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Os registos da carnificina de Møn em 1989 são extensos. No entanto, o processo de digitalização do arquivo da esquadra de Vordingborg está tão avançado que Hess consegue ler o ficheiro do caso num ecrã em vez de ter de virar as páginas de ficheiros poeirentos como os que o rodeiam e como preferiria fazer. Enquanto ouve, impaciente, o toque de espera no seu telemóvel, o seu olhar desliza pelas prateleiras, e dá-se conta da quantidade incrível de sofrimento que foi documentada ao longo dos anos e esquecida em diversos arquivos, registos e servidores.

— Está agora no sétimo lugar da fila de espera.

Brink acompanhara-o à cave e abrira o arquivo, que consistia numa sala primitiva e poeirenta com uma longa fila de estantes com caixas e gavetas. Não tinha janelas, apenas as longas lâmpadas fluorescentes antiquadas que Hess vira pela última vez quando andava na escola, e a sala lembrou-lhe o quanto detesta caves e espaços subterrâneos.

Brink disse-lhe que, por o caso envolver uma quantidade tão grande de documentação, fora um dos primeiros a ser digitalizado quando iniciaram o processo, alguns anos antes. Por esse motivo, Hess teria de ler o ficheiro do caso no velho computador que havia a um canto da sala. Brink oferecera-lhe ajuda e quase insistira em ficar, mas Hess preferia ver o material em paz. O telemóvel tocara várias vezes, especialmente com um telefonema de François, e Hess imagina que o francês já percebeu que ele não apanhou o avião para Bucareste.

Hess sabia o que procurava no material do caso, mas, ainda assim, os detalhes absorveram-no completamente. A descrição do encontro inicial dos agentes com os gémeos foi uma leitura horrível. Quando foram encontrados, estavam escondidos num canto da cave, o rapaz com os braços em volta da irmã, que parecia apática, como se estivesse em estado de choque. O rapaz não se deixara separar da irmã quando foram levados para a ambulância, e o seu comportamento foi descrito como o «de um animal selvagem». Um exame médico das crianças confirmou os maus-tratos e abusos sexuais que sofreram na cave, os quais já haviam sido descobertos, e os gémeos foram examinados e interrogados, mas foi impossível. O rapaz mantivera-se em silêncio e não dissera nada — a irmã, por outro lado, não dizia coisa com coisa e não entendia as perguntas. Um psicólogo estivera presente e dissera que a rapariga provavelmente estava a tentar distanciar-se das experiências vividas e a viver numa espécie de universo paralelo. Um juiz dispensou as crianças de participarem no julgamento que se seguiu, e nessa altura já elas tinham sido enviadas para famílias de acolhimento noutras partes do país. Hess leu que as autoridades tinham decidido separar os gémeos para ser mais fácil para eles distanciarem-se do passado e recomeçarem. O que não parecia necessariamente uma decisão sensata.

A primeira coisa que Hess anotara no bloco de post-its ao lado do computador foram obviamente os nomes dos gémeos, Toke e Astrid Bering, bem como os seus números de segurança social. No entanto, não havia muito mais informação sobre o contexto das crianças no relatório da polícia. Por um relatório anexo escrito por um gestor de caso, descobriu que foram encontradas abandonadas nas escadas da maternidade de Aarhus, em 1979, com pouco mais de algumas semanas de idade, e tinham sido as parteiras a dar-lhes os nomes. Sem dar muitos detalhes, o relatório referia que os gémeos tinham vivido com outras famílias de acolhimento antes de serem enviados para a Quinta das Castanhas, dois anos antes da carnificina. Era esse o nome da quinta da família Ørum, e, a cada nova linha de texto, Hess sentia que estava mais perto de uma explicação. Mas essa só viria quando corresse os números de segurança social dos dois no registo RX da polícia para saber onde estavam agora.

— Está no terceiro lugar da fila de espera.

O registo RX, que é uma combinação de diversos registos que podem ser relevantes para uma investigação policial, mostra, entre outras coisas, onde uma determinada pessoa residiu e quando. Para cada pessoa, foi registada uma lista cronológica de moradas e mudanças, e diz-se também se a pessoa se casou, se divorciou, se foi julgada, condenada, expulsa ou se de alguma forma se destacou com actividades que possam ser relevantes para a polícia.

Mas o que deveria ter sido uma mera formalidade revelou-se um novo enigma.

