Thulin despeja o caixote do lixo em cima de dois folhetos de publicidade no chão da cozinha e começa a vasculhar nele com um garfo que tirou da gaveta. Usa luvas de borracha, e o cheiro de comida estragada, beatas de cigarros e latas vazias atinge-lhe as narinas enquanto separa recibos de compras sujos, na esperança de que algum deles lhe diga para onde o casal pode ter fugido. Genz e os técnicos forenses já revistaram a casa toda mais cedo naquele dia, mas Thulin prefere fazer a sua própria investigação. No entanto, não encontra nada. Apenas recibos de supermercado e de lavandaria, provavelmente do fato que Asger Neergaard usava quando conduzia o carro de Rosa Hartung. Thulin deixa o lixo espalhado em cima dos folhetos. Está na parte residencial do velho matadouro, e, à excepção dela e de dois outros carros-patrulha que estão a vigiar os edifícios à distância, o lugar está vazio. Até agora, só conseguiu apurar que Genz e os seus técnicos fizeram um bom trabalho. Não há nada que indique que o casal tinha outra casa para além desta, nem sinais de que tinham pensado em rotas de fuga ou em esconderijos alternativos. Mais cedo nesse dia, tinham descoberto que uma câmara frigorífica do velho matadouro fora equipada com um colchão no chão, um edredão, uma casa de banho portátil e alguns livros do Pato Donald, o que indicava que tencionavam aprisionar ali Gustav Hartung.
Thulin estremece ao pensar nisso, mas, por outro lado, as suas observações da casa não indicam que é um casal de assassinos perversos que ali vive. Pelo menos não como ela os imagina. É óbvio que Asger Neergaard vive ali e não no quarto que, segundo os registos públicos, aluga na casa de um ex-colega do exército, e aparentemente tem uma queda por banda-desenhada manga japonesa sobre mulheres com pouca roupa. Mas essa foi a coisa mais radical que encontrou entre os pertences dele. Para os seus 30 anos de idade, é mais estranho gostar da série Huset på Christianshavn e de velhas comédias dinamarquesas com Dirch Passer e Ove Sprogøe, que se passam todas em tempos soalheiros, com campos verdejantes e bandeiras dinamarquesas hasteadas. Parece que as via num leitor de DVD empoeirado e num velho televisor de ecrã plano, deitado num sofá de couro gasto, mas, para Thulin, isto não indica necessariamente psicopatia e irresponsabilidade.
As descobertas que lhes diziam mais sobre a personalidade de Benedikte eram um pouco mais radicais: livros sobre retirada da guarda dos filhos, páginas do Código Civil revistas e comentadas, bem como revistas jurídicas sobre os interesses da criança e coisas do género. Entre os seus pertences encontrados em algumas gavetas havia também pastas e dossiês cujo conteúdo dizia respeito ao filho deles e à correspondência que ela trocara com as autoridades e o advogado. Quase todas as páginas tinham anotações manuscritas, algumas ilegíveis, mas todas com pontos de interrogação ou de exclamação, e Thulin sentiu a raiva e a frustração que havia por trás delas. Mas também havia livros de poesia dos tempos de escola de Benedikte, com as capas decoradas com uma fotografia dela e de Asger Neergaard na relva, à beira de uma estrada, bem como as notas do curso de Enfermagem e informações sobre vários programas de preparação para a gravidez e para o parto.
Quanto mais Thulin via, mais dificuldade tinha em aceitar que aquele casal tinha cometido os homicídios que investigara com Hess. Era pelo menos igualmente difícil imaginar aquele casal a conseguir impedir a investigação dos homicídios durante várias semanas, e por isso concluiu que o cepticismo que Hess expressara a Nylander estava certo.
Quando viu as paredes do apartamento dele em Nørrebro, naquela manhã, pensou que ele tinha perdido o juízo. Que era muito preocupante ele não conseguir aceitar que a rapariga Hartung tinha morrido há muito tempo. E o facto de ter tomado a iniciativa de fazer a visita pouco ortodoxa a Genz e à Segurança não melhorou a situação. Lembrou-se de que não sabia nada acerca de Hess ou do seu passado, mas, depois da visita à Segurança, começou a ter dúvidas, e agora já se imagina a voltar lá com Hess para falarem com Linus Bekker e tentarem descobrir o que ele sabe dos assassinatos e de Kristine Hartung.
Neste momento, contudo, a prioridade é Gustav Hartung, e, quando Thulin acabou de vasculhar os últimos armários e gavetas no andar de cima, dirige-se para a porta para ir ter com Genz e ajudá-lo com o portátil Lenovo que ele disse estar a causar-lhe dificuldades. Ela vira a esquina por baixo das escadas e atravessa o corredor quando um som débil a faz parar. Um alarme disparou algures, mas aparentemente não na casa onde se encontra agora. Tem um ritmo mais lento do que o alarme de um carro, mas é igualmente insistente. Thulin dá meia-volta e dirige-se novamente para a cozinha e para a parte que liga ao matadouro. Abre a porta, e o som torna-se mais nítido. O espaço grande e oblongo está às escuras, e ela pára, porque não sabe onde estão os interruptores. Subitamente, apercebe-se de que, se o jovem casal não é o assassino, o verdadeiro culpado pode estar ali, algures na escuridão. Tenta afastar esse pensamento, porque não tem motivos para achar que o criminoso poderia ter ido para ali naquele momento, mas ainda assim pega na pistola e aponta-a.
Com a luz do telemóvel, Thulin ilumina o seu caminho pelo velho matadouro. Avança na direcção do som enquanto passa por câmaras frigoríficas sucessivas, incluindo a que se destinava a Gustav Hartung. Algumas das câmaras frigoríficas estão completamente vazias, à excepção dos ganchos suspensos do tecto, mas a maioria está cheia de caixas e tralhas velhas.
Thulin pára junto à porta de uma das últimas câmaras frigoríficas. O som vem dali, e, depois de dar dois passos para dentro daquele espaço, percebe que deve ser o lugar que Asger Neergaard usa para treinar. Com a ajuda da luz do telemóvel, consegue identificar velhos kettlebells, um suporte de pesos, uma bicicleta de corrida estragada, bem como um par de botas militares enlameadas e um uniforme de camuflado sujo. Mas o mais notável é o cheiro. Embora esteja num antigo matadouro, nenhum dos outros espaços cheirava a carne estragada como este, mas não pensa demasiado no assunto até que detecta um movimento num canto. Aponta a luz nessa direcção, e, embora os animais sejam atingidos pela luz forte, não reagem. Quatro ou cinco ratazanas mordem furiosamente a parte de baixo de um minifrigorífico velho que está num canto, ao lado de algumas ferramentas de jardinagem e de uma tábua de engomar fechada. O ecrã na parte da frente do frigorífico pisca e emite o tal apito, porque as ratazanas roeram a borracha da tampa, conseguindo assim abri-la. Thulin aproxima-se do frigorífico, mas, quando dá um toque com o pé nas ratazanas, elas fogem por entre as suas pernas. Param a uma curta distância, avançam e recuam, e guincham histericamente. Quando Thulin abre cuidadosamente a tampa e olha lá para dentro, tem de tapar a boca para não vomitar.