— Mas tem a certeza absoluta? Benedikte Skans fez o turno da noite entre sexta-feira, 16 de Outubro, e sábado, 17 de Outubro?
— Sim, tenho. Acabo de confirmar com a enfermeira-chefe, que também estava a trabalhar nessa noite.
Hess agradece e desliga a chamada com o assistente criminal, ao mesmo tempo que chega ao piso do Ministério dos Assuntos Sociais, onde fica o gabinete de Rosa Hartung. São quase onze da noite, e a sala de espera fervilha com nervosismo controlado e telemóveis a tocar. Dois assistentes criminais ainda estão a falar com alguns funcionários, duas funcionárias estão de pé, de olhos vermelhos, e falam baixinho, e nas mesas há sacos com sushi que ainda ninguém teve tempo para abrir.
— A ministra está no gabinete?
A secretária chinesa assente para Hess, e ele dirige-se para as portas de mogno ao mesmo tempo que memoriza o código do iPad que ainda há pouco trouxe emprestado da sala dos motoristas de Christiansborg.
Thulin tinha razão quando dissera que o rapaz Hartung era a sua prioridade neste momento. Da esquadra, Hess dirigira-se ao Ministério dos Assuntos Sociais para ajudar a procurar informações sobre as movimentações do casal e possíveis residências alternativas, interrogando as pessoas que lidavam diariamente com Asger Neergaard. Mas percebera muito rapidamente que ninguém sabia nada. Os assistentes criminais já tinham feito o seu trabalho, e o facto de Hess ter falado com as pessoas não alterou os resultados. Asger Neergaard não se dava com nenhum dos colegas e não falava da sua vida privada, das suas actividades de lazer nem de nada que pudesse interessar-lhes. Em vez disso, Hess ouvira descrições dele como pessoa. Alguns tinham-no achado estranho desde o início — diferente, calado, talvez até um pouco perigoso —, mas Hess estava habituado a ouvir aquele tipo de descrições depois do escândalo. As estações televisivas estavam há várias horas a bombardear os cidadãos com a informação de que Gustav Hartung estava desaparecido, e forneciam descrições dos suspeitos, um dos quais revelou ser o motorista de Rosa Hartung. Se alguém duvidasse do interesse da história, bastava olhar para o exército de carrinhas de televisão e de jornalistas que se tinha reunido no pequeno espaço em frente ao ministério, mas a divulgação também significava que os testemunhos de carácter tinham, há muito, sido moldados pelos media. A parte dos testemunhos que inspirava mais confiança em Hess sugeria que Asger Neergaard era introvertido e ingénuo, uma pessoa reservada, e usava as pausas para fumar e falar ao telefone junto ao canal, em vez de ir para a sala dos motoristas em Christiansborg.
Hess também lá estivera, e um dos motoristas mais velhos contara-lhe como ajudara repetidas vezes Asger com o sistema de fecho da garagem, onde os carros dos ministros eram estacionados durante a noite. Isso por si só dizia a Hess que era pouco provável que aquele tipo, juntamente com a namorada, tivesse conseguido planear os assassinatos cuidadosamente elaborados de Laura Kjær, Anne Sejer-Lassen e Jessie Kvium.
Pareceu-lhe ainda mais improvável quando outro colega de Asger Neergaard lhe mostrou a agenda electrónica dos motoristas, provavelmente o motorista do ministro da Energia. Era um calendário detalhado das actividades dos respectivos motoristas, e todos tinham o dever de indicar no ecrã do registo electrónico dos carros onde estavam em todos os momentos e que tarefa estavam a desempenhar. O olhar de Hess localizou rapidamente as actividades de Asger Neergaard numa determinada data e depois disso regressou ao Ministério dos Assuntos Sociais. Pelo caminho, ligou e falou com um dos assistentes criminais que fora enviado ao local de trabalho de Benedikte Skans, e é sobre isso que quer agora falar com Rosa Hartung.
