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Estupro

Art. 213

Sujeito ativo

Qualquer pessoa (ver Parte Geral, capítulo XII, item 3.1).

Sujeito passivo

Qualquer pessoa (ver Parte Geral, capítulo XII, item 3.2).

Objeto jurídico

A liberdade sexual da pessoa humana (ver Parte Geral, capítulo XII, item 3.3, “b”).

Objeto material

A pessoa que sofre o constrangimento (ver Parte Geral, capítulo XII, item 3.3, “a”).

Elementos objetivos do tipo

Constranger (tolher a liberdade, forçar ou coagir) alguém (pessoa humana), mediante o emprego de violência ou grave ameaça, à conjunção carnal (cópula entre pênis e vagina), ou à prática (forma comissiva) de outro ato libidinoso (qualquer contato que propicie a satisfação do prazer sexual, como, por exemplo, o sexo oral ou anal, ou o beijo lascivo), bem como a permitir que com ele se pratique (forma passiva) outro ato libidinoso. A Lei 12.015/2009 unificou os tipos penais dos arts. 213 e 214 em uma só figura (art. 213), tornando-o tipo misto alternativo. Portanto, a prática da conjunção carnal e/ou de outro ato libidinoso, contra a mesma vítima, no mesmo contexto, é crime único. A pena é de reclusão, de seis a dez anos. Conferir o capítulo XIII, item 2.1, da Parte Geral.

Elemento subjetivo do crime

É o dolo (ver o capítulo XIV da Parte Geral).

Elemento subjetivo do tipo específico

É a finalidade de obter a conjunção carnal ou outro ato libidinoso, satisfazendo a lascívia. Ainda que haja intuito vingativo ou outro qualquer na concretização da prática sexual, não deixa de envolver uma satisfação mórbida do prazer sexual (ver Parte Geral, capítulo XIII, item 2.1). Sobre o estupro por vingança ver ponto relevante para debate abaixo. É o que se pode chamar de elemento subjetivo de tendência (a ação segue acompanhada de determinado ânimo, que é indispensável à sua realização), tal como se dá nos delitos sexuais (cf. Bustos Ramírez, Obras completas, v. I, p. 834). Igualmente: Jiménez Martínez, Elementos de derecho penal mexicano, p. 514.

Classificação

Comum (pode ser cometido por qualquer pessoa); material (o resultado naturalístico é o efetivo constrangimento à liberdade sexual sofrido pela pessoa, com eventuais danos físicos e traumas psicológicos); de forma livre (admite-se a conjunção carnal e qualquer outro ato libidinoso); comissivo; instantâneo; unissubjetivo; plurissubsistente. Sobre a classificação dos crimes, ver o capítulo XII, item 4, da Parte Geral.

Tentativa

É admissível, embora de difícil comprovação.

Momento consumativo

Basta a introdução, ainda que incompleta, do pênis na vagina, independentemente de ejaculação ou satisfação efetiva do prazer sexual, sob um aspecto; e com a prática de qualquer ato libidinoso, independentemente de ejaculação ou satisfação efetiva do prazer sexual, em outro prisma.

Particularidade

Preceituava a Lei 8.072/90 (art. 1.º, V, na antiga redação) ser o estupro um delito hediondo, trazendo, por consequência, todas as privações impostas pela referida lei, dentre as quais: o considerável aumento de prazo para livramento condicional, a impossibilidade de concessão de indulto, graça ou anistia, a elevação do prazo necessário para a progressão de regime, dentre outros. Havia posição considerando não serem o estupro e o atentado violento ao pudor (hoje incorporado ao estupro), na forma simples, delitos hediondos. Levava-se em consideração que assim não estaria previsto no art. 1.º, V e VI, da Lei 8.072/90, tendo em vista que a menção feita – “estupro (art. 213 e sua combinação com o art. 223, caput e parágrafo único)” e “atentado violento ao pudor (art. 214 e sua combinação com o art. 223, caput e parágrafo único)” – pretenderia indicar somente os referidos crimes na forma qualificada pelo resultado como hediondos. Nunca nos pareceu correto esse entendimento, uma vez que o texto legal indicava, nitidamente, que o estupro (art. 213) e também a sua combinação com o art. 223, isto é, quando for qualificado pelo resultado lesão grave ou morte, são hediondos. A despeito disso, o Supremo Tribunal Federal chegou a considerar não hediondos o estupro e o atentado violento ao pudor, quando na modalidade simples. Essa posição já não prevalecia no Pretório Excelso, que tornou a considerar hediondos os mencionados delitos, seja na forma simples, seja na qualificada pelo resultado. E o mais importante: passou a considerar hediondos esses crimes também quando houver violência presumida, o que já defendíamos anteriormente. Com o advento da Lei 12.015/2009, houve nova redação ao art. 1.º, V e VI da Lei 8.072/90, tornando claro ser hediondo tanto o estupro na forma simples quanto na qualificada, bem como o estupro de vulnerável, que era o anterior estupro com presunção de violência. Quanto aos estupros cometidos a partir de 7 de agosto de 2009, em qualquer modalidade (simples ou qualificado), são evidentemente hediondos. Porém, no tocante aos que tiverem sido cometidos antes da nova lei, pode-se, ainda, debater se são ou não hediondos, pois a Lei 12.015/2009, nesse prisma, é prejudicial ao réu e não poderia retroagir. Ressalte-se, no entanto, ser a jurisprudência do STF favorável ao entendimento de que eram hediondas as formas simples e qualificadas, logo, tudo leva a crer que nada se altere, nem antes, nem depois do advento da novel lei penal.

Qualificadora (gerando pena de reclusão, de 8 a 12 anos)

Se o crime for cometido contra vítima menor de 18 ou maior de 14 anos. Lembremos que o cometimento de estupro contra menor de 14 anos encontra-se regulado pelo art. 217-A.

