uma gestação na qual o concepto não possui competência biológica para adquirir consciência de si e do mundo e para se relacionar, uma vez que não tem e nunca terá estrutura cerebral que lhe dê capacidade para alcançar essa condição de desenvolvimento humano. O respeito aos direitos à saúde e à liberdade de autonomia reprodutiva da mulher deve prevalecer, uma vez que o reconhecimento expresso da dignidade da pessoa humana, como valor essencial do Estado Democrático de Direito brasileiro, representa, nessas circunstâncias, permitir que ela conduza sua vida segundo suas convicções pessoais, independentemente da imposição de qualquer dogma, moral, religião ou verdade absoluta sobre a compreensão do mundo e da vida” (Aborto e anencefalia, p. 169). E conclui José Henrique Pierangeli: “em se tratando de anencefalia, não pode a interrupção da gravidez ser considerada como aborto ou antecipação do parto, posto que falta o elemento básico, fundamental, que é a existência da vida humana. A malformação congênita do anencéfalo inviabiliza a vida extrauterina. (...) A interrupção da gravidez ou antecipação do parto, em caso de anencefalia, constituem condutas atípicas. Como se trata de conduta atípica, fica sem sentido a exigência de autorização judicial para a realização da medida médico-cirúrgica, podendo o médico atuar livremente, posto que se trata de atuação com finalidade terapêutica, que também torna sua conduta atípica” (Aspectos controvertidos nos crimes contra a vida: anencefalia, In: Direito penal e processo penal, p. 106).

Quanto ao tema, o STF julgou não configurar crime a interrupção da gravidez de fetos anencéfalos (ADPF 54, Pleno, rel. Marco Aurélio, 12.04.2012, m. v.).

A autorização do aborto eugênico

Algumas decisões têm autorizado abortos de fetos que tenham graves anomalias, inviabilizando, segundo a medicina atual, a sua vida futura livre de cuidados e amparo contínuos. Cremos ser razoável a invocação da tese de ser inexigível a mulher carregar por meses um ser que, logo ao nascer, morrerá. Mas não se pode dar margem a abusos, estendendo o conceito de anomalia para abranger fetos que irão constituir seres humanos defeituosos ou até monstruosos. Afinal, nessa situação, o direito não autoriza o aborto. Lamentavelmente, tem-se observado que nem todas as decisões autorizadoras do aborto ligam-se ao feto plenamente inviável. Algumas, levando em conta o sofrimento dos pais de terem em gestação um feto anormal, física ou mentalmente, mas com possibilidade de viver, ainda que com características monstruosas, acabam autorizando o aborto para fazer cessar a angústia dos genitores. Ora, as únicas hipóteses de aborto legal são as previstas no art. 128, e não se pode dizer que interromper a gestação de um ser anômalo irá “salvar a vida da gestante”. Abalos psicológicos não podem ser causa para a interrupção da gestação, mesmo porque a medicina evolui a passos largos dia após dia, o que significa que a perspectiva de cura pode alterar-se a qualquer instante. A inexigibilidade da conduta diversa é uma causa supralegal de exclusão da culpabilidade, que admitimos presente em nosso ordenamento, embora, em muitos casos, não se concretizem os seus requisitos. A disseminarmos tal conduta, nada impede, no futuro, que a eugenia – aprimoramento da raça humana – volte a imperar em nossa sociedade, permitindo que pais escolham qual tipo físico de criança desejam, provocando o aborto daquelas que, em padrões questionáveis, sejam “inviáveis”. Ora, se o direito protege, como preveem a doutrina e a jurisprudência predominantes, qualquer tipo de pessoa, mesmo a monstruosa (deformada ou de conformação anômala), não se compreende a razão pela qual, em alguns casos, leve-se em conta a possibilidade de a mãe optar pela morte do feto, encaixado na mesma situação. Ou seja: fetos que se constituirão em seres monstruosos ou de vida relativamente inútil, no futuro, podem ser sacrificados de imediato; recém-nascidos monstruosos, no entanto, não podem. Qual a diferença entre eles se o que se está protegendo é a vida? Note-se a lição da doutrina, na palavra abalizada de Hungria: “É suficiente a vida; não importa o grau da capacidade de viver. Igualmente não importam, para a existência do homicídio, o sexo, a raça, a nacionalidade, a casta, a condição ou valor social da vítima. (...) O próprio monstro (abandonada a antiga distinção entre ostentum e monstrum) tem sua existência protegida pela lei penal” (Comentários ao Código Penal, v. 5, p. 37). Idem: Noronha (Direito penal, v. 2, p. 18); Frederico Marques (Tratado de direito penal, v. 4, p. 104); Mirabete (Manual de direito penal, v. 2, p. 47), entre muitos outros. Não concordamos, pois, com a posição, nesse campo, ostentada por alguns penalistas que sustentam haver proteção indeclinável ao ser nascido monstruoso, mas concordam com o aborto do feto que, diante de anomalias, irá nascer monstruoso. Paulo José da Costa Júnior, por exemplo, menciona ser protegida – no campo do homicídio – qualquer vida humana, mesmo que o “recém-nascido seja um monstro, ou que a pessoa humana esteja desenganada por uma junta médica” (Comentários ao Código Penal, p. 358), embora depois afirme que andou bem o legislador ao permitir, no Anteprojeto de Reforma da Parte Especial do Código Penal, a possibilidade de abortamento de feto com graves e irreversíveis anomalias físicas ou mentais, pois seria inexigível obrigar os pais dessa criança anormal a “cuidarem do excepcional durante toda uma existência” (ob. cit., p. 384). A posição estaria justificada somente porque o feto tem “expectativa de vida” e o neonato já “nasceu vivo”? A monstruosidade pode ser a mesma e o bem jurídico “vida” também o é. Não podemos acolher a tese de que o feto, com anomalias, que irá constituir-se em ser vivo monstruoso, possa ser exterminado, enquanto, se os pais não o fizerem durante a gestação, não mais poderão assim agir quando o mesmíssimo ser monstruoso nascer. Se a vida humana deve ser protegida de qualquer modo, necessita-se estender essa proteção tanto à criança nascida quanto àquela que se encontra em gestação. E diga-se mais: a curta expectativa de vida do futuro recém-nascido também não deve servir de justificativa para o aborto, uma vez que não se aceita, no Brasil, a eutanásia, vale dizer, quem está desenganado não pode ser morto por terceiros, que terminarão praticando homicídio (ainda que privilegiado). Entretanto, se os médicos atestarem que o feto é verdadeiramente inviável, vale dizer, é anencéfalo (falta-lhe calota craniana), por exemplo, não se cuida de “vida” própria, mas de um ser que sobrevive à custa do organismo materno, uma vez que a própria lei considera cessada a vida tão logo ocorra a morte encefálica (art. 3.º, Lei 9.434/97). Assim, a ausência de viabilidade cerebral pode ser motivo mais que suficiente para a realização do aborto, que não é baseado, porém, em características monstruosas do ser em gestação, e sim na sua completa inviabilidade como pessoa, com vida autônoma, fora do útero materno, como já expusemos em item anterior.