Quando Hess entra no gabinete da ministra, é óbvio que ela está louca de preocupação com o filho. Tem as mãos a tremer, os olhos vermelhos e com uma expressão ansiosa, além do rímel borrado, embora tenha tentado limpá-lo. O marido também lá está, naquele momento a meio de um telefonema, que faz menção de interromper ao ver Hess, mas Hess abana a cabeça, dizendo que não descobriu nada de novo. Rosa Hartung e o marido escolheram ficar no ministério, em parte porque tinham de ser interrogados acerca de Asger Neergaard e em parte porque o ministério e os seus funcionários podiam mantê-los a par das novidades. Hess supõe que também não queriam estar sozinhos. Em casa, teriam de se confrontar com a preocupação, mas ali, pelo menos, podiam sentir-se activos, questionando os assistentes criminais acerca dos resultados à medida que eles iam interrogando as pessoas.
Enquanto Steen Hartung continua a sua conversa, Hess olha para Rosa Hartung e aponta para a grande mesa de reunião.
— Podemos sentar-nos por um momento? Queria fazer-lhe umas perguntas e espero que possa responder. Seria uma grande ajuda.
— O que é que já descobriram? O que está a acontecer neste momento?
— Infelizmente, não temos novidades. Mas temos todas as equipas a trabalhar no caso, todos os carros estão na rua, e estamos a vigiar todas as fronteiras.
Hess consegue ver o medo nos olhos dela e percebe que ela tem noção de que a vida do filho corre perigo, mas tem de lhe falar da sua descoberta, portanto, assim que ela aceita que não há novidades, Hess pousa o iPad na mesa entre eles.
— Na sexta-feira, dia 16 de Outubro às 23h57, o seu motorista, Asger Neergaard, registou no diário electrónico que levou o carro ao edifício Diamante Negro da Biblioteca Real para a ir buscar a um evento. Escreveu no registo que ficou à espera no átrio até às 00h43, altura em que escreveu «Fim-de-semana. Conduzir até casa». É verdade que ele estava à sua espera no átrio e que a levou para casa a essa hora?
— Não entendo porque é que isso é importante. O que tem isso a ver com o Gustav?
Hess não quer perturbá-la ainda mais lembrando-a de que a data e a hora que mencionou correspondem ao momento do terceiro e quarto homicídios. Se as informações do registo estão correctas, Asger Neergaard não poderia ter chegado à colónia de férias a tempo para matar Jessie Kvium e Martin Ricks e amputar as duas mãos e o pé antes de Hess e Thulin aparecerem no local. E, uma vez que Hess já confirmou que Benedikte Skans estava de serviço na secção pediátrica do hospital nessa mesma noite, é extremamente importante.
— É importante por motivos que não posso revelar neste momento. Seria uma grande ajuda se conseguisse lembrar-se. É verdade que ele esperou por si e que a levou para casa a esta hora?
— Mas não sei por que motivo isso está no registo dele, porque eu cancelei o evento e não estive presente.
— A senhora não estava lá?
Hess tenta esconder a sua desilusão.
— Não. O Frederik, Frederik Vogel, o meu conselheiro, cancelou por mim.
— Tem a certeza de que não esteve lá? O Asger Neergaard escreveu que…
— Tenho a certeza. Tínhamos decidido que eu e o Frederik iríamos porque não era longe do ministério. Mas algumas horas antes voltámos a falar no assunto. Foi na noite em que o meu marido esteve na televisão, e o Frederik achou que não faria mal cancelar, e eu fiquei contente porque preferia estar com o Gustav…
— Mas, se o Vogel cancelou a sua presença, porque é que o motorista…
— Não sei. Tem de perguntar ao Frederik.
— Onde é que ele está?
— Teve de ir tratar de qualquer coisa, mas deve estar a regressar. Mas eu gostaria de saber o que estão a fazer neste momento para encontrarem o Gustav.
O grande gabinete de Frederik Vogel está vazio e escuro. Hess fecha a porta quando entra. É uma sala agradável. Espaçosa e confortável, diferente dos espaços frios e impessoais do ministério. Hess dá consigo a pensar que talvez seja o tipo de sala que as mulheres acham sexy, com aquele ambiente tão relaxado. Candeeiros Verner Panton, tapetes felpudos e sofás italianos baixos com muitas almofadas. Só lhe falta a música suave de Marvin Gaye, e, por um momento, Hess sente inveja, porque nunca teria tido energia para criar um espaço assim.