Crime qualificado pelo resultado lesões graves

Se da conduta do agente, exercida com violência ou grave ameaça, resultar lesão corporal de natureza grave (são as hipóteses descritas no art. 129, §§ 1.º e 2.º, do CP) para a vítima, a pena é de reclusão, de oito a doze anos. O delito qualificado pelo resultado pode dar-se com dolo na conduta antecedente (violência sexual) e dolo ou culpa quanto ao resultado qualificador (lesão grave). Logo, são as seguintes hipóteses: a) lesão grave consumada + estupro consumado = estupro consumado qualificado pelo resultado lesão grave; b) lesão grave consumada + tentativa de estupro = estupro consumado qualificado pelo resultado lesão grave, dando-se a mesma solução do latrocínio (Súmula 610 do STF). Consultar o item “hipóteses possíveis”, comentando o art. 157 (Capítulo II). O crime é hediondo (art. 1.º, V, da Lei 8.072/90).

Crime qualificado pelo resultado morte

Se da conduta do agente, exercida com violência ou grave ameaça, resultar em morte da vítima, a pena é de reclusão, de 12 a 30 anos. O crime pode ser cometido com dolo na conduta antecedente (violência sexual) e dolo ou culpa quanto ao resultado qualificador (morte). Afiguram-se as seguintes hipóteses: a) estupro consumado + morte consumada = estupro consumado com resultado morte; b) estupro consumado + homicídio tentado = tentativa de estupro seguido de morte; c) estupro tentado + homicídio tentado = tentativa de estupro seguido de morte; d) estupro tentado + homicídio consumado = estupro consumado seguido de morte. Tecnicamente, dá-se uma tentativa de estupro seguido de morte, pois o delito sexual não atingiu a consumação. Porém, tem-se entendido possuir a vida humana valor tão superior à liberdade sexual que, uma vez atingida fatalmente, deve levar à forma consumada do delito qualificado pelo resultado. É o que ocorre no cenário do latrocínio, cuja base é a Súmula 610 do STF (“Há crime de latrocínio, quando o homicídio se consuma, ainda que não realize o agente a subtração de bens da vítima”).

Particularidade

Deve-se considerar o estupro e suas formas qualificadas pelo resultado nos mesmos termos em que se confere tratamento ao roubo e suas formas qualificadas, afinal, na essência, são idênticas modalidades de crimes compostos por duas fases, contendo dois resultados. Assim sendo, exige-se dolo na conduta antecedente (violência ou grave ameaça gerando o constrangimento) e dolo ou culpa no tocante ao resultado qualificador (lesão grave ou morte). Justamente por existirem, como possíveis, dois resultados (constrangimento violento + lesão ou morte), previu o legislador um crime único, com penalidade própria (§§ 1.º ou 2.º do art. 213, CP). Não está autorizado o juiz a quebrar essa unidade, visualizado concurso material (estupro + homicídio, por exemplo), onde não existem duas ações completamente distintas. Da conduta violenta, no cenário sexual, advém a morte da vítima. Inexiste concurso de delitos, mas um crime qualificado pelo resultado. Aplica-se, literalmente, o disposto pelo art. 19 do Código Penal, vale dizer, o resultado qualificador deve ocorrer, ao menos, culposamente.

image  PONTOS RELEVANTES PARA DEBATE

A questão do afastamento da configuração do estupro se a ameaça for justa

A posição dominante é no sentido de pouco importar a justiça da ameaça. Diz Hungria: “O agente pode ter a faculdade ou mesmo o dever de ocasionar o mal, mas não pode prevalecer-se de uma ou outro para obter a posse sexual da vítima contra a vontade desta. Não se eximiria à acusação de estupro, por exemplo, o agente de polícia que anulasse a resistência da vítima sob ameaça de denunciar crime que saiba tenha ela praticado (art. 66, I, da Lei das Contravenções Penais), hipótese que muito difere daquela em que a mulher, para evitar a denúncia, transige amigavelmente, de sua própria iniciativa, com o ameaçante, dispondo-se à prestação de um favor em troca de outro” (Comentários ao Código Penal, v. 8, p. 122). Embora, em tese, seja possível concordar com tal postura, é preciso destacar que a prova desse congresso sexual forçado é das mais difíceis, não se podendo, em hipótese alguma, utilizar presunções para a condenação. Não é incomum, de fato, que possa haver transigência à ameaça que teve início com a proposta de relação sexual para evitar uma denúncia. Pode ser conveniente à pessoa, no caso supramencionado, manter a cópula, de modo a garantir a impunidade do seu crime. O simples fato de a proposta ter partido do agente policial não afasta a incidência da pronta concordância da vítima. Portanto, não se deve exigir, nesses casos, como diz Hungria, que a mulher (ou outra pessoa) deva ter a iniciativa da troca de um favor por outro, sendo suficiente que ela aquiesça à referida troca. Justamente por isso, torna-se muito difícil provar tal constrangimento à conjunção carnal (ou a outro ato libidinoso) efetuado por ameaça consistente na prática de um mal justo.

A análise do grau de resistência da vítima

Ensinam Scarance Fernandes e Duek Marques que “a tendência, contudo, é a de não se exigir da ofendida a atitude de mártir, ou seja, de quem em defesa de sua honra deva arriscar a própria vida, só consentindo no ato após ter-se esgotado toda a sua capacidade de reação. É importante, em cada caso concreto, avaliar a superioridade de forças do agente, apta a configurar o constrangimento através da violência” (Estupro – Enfoque vitimológico, p. 268), com o que concordamos plenamente. Não há sentido em se exigir do ser humano uma postura heroica, sob ameaça de sucumbir ao agressor, somente para fazer prova de que a relação sexual foi, de fato, involuntária. Ilustrando: se a mulher, levada para lugar ermo, sob ameaça de arma de fogo, prestes a sofrer a conjunção carnal forçada, pedir ao agente que utilize preservativo, é evidente que há estupro e não relação consensual. Afinal, percebendo ser inútil qualquer reação, mais prudente se torna precaver-se, pelo menos, de doenças sexualmente transmissíveis, algumas fatais (como a AIDS). Atualmente, após a Lei 12.015/2009, unificando os crimes de estupro e atentado violento ao pudor, deve-se considerar o grau de resistência de qualquer pessoa (homem ou mulher), no caso concreto, guardadas as peculiaridades de cada um.