Depois de uma estadia numa instituição pública para crianças com dificuldades sociais, o registo dizia que Toke Bering, na altura com 12 anos de idade, fora entregue aos cuidados de uma família de acolhimento em Langeland. Depois disso, fora mandado para uma família de acolhimento em Als e depois para outras três famílias de acolhimento, até que lhe perderam o rasto, pouco depois de o jovem ter feito 17 anos. Simplesmente não havia mais moradas nem acontecimentos associados a esse número de segurança social.

Se Toke Bering tivesse morrido, deveria constar do registo, mas, no caso do rapaz, o registo era interrompido, sem mais explicações, e Hess ligara para o registo a pedir um esclarecimento. No entanto, a funcionária que o atendera só conseguira encontrar as mesmas informações que ele, e supôs que Toke Bering tinha saído do país.

Hess perguntou também pela irmã, mas também não obteve mais informações para além das que já conhecia. Astrid Bering também fora entregue a famílias de acolhimento depois da estadia na Quinta das Castanhas, mas os assistentes sociais e psicólogos haviam aparentemente alterado a estratégia para a rapariga, porque passou das famílias de acolhimento para estadias em instituições para crianças com doenças mentais. A partir dos 18 anos e até aos 27, não teve uma morada oficial, o que podia indicar que fora para o estrangeiro, mas depois disso voltara a residir em sucessivas instituições para doentes mentais. Até havia menos de um ano, quando desapareceu sem deixar rasto, aos 38 anos de idade. Hess contactara o último lugar onde ela vivera, mas entretanto a chefia fora substituída, e o novo chefe não fazia ideia para onde Astrid Bering desaparecera no ano anterior, quando recebera alta.

— Está no segundo lugar da fila de espera.

Hess decidira então ligar a todas as famílias de acolhimento dos gémeos para perguntar se tinham tido notícias do rapaz ou da rapariga ao longo dos anos e se sabiam onde podiam estar agora. Começou por ordem cronológica, ou seja, pelas famílias com quem tinham vivido antes da estadia na Quinta das Castanhas, mas depois de dois telefonemas não descobrira nada. Os pais das famílias em questão tinham-se mostrado receptivos, mas não tinham tido contacto com os gémeos depois de estes terem deixado a sua casa, e Hess chegara agora à família de acolhimento número três.

— Município de Odsherred, Departamento da Família, em que posso ajudá-lo?

O número fixo da família de acolhimento Petersen de Odsherred foi desactivado, por isso Hess decide ligar para o município. Explica que está à procura de Poul e Kirsten Petersen, que vivem no número 35 de Kirkevej, em Odsherred. Pensa que estes poderão dar-lhe informações sobre dois gémeos que tiveram sob os seus cuidados em 1987.

— Só se tiver uma ligação directa a Nosso Senhor. Segundo as informações que tenho, Poul e Kirsten Petersen morreram. O homem morreu há sete anos, e a mulher dois anos depois.

— Como morreram?

Um velho hábito leva Hess a perguntar qual foi a causa da morte, mas a voz cansada do outro lado não tem essa informação no computador. Mas, uma vez que o marido e a mulher tinham 74 e 79 anos, respectivamente, não parece especialmente estranho terem morrido com poucos anos de diferença.

— Então e os filhos? Tinham filhos nessa altura?

Hess pergunta porque os irmãos ou enfermeiros também podem ter mantido contacto, apesar de os pais de acolhimento já não estarem vivos.

— Não, não vejo aqui nada.

— Ok, obrigado. Adeus.

— Espere. Adoptaram uma criança que tinham acolhido anteriormente. Rosa Petersen.

Hess está quase a desligar quando a voz lhe dá aquela informação. Pode ser uma possibilidade, e o seu instinto diz-lhe que há milhares de pessoas com aquele nome. Mas, ainda assim…

— Tem o número de segurança social de Rosa Petersen?

Hess anota o número de segurança social e pede à funcionária que aguarde um pouco enquanto se vira para o computador. Quando consulta o registo RX e descobre que há 15 anos Rosa Petersen se casou e adoptou o sobrenome do marido, Hess já não tem dúvidas: Rosa Petersen é Rosa Hartung. Sente-se inquieto e não consegue ficar parado.

— O que diz o seu registo sobre a estadia dos gémeos na casa da família Petersen, em 1987?