Não é a primeira vez naquela noite que Hess se pergunta onde estará o conselheiro da ministra. Sabe que os assistentes criminais interrogaram Frederik Vogel, de 37 anos, por volta das 19h00, e que ele não expressara outra coisa que não surpresa ao descobrir quem Asger Neergaard realmente era. Mas, quando Hess chegara ao ministério, há cerca de duas horas, o conselheiro não estava presente, segundo o secretário de Estado por estar a tratar de um assunto na cidade. Aquilo surpreendera Hess, já que a ministra de Vogel estava a atravessar uma crise profunda e estava a ser cercada pela imprensa.
Hess não sabe muito acerca de Vogel. Rosa Hartung disse-lhe há pouco que ele sempre lhe deu muito apoio. Estudaram Ciência Política juntos em Copenhaga durante alguns anos, antes de seguirem caminhos diferentes porque Vogel conseguira entrar para o curso de Jornalismo. Mantiveram-se em contacto, e Vogel acabou por se tornar amigo da família. Quando ela foi nomeada ministra, a decisão de o tornar seu conselheiro surgiu naturalmente. Ele dera muito apoio a Rosa e à sua família no difícil ano que se seguiu ao desaparecimento de Kristine e ajudou-a muito a conseguir reunir a coragem suficiente para regressar ao governo.
— O que disse ele quando soube que a senhora e o seu marido tinham esperança de que a vossa filha esteja viva? — perguntou Hess.
— O Frederik é muito protector, portanto, a princípio ficou preocupado com a minha situação enquanto ministra. Mas agora apoia-nos completamente.
Hess dá uma volta à sala para formar uma imagem do homem cuja secretária está carregada de papéis do velho caso de Benedikte Skans e de anotações sobre uma estratégia para lidar com a imprensa, mas, tirando isso, não encontra nada de interessante. Até que Hess toca no rato do MacBook que está em cima da mesa. A protecção de ecrã do computador portátil começa a apresentar fotografias de Vogel em vários momentos da sua carreira: Vogel em frente à sede da UE em Bruxelas, Vogel a apertar a mão da chanceler alemã no salão de Christiansborg, Vogel em Nova Iorque em frente ao memorial do World Trade Center e Vogel e Rosa Hartung a visitarem um acampamento de cuidados infantis das Nações Unidas. Mas, entre as fotografias oficiais, há também fotografias de Frederik Vogel e da família Hartung: aniversários das crianças, campeonatos de andebol e passeios a parques de diversões. Fotografias de família tradicionais, e Vogel está incluído nelas.
Hess começa por se tentar convencer de que é bom as suas ideias pré-concebidas de cobra insensível e maquiavélica não terem sido confirmadas. Mas é então que percebe o que há de errado nas fotografias. Falta Steen Hartung. Steen Hartung não está em nenhuma delas. Em vez disso, há selfies de Vogel com Rosa e as crianças, ou só com Rosa, como se os dois fossem um casal.
— O secretário de Estado disse que o senhor queria falar comigo.
A porta abriu-se, e o olhar de Vogel pousa em Hess e ganha uma expressão vigilante quando o vê em frente ao ecrã, que ainda lhe ilumina o rosto. Tem o casaco molhado da chuva e o cabelo caído sobre o rosto, até que levanta a mão e o puxa para trás.
— Já descobriram alguma coisa? Encontraram o motorista?
— Ainda não. Também não conseguíamos encontrá-lo a si.
— Tive reuniões na cidade. Estive a tentar conter a conversa dos malditos redactores e a utilização dos contactos do Gustav. Então e a namorada do motorista? Devem ter usado este tempo para investigar um ou o outro, não?
— Estamos a trabalhar nisso. Neste momento, preciso da sua ajuda com outra coisa.
— Não tenho tempo para outras coisas. Tem de ser rápido.
Hess repara que Vogel fecha discretamente a tampa do computador quando pousa o casaco nas costas da cadeira e pega no telemóvel.
— Na sexta-feira, dia 16 de Outubro, o senhor cancelou, em nome da sua ministra, a presença num evento no Diamante Negro. Conversaram algumas horas antes, e ela disse-lhe que o marido ia aparecer na televisão, e o senhor disse-lhe que era boa ideia cancelarem.