O estupro como crime único de condutas alternativas

A nova redação do crime de estupro, unificado ao atentado violento ao pudor, tornou-se muito semelhante ao tipo do art. 146 (constrangimento ilegal), do qual, aliás, emerge como uma especialidade. Constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, a ter conjunção carnal ou a praticar ou permitir que com ele se pratique outro ato libidinoso é a figura do art. 213. É constituída de verbos em associação: a) constranger alguém a ter conjunção carnal; b) constranger alguém a praticar outro ato libidinoso; c) constranger alguém a permitir que com ele se pratique outro ato libidinoso. São três possibilidades de realização do estupro, de forma alternativa, ou seja, o agente pode realizar uma das condutas ou as três, desde que contra a mesma vítima, no mesmo local e horário, constituindo um só delito. Constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, ou depois de lhe haver reduzido, por qualquer outro meio, a capacidade de resistência, a não fazer o que a lei permite, ou a fazer o que ela não manda é a figura do art. 146. Note-se a mesma estrutura: a) constranger alguém a não fazer o que a lei permite; b) constranger alguém a fazer o que ela não manda. Se o agente desenvolver ambas as condutas contra a mesma vítima, no mesmo cenário, comete um só delito de constrangimento ilegal. Há quem sustente tratar-se a nova figura típica do art. 213 de um tipo misto cumulativo, devendo-se separar as condutas (ao menos duas delas): a) constranger alguém à conjunção carnal; b) constranger alguém à prática de outro ato libidinoso. Se o agente desenvolver as duas, ainda que contra a mesma vítima, no mesmo cenário, deveria responder por dois delitos em concurso material, somando-se as penas. Essa posição nos parece injustificável. Basta conhecer o tipo cumulativo autêntico para perceber a nítida diferença entre as situações. Verifiquemos o disposto no art. 208: Escarnecer de alguém publicamente por motivo de crença ou função religiosa; impedir ou perturbar cerimônia ou prática de culto religioso; vilipendiar publicamente ato ou objeto de culto religioso. Observam-se, com clareza, três episódios distintos: a) a conduta de escarnecer de alguém; b) a conduta de impedir ou perturbar (alternativa nesse ponto) cerimônia ou culto; c) a conduta de vilipendiar ato ou objeto de culto. Todas elas são ofensivas ao bem jurídico liberdade de culto e crença, porém são totalmente distintas. Caso o agente cometa todas as condutas, deve responder por três delitos cumulados. Acrescente-se que o autor nem mesmo conseguirá agir contra a mesma vítima, no mesmo cenário. Eis a cumulação que não se pode, nem em tese, aplicar ao delito do art. 213, de constituição visivelmente diversa. Por isso, a modificação introduzida pela Lei 12.015/2009, no cenário do estupro e do atentado violento ao pudor, foi produto de política criminal legislativa legítima, pois não há crime sem lei que o defina, cabendo ao Poder Legislativo a sua composição. Ao Judiciário cabe interpretar a lei, criticá-la até, mas não se pode deixar de cumpri-la, a pretexto de não ser a norma ideal. Cabe, ainda, deixar de aplicá-la se ofender a Constituição Federal. Assim não sendo, respeita-se o fruto do Legislativo. Em primeiro lugar, deve-se deixar bem claro não ter havido a revogação do art. 214 do CP (atentado violento ao pudor) como forma de abolitio criminis (extinção do delito). Houve uma mera novatio legis, provocando-se a integração de dois crimes numa única figura delitiva, o que é natural e possível, pois similares. Hoje, tem-se o estupro, congregando todos os atos libidinosos (dos quais a conjunção carnal é apenas uma espécie) no tipo penal do art. 213. Esse modelo foi construído de forma alternativa, o que também não deve causar nenhum choque, pois o que havia antes, provocando o concurso material, fazia parte de um excesso punitivo não encontrado em outros cenários de tutela penal a bens jurídicos igualmente relevantes. A dignidade da pessoa humana está acima da dignidade sexual, pois esta é apenas uma espécie da primeira, que constitui o bem maior (art. 1.º, III, CF). Logo, pretender alavancar a dignidade sexual acima de todo e qualquer outro bem jurídico significa desprestigiar o valor autêntico da pessoa humana, que ficaria circunscrita à sua existência sexual. O agente do crime sexual, portanto, deve ter todos os direitos respeitados, tal como o autor de qualquer outro delito grave. Particularmente, não se pode olvidar princípios-garantia, constitucionalmente previstos, em nome de um subjetivismo individualista e, por vezes, conservador, para a interpretação do novo art. 213. Visualizar dois ou mais crimes, em concurso material, extraídos das condutas alternativas do crime de estupro, cometido contra a mesma vítima, na mesma hora, em idêntico cenário, significa afrontar o princípio da legalidade (a lei define o crime) e o princípio da proporcionalidade, vez que se permite dobrar, triplicar, quadruplicar etc., tantas vezes quantos atos libidinosos forem detectados na execução de um único estupro. Ilustrando, se o agente dominar a vítima e, sequencialmente, obrigá-la a masturbá-lo, enquanto lhe dá um beijo lascivo, para, em continuidade, alisar todo o seu corpo nu com as mãos. São computados, até o momento, três atos libidinosos. Insere-se, então, o sexo oral, após a conjunção carnal e finalmente o sexo anal. Eis o cômputo de outros três atos libidinosos, um deles a conjunção carnal, apenas espécie do gênero libidinagem. Finalizando seu propósito de satisfação da lascívia, o agente obriga a vítima a manter-se deitada enquanto ele ejacula sobre o seu corpo, constituindo-se o derradeiro ato libidinoso. Toda a cena transcorre num único local, contra