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Os limpa-pára-brisas afastam a massa de água. Quando o semáforo fica verde, o carro-patrulha desvia-se da fila e dos anúncios nos autocarros a hospitais privados que oferecem novos seios, botox e lipoaspirações e dirige-se para os subúrbios.

O rádio está ligado. A tagarelice dos locutores e as músicas pop mais recentes sobre sexo, traseiros e paixões são momentaneamente substituídas pelas notícias, com o locutor a dizer-nos que estamos na primeira terça-feira de Outubro e que, portanto, é a abertura do Parlamento. A notícia principal, não surpreendentemente, é sobre a ministra Rosa Hartung, que regressou às funções depois da tragédia com a sua filha, que foi seguida por todo o país, de respiração sustida, há quase um ano. Mas, antes de o locutor continuar, o estranho ao lado de Thulin baixa o som do rádio.

— Não tens uma tesoura ou algo do género?

— Não, não tenho nenhuma tesoura.

Thulin desvia o olhar do trânsito e olha para o homem sentado ao seu lado, que tenta abrir a embalagem de um telemóvel novo. Estava de pé, a fumar um cigarro perto do carro, quando ela desceu à garagem da esquadra. Alto, magro, mas também com um ar um pouco infeliz. Cabelo fino e molhado da chuva, ténis Nike gastos e encharcados, calças finas e largas, casaco curto que também parecia ter andado à chuva. O homem não estava vestido para o clima local, e Thulin pensou que devia ter saído de Haia com as roupas que tinha vestidas. Uma mala de viagem pequena e fechada ao seu lado contribuía para essa impressão. Thulin sabia que ele tinha aparecido na esquadra ontem, porque acabara de ouvir dois colegas a falarem dele quando fora buscar o café matinal ao refeitório. Um suposto agente de ligação, destacado para a sede da Europol, em Haia, que fora subitamente dispensado e mandado para Copenhaga porque tinha feito uma asneira qualquer. O que dera origem a comentários sarcásticos dos colegas, porque a relação da polícia dinamarquesa com a Europol já estava numa situação precária depois de um não dinamarquês à abolição de algumas reservas num referendo, anos antes.

Quando Thulin o encontrou na garagem, estava absorto nos seus pensamentos, e, quando ela se apresentou, limitou-se a estender-lhe a mão e a dizer «Hess». Não era muito falador. Normalmente, ela também não era, mas a conversa com Nylander correra como o previsto. Sentia-se confiante de que a sua presença no departamento seria em breve coisa do passado, e por isso não lhe fazia mal nenhum ser simpática para o novo colega, que estava a fazer o percurso inverso. Quando entraram no carro, descrevera o que sabia do caso, mas o tipo limitara-se a assentir, mostrando apenas o mínimo interesse. Ela calculou que teria entre 37 e 41 anos, e, com o cabelo puxado para o lado, fazia-lhe lembrar um actor, mas não se lembrava de qual. Tinha um anel no dedo, possivelmente uma aliança de casamento, mas o seu pensamento instintivo foi que seria divorciado ou pelo menos que estaria em processo de divórcio. O encontro inicial dera-lhe a impressão de que estava a falar com uma parede, mas, de qualquer forma, não era coisa que pudesse arruinar o seu humor, já que estava interessada na cooperação entre polícias, algo de que ele fazia parte.

— Então, quanto tempo vais ficar cá?

— Apenas alguns dias. Estou à espera de que me digam.

— Gostas de estar na Europol?

— Sim, é bom. O tempo lá é melhor.

— É verdade que o departamento de cibercrime deles recruta os hackers que apanham?

— Não sei, não sou desse departamento. Há problema se eu me ausentar por um instante depois de visitarmos o local do crime?

— Ausentar?

— É só uma hora. Tenho de ir buscar as chaves do meu apartamento.

— Claro.

— Obrigado.

— Mas estavas a viver em Haia?

— Sim, lá ou onde quer que fosse necessário.

— E onde é isso?

— Varia. Marselha, Génova, Amesterdão, Lisboa…

O homem concentra-se na embalagem do telemóvel, que lhe resiste, mas Thulin adivinha que a sua estadia pode ser mais longa. O homem tem algo de cosmopolita. Uma espécie de viajante sem bagagem, mas que já perdeu o deslumbramento com as grandes cidades e os céus distantes. Se é que alguma vez o teve.

— Então há quanto tempo partiste?

— Vai fazer cinco anos. Empresta-me isso.

Hess abre uma caneta que está no suporte para copos e espeta o bico da caneta na embalagem.

— Cinco anos?

Thulin fica surpreendida. A maioria dos agentes de ligação de quem ouviu falar tinha contratos de dois anos. Alguns prolongavam o contrato por um período igual e faziam quatro anos. Mas nunca ouvira falar de um agente de ligação que tivesse estado fora cinco anos.

— O tempo passa depressa.

— E foi por causa da reforma da polícia?

— O quê?

— Que partiste. Ouvi dizer que muitos deixaram o departamento porque estavam insatisfeitos com…

— Não, não foi por isso.

— Então foi porquê?

— Porque sim.

Ela olha para ele. Ele retribui o olhar, e ela estuda os seus olhos pela primeira vez. O olho esquerdo é verde, o direito é azul. Ele não é antipático quando lhe responde, mas estabelece o limite e não fala mais. Thulin faz pisca e vira para um bairro de vivendas. Se ele quer armar-se em machão com um passado misterioso, pois seja. A esquadra tem tipos como ele em quantidade suficiente para formarem uma equipa de futebol.

A casa é branca e bem cuidada, e tem garagem. Está situada num bairro residencial de Husum, com colinas verdejantes e fileiras arrumadas de caixas de correio à beira da estrada. É para aqui que vem viver a classe média quando a família nuclear é uma realidade e a economia está em baixa. Muita segurança e lombas na estrada, que garantem que a velocidade não excede os 30 quilómetros por hora. Trampolins nos jardins e restos de marcas de giz no asfalto molhado. Duas crianças em idade escolar com capacetes e reflectores passam de bicicleta debaixo de chuva enquanto Thulin vira e estaciona ao lado dos carros-patrulha e dos veículos dos técnicos. Alguns residentes protegidos por guarda-chuvas conversam entre si, um pouco atrás da barreira policial.

— Tenho de atender. — Menos de dois minutos antes, Hess introduzira um cartão sim no telemóvel e enviara uma mensagem, e a resposta já está a chegar.

— Tudo bem, fica à vontade.

Thulin sai para a chuva, e Hess fica sentado e atende o telefone em francês. Enquanto ela caminha para o parque com os tradicionais mosaicos de betão, descobre que pode ter encontrado outro motivo para se querer ir embora.