— É possível. Mas a ministra não precisa da minha autorização para cancelar eventos. Faz isso sozinha.
— Mas a ministra tem o hábito de seguir os seus conselhos?
— Não sei o que quer que lhe responda. Porque pergunta?
— Não importa. Mas foi o senhor que cancelou a presença dela no evento?
— Fui eu que liguei à pessoa que estava a organizá-lo, em nome da ministra, e cancelei a sua presença.
— Também informou Asger Neergaard de que a ministra não ia estar no evento e não precisava de ser levada para casa no final?
— Sim.
— O registo electrónico dele diz que ele trabalhou nessa noite. Que esteve à espera no átrio do Diamante Negro desde a meia-noite até quase um quarto para a uma e que esperou que o evento terminasse para a levar para casa.
— Quem pode confiar no que ele escreveu? Talvez estivesse a tentar criar um álibi para ir a outro lugar ou fazer outra coisa. Tenho a certeza de que o informei, mas não é certamente a melhor coisa com que ocupar o seu tempo quando o Gustav Hartung está desaparecido.
— Não. Informou o Asger Neergaard nessa noite ou não?
— Como lhe disse, transmiti-lhe o recado ou mandei alguém fazê-lo.
— Quem mandou dar-lhe o recado?
— Porque raio é isso importante?
— Então é possível que não lhe tenha dado o recado e que ele tenha estado no átrio à espera?
— Se é essa a conversa que quer ter comigo, não tenho tempo.
— O que fez o senhor nessa noite?
Vogel dirige-se para a porta quando pára e olha para Hess.
— O plano era ir com a ministra ao Diamante Negro, mas, quando cancelou, teve tempo para fazer outras coisas, não?
A sugestão de um sorriso de escárnio cruza o rosto de Vogel.
— Não está a dizer o que eu penso que está a dizer.
— O que pensa que eu estou a dizer?
— Está a tentar descobrir o que eu estava a fazer no momento de um determinado crime em vez de se concentrar no rapto do filho da ministra, mas espero estar errado.
Hess limita-se a olhar para ele.
— Se quer mesmo saber, fui para o meu apartamento ver o Steen Hartung na televisão e preparar-me para o impacto que isso ia ter. Estive sozinho, não há testemunhas, e tive muito tempo para cometer homicídios e brincar com castanhas toda a noite. É isso que quer ouvir?
— Então e na noite de 6 de Outubro? Ou dia 12 de Outubro, por volta das 18h00?
— Terei muito gosto em responder num interrogatório oficial na presença do meu advogado. Até lá, vou continuar a fazer o meu trabalho. Tal como acho que o senhor deve fazer o seu.
Vogel despede-se com um aceno de cabeça. Hess não quer deixar o tipo escapar, mas o seu telemóvel toca ao mesmo tempo, e Vogel sai. Pela informação no ecrã, Hess vê que é Nylander, e decide contar-lhe da sua descoberta e da suspeita de Vogel, mas Nylander adianta-se.
— Fala o Nylander. Diga a todos para suspenderem a investigação no Ministério dos Assuntos Sociais e em Christiansborg.
— Porquê?
— Porque o Genz localizou a Skans e o Neergaard. Estou a ir para lá agora com uma equipa táctica.
— A ir para onde?
— A oeste de Holbæk, um lugar no meio do bosque. O Genz abriu o computador Lenovo e encontrou uma factura do aluguer de um carro da Hertz no e-mail e contactou a empresa. O casal alugou um carro em Vesterport esta manhã, e o Genz conseguiu localizá-lo porque a empresa tem localizadores em todos os carros para o caso de serem roubados. Diga a todos para voltarem para a esquadra e escreva o seu relatório.
— Mas e…
Mas Nylander já desligou. Frustrado, Hess afasta o telemóvel do ouvido e dirige-se para a porta. Depois de informar um assistente criminal da ordem de Nylander, atravessa o corredor a passos rápidos e, pela porta aberta do gabinete da ministra, vê Vogel a abraçar Rosa Hartung.