a mesma vítima, em menos de uma hora. Afastando-se a alternatividade das condutas, privilegiando a tese da cumulatividade ou dos tipos penais conjuntos, constituindo cada conduta um delito distinto, temos a prática de sete atos libidinosos, compondo o universo de sete estupros, em concurso material, para os mais exigentes, totalizando 42 anos de reclusão, cuidando-se de delitos hediondos. Lembremos, por fim, estarmos exemplificando com a pena mínima. Se o magistrado individualizar, realmente, cada reprimenda, a pena pode ultrapassar os 42 anos de reclusão. Nem o mais cruel homicídio de uma pessoa atingiria pena tão elevada. Se tal medida não for ofensiva à legalidade e à proporcionalidade, parece-nos, ao menos, lesão ao bom senso. Ademais, antes que se possa criticar a pretensa brandura da nova lei com relação à punição do delito de estupro, conferindo-lhe pena de seis a dez anos, torna-se indispensável registrar a existência do princípio constitucional da individualização da pena. Não se deveria debater esse tema valendo-se, unicamente, da pena mínima. Afinal, o agente que atuar contra a vítima, obrigando-a à conjunção carnal e a outros atos libidinosos jamais deveria ser apenado com meros seis anos. A pena pode ser elevada até o patamar de dez anos, dependendo do caso concreto. Lembremos, ainda, que inúmeras outras situações, uma vez rompida a tese do tipo misto alternativo, poderão vir à tona em outros cenários. Aliás, a contar do crime de tráfico ilícito de drogas (art. 33, Lei 11.343/2006). Seus 18 verbos, constantes do tipo, permitem a realização em lugares diferentes, horários diversos, mas, ainda assim, são considerados alternativos. Ora, por que não transformá-los em cumulativos, pois são condutas graves e de interesse da sociedade sejam bem punidas? Porque o direito penal é calcado na legalidade e a redação do tipo adotou, como o fez o estupro, a forma alternativa, indicada pela partícula ou. Tanto faz uma conduta como duas ou mais, pois o delito é único. Evidente, por certo, que a mudança da história, do cenário e do período de tempo altera a consequência jurídica da avaliação. Se alguém mantiver em cativeiro uma mulher por anos a fio e durante dias seguidos a estuprar, cometerá vários estupros, provavelmente, em continuidade delitiva. São vários estupros porque o agente investiu contra a mesma vítima em dias sucessivos, mas bem diferenciados na linha do tempo. Porém, se, em cada um desses dias, o agente teve conjunção carnal e praticou beijo lascivo com a vítima, não cometeu dois estupros, mas um único por dia. Essa é a visão do art. 213, que não deve comportar tergiversação. Outra comparação plausível. Quando o agente se volta contra uma vítima e lhe retira, com violência, vários pertences, pratica um roubo, pois o patrimônio foi lesado de uma só vez, em ação única. Ora, do mesmo modo, quando o agente obriga uma vítima a praticar dois atos libidinosos, com violência, de uma só vez, comete um único estupro, pois a liberdade sexual foi lesada em ação única. Sob outro prisma, ambos os agentes retornam e o primeiro rouba, de novo, a vítima, no dia seguinte, bem como o segundo estupra, novamente, a vítima, no dia posterior, surgindo, então, dois novos crimes: um outro roubo e um outro estupro. Podem ser crimes continuados ou não, dependendo da análise das condições do art. 71 do Código Penal. A única argumentação harmônica à ideia de cumulatividade do tipo penal do art. 213 seria defender que conjunção carnal não é um ato libidinoso. Logo, o legislador estaria tutelando, num único tipo, dois bens diferentes. Seria o fundamento para se extrair a cumulação, pois o agente, tendo conjunção carnal e praticando ato libidinoso, teria ferido dois objetos distintos, embora ambos sob o manto da liberdade sexual. Entretanto, parece-nos impossível tal defesa, seja no cenário do direito penal, seja no âmbito de qualquer outra ciência. A penetração do pênis na cavidade vagínica é somente uma forma de libidinagem, leia-se, ato capaz de provocar prazer sexual. Outras penetrações têm o mesmo sentido e produzem o mesmo prazer. É verdade que a conjunção carnal pode produzir filhos, mas o estupro não é crime contra o casamento, nem contra o estado de filiação. Cuida-se de delito contra a liberdade sexual do indivíduo, que pode ter qualquer relacionamento sexual com quem quiser, desde que no pleno gozo do seu discernimento e maturidade. Qualquer lesão violenta a essa liberdade, de que forma for, constitui a justa medida para a punição do estuprador. A nova redação do art. 213 adotou a conhecida fórmula do tipo misto alternativo, que, em nome da legalidade e em respeito à proporcionalidade, garantias constitucionais fundamentais, deve ser respeitado. A submissão à lei é justamente o escudo protetor do indivíduo, caracterizando o Estado Democrático de Direito, cuja principal missão é tutelar a dignidade da pessoa humana. Em contrário, Vicente Greco Filho, citado por Alessandra Greco e João Rassi, escreve: “Neste momento nacional, de violência de todas as formas, de preocupação de respeito à dignidade da pessoa humana, de combate à pedofilia e violência sexual em especial, a reforma empreendida pela lei somente pode ser interpretada com esses componentes. Ameaça-se, contudo, uma interpretação que os nega e prestigia a violência sexual, compromete a dignidade da criança e da mulher especialmente e, mais que tudo, afronta o bom senso e o princípio do respeito à proporcionalidade e preventividade do Direito Penal” (Crimes contra a dignidade sexual, p. 142). Trata-se, em verdade, de posição mais vinculada à política criminal que a própria técnica legislativa de construção do tipo penal. Portanto, em nossa visão, cuida-se de desprestígio ao princípio da legalidade.

