A distância entre o portão vermelho e a casa Peter Lieps Hus, no parque natural Dyrehaven, está coberta de neve, e Rosa Hartung corre pelo caminho de gravilha e não pelo asfalto, que está escorregadio como sabão. Ao chegar o fundo do caminho e olhar para as atracções abandonadas de aspecto fantasmagórico, vira à direita e entra por um dos caminhos cobertos pelas copas das árvores e que, consequentemente, está livre de neve. As pernas não querem continuar, mas o ar está límpido e frio, e ela obriga-se a prosseguir, na esperança de a caminhada ajudar o seu humor a melhorar.
Durante dez dias, não saiu da sua casa em Ydre Østerbro. Todas as forças que mobilizara para retomar o cargo no ministério tinham-se evaporado como o orvalho exposto ao Sol quando percebera que a esperança de voltar a ver Kristine não tinha ligação nenhuma com a realidade. Tudo se tornara cinzento e irrelevante, tal como fora durante o Inverno e a maior parte da Primavera anteriores, e, embora Vogel, Liu e Engells tivessem manifestado preocupação e a tivessem convidado a voltar para o ministério, não tinham sido bem-sucedidos. Ela permanecera em casa, e, independentemente do que eles dissessem, Rosa sabia que os seus dias como ministra estavam contados. Tanto o primeiro-ministro como o ministro da Justiça tinham vindo a público expressando preocupação, mas nos bastidores não havia dúvida de que o lugar de Rosa no partido pertencia ao passado. Quando tivesse passado mais tempo, seria empurrada para os últimos lugares da lista, ou pela sua desobediência ao primeiro-ministro ou por ser considerada demasiado instável, e Rosa não queria saber.
Naquele momento, não podia ignorar a tristeza e, nessa manhã, visitara o psiquiatra, que a aconselhara a retomar o tratamento com antidepressivos. Quando chegara a casa, obrigara-se a vestir o fato de treino — como costumava fazer a seguir ao almoço quando trabalhava em casa —, mas naquele dia era uma prioridade porque esperava que a descarga de endorfinas ajudasse a melhorar um pouco o seu humor e lhe desse forças para resistir a mais um tratamento.
Outro motivo para decidir ir fazer a corrida era o facto de a transportadora vir recolher as coisas de Kristine. Depois da consulta, Rosa resignara-se a aceitar os conselhos do psiquiatra e a livrar-se delas de uma vez por todas para se libertar do passado. Um gesto simbólico que a ajudaria a seguir em frente, dissera ele. Rosa ligara para uma transportadora e mostrara à au pair as coisas do quarto de Kristine que eram para levar: as quatro caixas grandes de roupa e sapatos, bem como a secretária e a cama onde Rosa se sentara tantas vezes. Dera também à au pair o número da Cruz Azul de Nordre Frihavnsgade, para ela os informar de que uma transportadora estava a seguir para lá com as coisas, e depois Rosa saiu e conduziu até ao parque natural Dyrehaven.
Pelo caminho, perguntara-se se deveria ligar a Steen a informá-lo da decisão, mas não fora capaz. Já quase não falavam. A mensagem do chefe do Departamento de Homicídios fora clara, mas Steen continuava a agarrar-se à esperança, e Rosa já não aguentava mais. Ele recusara-se a assinar os documentos da presunção de óbito que ele próprio pedira ao advogado que lhe enviasse, e, embora ele não o admitisse, Rosa sabia que ele continuava a dar voltas e a bater às portas de todos os lugares por onde Kristine podia ter passado no dia do seu desaparecimento. Fora o sócio dele, Bjarke, que ligara a Rosa a contar-lhe. Preocupado, contara-lhe que o gabinete de Steen continuava cheio de plantas da rede de esgotos e mapas dos bairros residenciais e das estradas e que todas as manhãs ele saía sem dizer para onde ia. Ontem de manhã, Bjarke seguira-o e dera com ele a dar voltas num bairro residencial junto ao complexo desportivo. Mas Bjarke deve ter-se arrependido de lhe ter ligado, porque Rosa limitara-se a reagir com resignação. A busca de Steen não tinha sentido, mas nada tinha. Tinham de aguentar e de pensar em Gustav, mas naquele momento não conseguiam.