— Nada. Só diz que a família Petersen cuidou deles durante cerca de três meses.

— Porque não ficaram mais tempo?

— Não diz. E agora tenho de ir que já começou o meu fim-de-semana.

Quando a funcionária desliga, Hess continua sentado com o telemóvel encostado ao ouvido. Os gémeos só tinham passado três meses em Odsherred com Poul e Kirsten Petersen e a sua filha adoptiva, Rosa. Daí, tinham sido enviados para a casa da família Ørum, em Møn. Hess não sabe mais, mas encontrou a ligação: a estadia na casa da família Petersen — o rapaz na cave da Quinta das Castanhas — os bonecos de castanhas que são cuidadosamente deixados junto das vítimas — as vítimas cujos membros são amputados para as fazer assemelharem-se aos bonecos — o assassino, que, com corpos humanos, faz o seu próprio boneco de castanhas.

As mãos de Hess tremem enquanto as imagens dão voltas na sua mente, e ele tenta dar-lhes ordem. Tudo começara com Rosa Hartung. As impressões digitais tinham-nos apontado na direcção certa sem perceberem porquê, mas era aquilo que procuravam. A revelação fá-lo levantar-se, mas o quadro torna-se sombrio quando se apercebe do que ainda tem pela frente.

Hess liga imediatamente a Rosa Hartung. O longo toque de chamada é substituído pelo voice mail, e Hess desliga. Prepara-se para ligar novamente, mas entretanto recebe uma chamada de um número não identificado.

— É o Brink. Desculpe interrompê-lo. Tenho estado a fazer perguntas, mas ninguém sabe o que foi feito dos gémeos.

— Está tudo bem, Brink, agora não tenho tempo.

Brink tinha-se oferecido para ajudar Hess ligando para os habitantes da região, e Hess só aceitara para se livrar dele, portanto, fica irritado quando o homem lhe liga a dar notícias.

— Também não encontro nada no sistema, pelo menos não sobre o rapaz. Perguntei à filha mais nova da minha irmã, que andou na escola com os gémeos na altura, mas ela também não conseguiu contactá-los quando a escola fez um encontro de antigos estudantes, há alguns anos.

— Brink, tenho de ir!

Hess desliga a chamada e volta a marcar o número de Rosa enquanto espera, impaciente, em frente ao computador, mas Rosa Hartung continua a não atender. Ele não deixa mensagem e decide, em vez disso, ligar para o marido dela, mas é então que recebe uma mensagem de texto. A princípio, pensa que é Rosa Hartung a ligar-lhe de volta, mas a mensagem é de Brink.

— Fotografia da turma 5A de 1989. Não sei se ajuda. A minha sobrinha diz que a rapariga devia estar doente no dia em que a fotografia foi tirada, mas o rapaz é o que está mais à esquerda.

Hess abre imediatamente a fotografia que veio em anexo e olha para ela. Não há mais do que vinte alunos na imagem desbotada, talvez por ser de uma escola de aldeia. Alguns estão de pé, e uma segunda fila está sentada em cadeiras à frente deles. Estão vestidos em tons pastel, algumas das raparigas têm permanentes e casacos com chumaços, ao passo que os rapazes usam ténis Reebok e camisolas Kappa ou Lacoste. Na fila da frente há uma rapariga morena com brincos grandes e um pequeno quadro de ardósia que diz «5A», e a maioria dos alunos está a sorrir para a câmara, como se alguém, talvez o fotógrafo, tivesse dito algo muito engraçado.

Mas, depois de o ver, era impossível desviar a atenção do rapaz do lado esquerdo. É baixo para a sua idade. Na verdade, parece menos desenvolvido do que os outros rapazes e usa roupas sujas e velhas. Mas o seu olhar é forte. Olha directamente para a câmara e parece ser o único que não ouviu a tal coisa engraçada que alguém disse.

Hess olha fixamente para ele. Para o cabelo, as maçãs do rosto, o nariz, o queixo, os lábios. Todos os traços que mudam radicalmente depois da idade que o rapaz tem naquela fotografia. Hess reconhece-o e ao mesmo tempo não, e, só quando faz zoom, ocultando todo o rosto do rapaz e deixando visíveis apenas os olhos, percebe quem é. Vê-o, mas é tão impossível quanto óbvio. Quando se dá conta do que está a ver, pensa que talvez seja tarde demais.