A perspectiva de aplicação do crime continuado, do concurso material, do concurso formal ou do crime único

Os atos sexuais violentos (conjunção carnal ou outro ato libidinoso) cometidos contra a mesma vítima no mesmo contexto configuram crime único, como exposto acima. Há um só bem jurídico lesado: a liberdade sexual da pessoa ofendida. Surge o delito continuado, quando se detecta a sucessividade das ações no tempo, podendo-se, também, captar mais de uma lesão ao bem jurídico tutelado. O crime continuado é uma ficção, criada em favor do réu, buscando uma justa aplicação da pena, quando se observa a prática de várias ações, separadas no tempo, mas com proximidade suficiente para se supor serem umas continuações das outras. Pode dar-se no contexto do estupro. O agente estupra uma mulher em determinado dia (lesão à sua liberdade sexual); retorna na semana seguinte e repete a ação, sob outro contexto (novamente fere a sua liberdade sexual). Pode-se sustentar o crime continuado. Inexiste crime único, pois a ação de constranger alguém, com violência ou grave ameaça, à prática sexual fechou-se no tempo por duas vezes distintas. Houve dois constrangimentos em datas diversas. O crime único demanda um constrangimento, cujo objeto final pode ser tanto a conjunção carnal quanto outro ato libidinoso ou ambos. O concurso material poderá ser aplicado entre estupros cometidos reiteradamente, quando os requisitos do art. 71 do Código Penal não estiverem presentes. Finalmente, o concurso formal somente tem sentido quando, no mesmo cenário, o agente constrange duas pessoas a lhe satisfazerem a libido, ao mesmo tempo. Pode-se debater se houve ou não desígnios autônomos.

A aplicação retroativa da nova figura do estupro

Discussão imediata se instalou nas cortes brasileiras em relação à análise do disposto no art. 213, com a redação dada pela Lei 12.015/2009. Em nosso entendimento, a posição do legislador foi clara ao unir, numa só figura, os dois delitos (estupro e atentado violento ao pudor). Portanto, o núcleo do tipo, constranger, volta-se a apenas um objeto, alguém, fornecendo-se várias possibilidades alternativas de consumação, sempre com a utilização de violência ou grave ameaça: a) obter a conjunção carnal; b) praticar outro ato libidinoso; c) permitir que seja praticado outro ato libidinoso. Ora, obter a conjunção carnal e um beijo lascivo, por exemplo, implicam no cometimento de um crime de estupro. Não há nenhuma possibilidade técnica de se romper a unidade legal do tipo, pretendendo-se visualizar dois crimes, quando calcados no mesmo cenário contra idêntica vítima. Há quem sustente a cumulatividade das condutas previstas no tipo penal, valendo-se de argumentos variados, em particular, os desígnios autônomos com que atuaria o agente. Porém, os desígnios autônomos advêm da avaliação do concurso formal, quando, por intermédio de uma só conduta, o autor consegue atingir mais de um bem jurídico. No caso do estupro, não se pode separar o que é naturalmente unitário. Analise-se sob outro prisma: o crime de estupro está consumado desde que o agente introduza o pênis na vagina uma só vez. E se introduzir várias vezes, por vários minutos, até atingir o orgasmo? Seriam vários estupros? Por evidente, um único. Da mesma forma, se o agente introduz o pênis na vagina e depois pratica coito anal, comete um só estupro. Por isso, a figura do art. 213, com a nova redação dada pela Lei 12.015/2009, é favorável ao réu e deve retroagir, atingindo todos os que foram condenados, antes, pela prática de estupro e atentado violento ao pudor, contra a mesma vítima, no mesmo contexto, em concurso material de infrações penais. No mesmo sentido está a posição de Rogério Sanches Cunha (Comentários à reforma criminal de 2009 e à Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados, p. 36).

A necessidade de criação de um tipo penal intermediário

Vários magistrados expressam a dificuldade de adequar determinadas condutas em estupro, quando poderiam configurar uma mera importunação ofensiva ao pudor. Por outro lado, há situações visivelmente intermediárias, superiores, em gravidade, à contravenção penal (art. 61, LCP), mas inferiores ao crime de estupro (art. 213, CP). É preciso criar figura intermediária, particularmente voltada a atos libidinosos de menor gravidade, merecedores de punição, mas sem a contundência das penas previstas para o estupro. Ilustrando, voltemo-nos ao que relatamos em nosso Crimes contra a dignidade sexual: “Caso real que me foi relatado por juiz, cujos dados específicos devemos omitir, pois se encontra, ainda, em fase de julgamento. Um professor de música orienta suas alunas com 9, 10 e 11 anos a irem às aulas sem calcinha e de saia. Enquanto tocam violino ou outro instrumento, são conduzidas a cruzar as pernas, de modo que o professor tenha acesso visível aos órgãos sexuais das infantes. Enquanto elas tocam, ele se masturba secretamente, embaixo da mesa, longe das vistas das meninas. Descoberta a situação, foi processado por estupro de vulnerável. Em tese, a tipificação está correta, pois envolve a prática de ato libidinoso, com menores de 14 anos. Entretanto, as meninas nem mesmo perceberam os atos praticados pelo professor. Seria viável condená-lo a uma pena de oito anos de reclusão, como delito hediondo? De outra parte, seria justo desclassificar para simples contravenção penal? Situações similares demandam tipificação intermediária, entre o crime e a contravenção. Embora possa o ato concreto ser considerado atentado ao pudor, hoje forma de estupro, padece da gravidade necessária para a faixa de punição do art. 217-A. Aguarda-se providência legislativa para tanto” (p. 61). O outro exemplo citado no tópico relativo à discussão acerca da vulnerabilidade absoluta ou relativa, no contexto do art. 217-A infra, demonstra a ocorrência de um beijo entre dois rapazes (um com 18; outro com 13 anos), classificado pela polícia judiciária como estupro, lavrando-se o auto de prisão em flagrante. Ora, mesmo que fosse um beijo extraído à força (no caso concreto, fora consentido), não se justificaria prender um rapaz de 18 anos como se fosse autêntico estuprador. É preciso, em nosso entendimento, a formação de figura típica incriminadora, configurando um estupro privilegiado, para condutas mais brandas, merecedoras de penas igualmente mais amenas.