Quando Rosa regressa ao portão vermelho, está completamente exausta da corrida. O suor é frio e desconfortável. A respiração forma uma nuvem em frente à sua boca, e, por um momento, tem de se apoiar na porta de madeira, antes de se dirigir para o carro no estacionamento. A caminho de casa, passando pela estátua de Knud Rasmussen e pela bomba de gasolina de Arne Jacobsen, as nuvens afastam-se por um breve instante. A neve parou de cair por momentos, e, quando o Sol brilha, a neve ilumina-se como um enorme manto de cristais, e ela tem de semicerrar os olhos para conseguir ver. Ao virar para o caminho que dá acesso à casa, nota que a sua respiração está diferente de quando saiu de casa. Um pouco mais leve — como se o ar agora chegasse ao diafragma, em vez de ficar preso entre o peito e a garganta. Rosa sai do carro e vê o rasto dos pneus da carrinha da transportadora marcado na neve e sente-se aliviada por ter terminado. Por hábito, dirige-se para as traseiras da casa, para a porta dos fundos que usa sempre quando vai correr, para não sujar o hall com terra e neve. Nem consegue fazer alongamentos, só pensa em entrar e estender-se no sofá antes de ser tomada por pensamentos sobre as coisas de Kristine que foram levadas. A neve fresca e intocada estala-lhe debaixo dos pés, mas, quando vira a esquina para a entrada dos fundos, para abruptamente.
No tapete em frente à porta há algo que a princípio não consegue identificar. Quando se aproxima, percebe que é algum tipo de decoração, uma espécie de coroa, e pensa imediatamente no Natal ou no advento, talvez por causa da neve. Só quando se curva para apanhar o objecto é que percebe que é feita de bonecos de castanhas. Estão dispostos num pequeno círculo, de mãos dadas.
Rosa sente um baque no peito e olha em volta, alerta. Tudo no jardim, incluindo o velho castanheiro, está coberto de neve fresca e intocada, e as únicas pegadas que vê são as suas. Volta a olhar para o objecto, pega-lhe, a medo, e entra em casa. Perguntaram-lhe tantas vezes pelos bonecos de castanhas e o seu possível significado que já perdeu a conta, e nunca os associou a nada que não fossem os bonecos que Kristine e Mathilde faziam todos os anos, sentadas à mesa de jantar. Mas, quando sobe as escadas para o primeiro andar e chama a au pair, ainda com os ténis molhados calçados, tem outra sensação, muito mais desagradável, que não consegue identificar.
Rosa encontra a au pair no quarto vazio de Kristine, a aspirar o tapete em cima do qual estavam as caixas e os móveis. A rapariga parece assustada quando Rosa desliga o aspirador e lhe mostra o objecto que tem na mão.
— Alice, quem trouxe isto? Como é que veio cá parar?
Mas a au pair não sabe. Nunca tinha visto aquele objecto e não sabe quando foi posto em frente à porta ou quem pode tê-lo posto lá.
— Alice, é importante!
Rosa repete as perguntas e insiste que a rapariga, confusa, deve ter visto algo, mas, para além do homem da transportadora que veio recolher as coisas, ela não viu ninguém desde que Rosa saiu. Só quando os olhos da au pair se enchem de lágrimas é que Rosa se dá conta de que está a gritar por respostas que a rapariga não tem.
— Alice, desculpe. Desculpe-me…
— Eu posso ligar à polícia. Quer que ligue à polícia?
Rosa olha para o objecto que pousou no chão para abraçar a au pair, que ainda está a fungar. O pequeno círculo é composto por um total de cinco bonecos de castanhas, presos uns aos outros com arame. Parecem as figuras com que a polícia a confrontou, mas agora Rosa nota que duas das figuras são mais altas do que as outras três. Como se as duas figuras mais altas fossem os pais. Pais de castanhas, de mãos dadas com os seus três filhos de castanhas, uma família a dançar numa roda.
É então que Rosa percebe. Reconhece a decoração e compreende imediatamente por que motivo foi posta em frente à sua porta, para ser encontrada por ela. Lembra-se de quando a viu pela primeira vez, quem lha deu e, especialmente, porquê. Tudo se torna claro para ela, mas o senso comum ainda lhe diz que não pode ser. Não pode ser por isso. Foi há demasiado tempo.
— Vou ligar à polícia agora, Rosa. É melhor ligar à polícia.
— Não! Não chame a polícia. Eu estou bem.
Rosa afasta-se de Alice. Quando, no momento seguinte, corre para o carro e conduz para fora dali, tem a sensação de que alguém está a observá-la, e deve estar a fazê-lo há muito tempo.