O estupro cometido por vingança ou como instrumento de humilhação

Temos defendido que o estupro é um crime sexual grave, demandando o elemento subjetivo específico, consistente na satisfação da lascívia. Há posição contrária, sustentando que tal delito se perfaz somente com o dolo, sem nenhum elemento subjetivo específico, citando justamente como exemplo o estupro cometido por vingança ou para humilhar a vítima.

Não desconhecemos a viabilidade de um estupro ser cometido por motivação vingativa, vale dizer, o agente promove o coito anal, por exemplo, utilizando o emprego de violência, contra alguém (homem ou mulher) para mostrar seu poder, vingando-se ou humilhando outrem.

Entretanto, no caso do homem que assim age é indispensável haver ereção, algo que somente é alcançado pelo desejo, ainda que mórbido, sexual. Sob outro prisma, a mulher que se valha da violência ou grave ameaça para praticar ato libidinoso forçado com outra mulher ou homem somente para humilhar a vítima não deixa de atuar com lascívia mórbida. Utilizar o sexo como arma é um caminho escolhido por pessoas sexualmente desviadas, que, sem a menor dúvida, valem-se de uma forma específica de sadismo para fazer valer o seu secreto e íntimo prazer sexual.

Quem quer se vingar de alguém ou humilhar seu adversário, como regra, não se utiliza da prática de ato sexual algum; aliás, quer distância física da vítima nesse cenário. Pode agredi-la com qualquer tipo de arma, menos o seu próprio corpo.

Quem odeia outrem, pretende ferir essa pessoa das mais variadas maneiras, porém, sem envolvimento de qualquer contato sexual. No entanto, pretendendo vingar-se por tal mecanismo, usando como instrumento atos de intimidade, demonstra a sua morbidez e desvio sexual. No fundo, excita-se com o ato libidinoso de violência. Por isso, cremos estar sempre presente o elemento subjetivo específico no sentido de satisfação – mesmo que oculta – da própria lascívia.

Patrícia Easteal chega a mencionar que o “estupro não é um ato sexual. É um ato de violência que usa o sexo como arma. O estupro é motivado pela agressão e pelo desejo de exercer poder e humilhação” (Voices of Survivors, apud Sheila Jeffreys, The idea of prostitution, p. 244).

 

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Notas:

1) Há um único constrangimento ilegal quando o agente constrange a vítima, mediante violência, a não fazer algo permitido e a fazer algo não obrigatório.

2) Há um único estupro quando o agente constrange a vítima, mediante violência, a ter conjunção carnal e a praticar outro ato libidinoso.

3) Para argumentar, adotada a tese do tipo cumulativo, desprezando-se a alternatividade, se o agente constrange alguém, mediante violência, a praticar ato libidinoso (sexo oral) e a permitir que com ele se pratique outro ato libidinoso (sexo anal) seriam dois crimes em concurso material. Associando-se, no mesmo local, contra a mesma vítima, na mesma hora, uma conjunção carnal e um beijo lascivo, teríamos quatro crimes hediondos alcançando 24 anos de reclusão. Se o ousado agente desenvolvesse outros atos libidinosos, como p. ex., obrigar a vítima a masturbá-lo, seriam mais 6 anos, atingindo a pena de 30 anos de reclusão. Em suma, a prevalência da cumulatividade, nesse nível, sepultaria a tese do tipo alternativo e haveria o desrespeito aos princípios da legalidade e da proporcionalidade.

Atentado violento ao pudor

Art. 214

Artigo revogado pela Lei 12.015/2009.

Violação sexual mediante fraude

Art. 215

Sujeito ativo

Qualquer pessoa (ver Parte Geral, capítulo XII, item 3.1).

Sujeito passivo

Qualquer pessoa (ver Parte Geral, capítulo XII, item 3.2).

Objeto jurídico

A liberdade sexual (ver Parte Geral, capítulo XII, item 3.3, “b”).

Objeto material

A pessoa que sofre o constrangimento (ver Parte Geral, capítulo XII, item 3.3, “a”).

Elementos objetivos do tipo

Ter (obter ou conseguir) conjunção carnal (cópula entre pênis e vagina) ou praticar (realizar, executar) outro ato libidinoso (qualquer contato apto a gerar prazer sexual) com alguém (pessoa humana), mediante fraude (manobra, engano, logro) ou outro meio que impeça ou dificulte a livre manifestação de vontade da vítima. A pena é de reclusão, de dois a seis anos. Conferir o capítulo XIII, item 2.1, da Parte Geral.

Elemento subjetivo do tipo específico

É a finalidade de satisfazer a lascívia, por meio da conjunção carnal ou outro ato libidinoso, implícita no tipo. Ainda que haja intuito vingativo ou outro qualquer na concretização do ato libidinoso, não deixa de envolver uma satisfação mórbida do prazer sexual (ver Parte Geral, capítulo XIII, item 2.1). É que se pode chamar de elemento subjetivo de tendência (a ação segue acompanhada de determinado ânimo, que é indispensável à sua realização), tal como se dá nos delitos sexuais (cf. Bustos Ramírez, Obras completas, v. I, p. 834). Igualmente: Jiménez Martínez, Elementos de derecho penal mexicano, p. 514.

Elemento subjetivo do crime

É o dolo (ver o capítulo XIV da Parte Geral).

Classificação

Comum (pode ser cometido por qualquer pessoa); material (o resultado naturalístico é o efetivo constrangimento à liberdade sexual sofrido pela vítima, com eventuais danos físicos e traumas psicológicos); de forma livre (pode ser cometido por qualquer meio eleito pelo agente); comissivo; instantâneo; unissubjetivo; plurissubsistente. Sobre a classificação dos crimes, ver o capítulo XII, item 4, da Parte Geral.

Tentativa

É admissível.

Momento consumativo

Com a prática da introdução do pênis na vagina, ainda que parcial, independentemente de ejaculação ou satisfação efetiva do prazer sexual, ou com a realização de qualquer outro ato libidinoso, não se exigindo a efetiva satisfação sexual.

Forma qualificada

A pena é acrescida de multa, caso o crime seja cometido com o fim de obter vantagem econômica. Ressalte-se, entretanto, a dificuldade de se imaginar um delito sexual, cometido com emprego de fraude, visando qualquer tipo de lucro. Afinal, não se trata de atividade ligada à prostituição. Logo, de rara configuração a implementação da pena pecuniária.

Particularidades

a) nos mesmos moldes da unificação concretizada entre estupro e atentado violento ao pudor, concentrando-se ambas as condutas no tipo penal do art. 213, elaborou-se idêntica reunião de tipos penais, introduzindo parte do conteúdo do art. 216 (revogado) no art. 215. Por isso, o delito deixou de ser próprio e passou a ser comum. Tanto o homem quanto a mulher podem ser sujeito ativo ou passivo da violação sexual mediante fraude;

b) a reforma trazida pela Lei 12.015/2009 inseriu, de maneira inédita, a seguinte situação, além da fraude, no tipo do art. 215: “ou outro meio que impeça ou dificulte a livre manifestação de vontade da vítima”. Não havia necessidade alguma para tal inovação, o que poderá gerar amplitude indevida ao crime do art. 215. Afinal, quem tiver relação sexual com outra pessoa, estando esta alcoolizada, mas sem perda dos sentidos ou completamente incapaz de entender o que faz, poderá, em tese, responder por violação sexual. Não se pode negar que a ingestão de bebida alcoólica, mesmo em poucas doses, retira a livre manifestação de vontade de uma pessoa. Não é demais ressaltar que o legislador resolveu proibir a direção de veículo automotor se o motorista ingerir qualquer quantidade de álcool (Lei Seca). Ora, se alguns copos de cerveja impedem a direção, por que permitiria o consentimento para o relacionamento sexual? Sem dúvida, seria absurda a ideia de pretender punir por violação sexual quem tiver contato libidinoso com pessoa levemente alcoolizada. É preciso cautela para a utilização do art. 215. Se vantagem houve com essa inovação, pode-se indicar a possibilidade de desclassificação do estupro de vulnerável, envolvendo pessoa que, por outra causa, não possa oferecer resistência (art. 217-A, § 1.º, parte final). Ter relação sexual com alguém completamente embriagado, sem sentidos, constitui estupro de vulnerável, visto ser nula a capacidade de resistência ao ato sexual. Porém, caso não fique evidenciada a completa incapacidade de resistência, pode o julgador desclassificar a infração para a forma prevista pelo art. 215 do Código Penal.

Atentado ao pudor mediante fraude

Art. 216

Artigo revogado pela Lei 12.015/2009.

Assédio sexual

Art. 216-A

Sujeito ativo

Somente pessoa que seja superior ou tenha ascendência, em relação de trabalho, sobre o sujeito passivo (ver Parte Geral, capítulo XII, item 3.1).

Sujeito passivo

O subordinado ou empregado de menor escalão que o do sujeito ativo (ver Parte Geral, capítulo XII, item 3.2).

Objeto jurídico

A liberdade sexual (ver Parte Geral, capítulo XII, item 3.3, “b”).

Objeto material

A pessoa que sofre o constrangimento (ver Parte Geral, capítulo XII, item 3.3, “a”).

Elementos objetivos do tipo

Constranger alguém com o intuito de obter vantagem ou favorecimento sexual, prevalecendo-se o agente da sua condição de superior hierárquico ou ascendência inerentes ao exercício de emprego, cargo ou função. Constranger tem significados variados – tolher a liberdade, impedir os movimentos, cercear, forçar, vexar, oprimir –, embora prevaleça, quando integra tipos penais incriminadores, o sentido de forçar alguém a fazer alguma coisa. No caso presente, no entanto, a construção do tipo penal não foi bem feita. Nota-se que o verbo constranger exige um complemento. Constrange-se alguém a alguma coisa. Assim, no caso do constrangimento ilegal (art. 146, CP), força-se alguém a não fazer o que a lei permite ou a fazer o que ela não manda. No contexto dos crimes sexuais previstos nos arts. 213 e 214 do Código Penal, obriga-se a mulher a manter conjunção carnal (estupro) ou alguém a praticar ato libidinoso diverso da conjunção carnal (atentado violento ao pudor). Logo, há sentido na construção dos tipos penais, a ponto de se poder sustentar serem os delitos de estupro e atentado violento ao pudor complexos em sentido amplo, isto é, aqueles que se formam por meio da junção de um tipo incriminador com outra conduta qualquer. O estupro, por exemplo, é a união do constrangimento ilegal associado à conjunção carnal. Por isso, trata-se de um constrangimento ilegal específico, voltando-se a ofensa à liberdade sexual. O tipo penal do art. 216-A, no entanto, menciona, apenas, o verbo constranger, sem qualquer complementação, dando a entender que está incompleto. Afinal, a previsão “com o intuito de obter vantagem ou favorecimento sexual” é somente elemento subjetivo específico, dizendo respeito à vontade, sem qualquer ligação com a conduta retratada pelo constrangimento. Queremos crer que a única maneira viável de se compatibilizar essa redação defeituosa com o intuito legislativo, ao criar a figura criminosa do assédio sexual, é interpretar tratar-se de um constrangimento ilegal específico, assim como ocorre nos delitos de estupro e atentado violento ao pudor, com a diferença de que, no caso do assédio, não há violência ou grave ameaça. Assim, deve-se entender que a intenção do autor do assédio é forçar a vítima a fazer algo que a lei não manda ou não fazer o que ela permite, desde que ligado a vantagens e favores sexuais. Quer o agente obter, em última análise, satisfação da sua libido – por isso o favorecimento é sexual – de qualquer forma. A concessão de vantagem sexual não é, por si, ilegal, mas, ao contrário, trata-se de fruto da liberdade de qualquer pessoa. Por isso, somente quando o superior forçar o subordinado a prestar-lhe tais favores, sem a sua concordância livre e espontânea, termina constrangendo a vítima a fazer o que a lei não manda. Em síntese: qualquer conduta opressora, tendo por fim obrigar a parte subalterna, na relação laborativa, à prestação de qualquer favor sexual, configura o assédio sexual. Aliás, melhor teria sido descrever o crime em comento com os significados verdadeiramente pertinentes ao contexto para o qual o delito foi idealizado. Assediar significa “perseguir com propostas; sugerir com insistência; ser importuno ao tentar obter algo; molestar” (Dicionário Houaiss da língua portuguesa. Instituto Antônio Houaiss. Rio de Janeiro: Objetiva, p. 319). E, na mesma obra, cuida-se do assédio sexual, nos seguintes termos: “insistência importuna de alguém em posição privilegiada, que usa dessa vantagem para obter favores sexuais de um subalterno” (ob. cit., p. 319). Ora, o que se pretendeu atingir foi o superior, na relação empregatícia, que persegue os funcionários, insistentemente, com propostas sexuais, importunando-os. Atinge-lhes a liberdade sexual. Finalmente, acrescente-se que o verbo central deve ser conjugado com a figura secundária prevalecer-se – levar vantagem, tirar proveito. O constrangimento associa-se à condição de tirar vantagem de alguém, em razão da condição de superior hierárquico ou ascendência no exercício de cargo, função ou emprego. Há quem distinga duas modalidades de assédio sexual: a) intercâmbio ou chantagem sexual; b) ambiental. A primeira diz respeito à forma mais comum de assédio, em que o sujeito ativo busca constranger o sujeito passivo, de forma condicionante, à obtenção de algum favor sexual, em troca de algo, no âmbito laboral. A segunda, mais rara, relaciona-se ao sujeito ativo, que cria um ambiente de trabalho hostil a determinado empregado, com quem gostaria de ter algum contato sexual, mas sem qualquer agressão direta. O contexto laboral torna-se intimidativo, ofensivo ou humilhante para o trabalhador (cf. Virginia Arango Durling, El delito de acoso sexual, p. 983). A pena é de detenção, de um a dois anos. Conferir o capítulo XIII, item 2.1, da Parte Geral.

Elemento subjetivo do tipo específico

É a finalidade de obter vantagem ou favorecimento sexual (ver Parte Geral, capítulo XIII, item 2.1).

Elemento subjetivo do crime

É o dolo (ver o capítulo XIV da Parte Geral).

Classificação

Próprio; formal; de forma livre; comissivo; instantâneo; unissubjetivo; unissubsistente ou plurissubsistente, conforme o caso. Sobre a classificação dos crimes, ver o capítulo XII, item 4, da Parte Geral.

Tentativa

É admissível na forma plurissubsistente.

Momento consumativo

Com a prática do ato constrangedor, independentemente da obtenção do favor sexual.

Causa de aumento de pena

Eleva-se em até um terço a pena se a vítima é menor de 18 anos. Naturalmente, demanda-se seja também maior de 14 anos, afinal, investidas contra pessoa vulnerável, com o objetivo de ter conjunção carnal ou praticar outro ato libidinoso constitui estupro ou tentativa de estupro (art. 217-A).

Particularidade

Prevê-se o aumento, no caso do § 2.º, de até um terço, inovando-se nesse cenário de maneira negativa. Cabe ao legislador fixar o mínimo para toda causa de aumento e não somente o máximo. Do contrário, o magistrado pode estabelecer o aumento de um dia na pena, o que frustraria a ideia de existência de causa de aumento da pena. O erro legislativo parece-nos claro. Exemplificando, o assédio sexual cometido contra menor de 18 anos poderia ser apenado em um ano e um dia de detenção, como pena mínima. O aumento seria pífio, logo, desnecessário e inútil.

image  PONTOS RELEVANTES PARA DEBATE

A configuração do crime de assédio sexual entre professor(a) e aluno(a)

Não configura o delito. O tipo penal foi bem claro ao estabelecer que o constrangimento necessita envolver superioridade hierárquica ou ascendência inerentes ao exercício de emprego, cargo ou função. Ora, o aluno não exerce emprego, cargo ou função na escola que frequenta, de modo que a relação entre professor e aluno, embora possa ser considerada de ascendência do primeiro no tocante ao segundo, não se trata de vínculo de trabalho.

A configuração do crime de assédio sexual entre ministro religioso e fiel

Não se configura o crime, pelas mesmas razões já expostas na questão anterior. O padre, por exemplo, não tem relação laborativa, caracterizadora de poder de mando, estando fora da figura típica. Não deveria estar alheio a este delito, pois há possibilidade fática de existir assédio sexual nesse contexto, ainda que motivada a subserviência pela fé, visto existir o liame de ascendência de um (sacerdote) sobre outro (fiel).

A paixão do agente pela vítima

Não serve para excluir o crime. O art. 28, I, do Código Penal, é claro ao dispor que a emoção e a paixão não afastam a responsabilidade penal. Assim, ainda que o autor do delito esteja, realmente, apaixonado pela vítima, exigindo dela favores sexuais, valendo-se da condição de superior na relação empregatícia, o crime está configurado. Entretanto, pode a paixão justificar uma perseguição mais contundente do superior à vítima, sem que isso configure assédio sexual, desde que a intenção do agente fique nitidamente demonstrada, ou seja, não se trata de atingir um mero favorecimento sexual, mas uma relação estável e duradoura. Faltaria, nessa hipótese, o elemento subjetivo específico, que é a obtenção de vantagem ou favor sexual – algo incompatível com a busca de um relacionamento sólido. O que é inadmissível, no entanto, é valer-se da condição de superior para exigir um contato sexual, a fim de garantir uma proximidade maior com a parte ofendida, mesmo que seja para posterior comprometimento sério. Em outras palavras, se o superior perseguir uma funcionária, por exemplo, propondo-lhe namoro ou casamento, mas sem ameaçá-la, não há assédio. Se propuser, em nome do sentimento, contato sexual, sem qualquer ameaça, também não há crime. Entretanto, se, em nome da paixão, constranger a vítima a conceder-lhe favores sexuais, certo de que, dessa forma, conseguirá conquistá-la, termina incidindo na figura do assédio sexual.